Roupa Nova

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 O novo ofício de Renato possibilitava-lhe comprar roupas novas. No mais, trabalhar diretamente com um público que valoriza a beleza, exigia-lhe boa apresentação. Assim, foi a um shopping 'granfino', supondo que, para comprar, bastava pagar. Desilusão! Primeiro, porque os vendedores nas lojas o ignoravam. Segundo, porque os seguranças ficavam de cima, desconfiados. Um deles chegou a fazer o gesto de 'olho aberto com o dedo', como a dizer: 'Estou te vendo'. Além do constrangimento, os números a marcar o preço, na etiqueta, se não eram códigos, pareciam ser. Eram preços tão surreais, que pareciam mesmo códigos. Preços, valores, códigos, números... No shopping, tudo lhe parecia coisa só.

Quanto custa na etiqueta?

A etiqueta é cabível?

O preço é acessível?

A etiqueta dita o valor do que se vê?

A etiqueta é paga pelo preço que diz ter?

Quanto vale a etiqueta?

Posso raspar o prato, comer de colher e garfo,

Ou devo servir a mesa?

O que custa a etiqueta?

Do shopping, Renato saiu como entrou, sem consumir nada. Saiu como havia entrado, exceto pelo sentimento extra de exclusão. Uma das vendedoras que o olhou de cima a baixo, era de seu bairro. Ele a vira algumas vezes no transporte público de sua região. A alienação social provoca um tipo de miopia narcísica nos indivíduos.

'Responsabilidade social' e 'produção sustentável' são termos que não podem faltar nas etiquetas de marcas famosas. Mas, se as empresas fizessem mesmo o que dizem, não haveria catadores de latas como Renato, pois as empresas mesmas se encarregariam de recolher o lixo resultante de seus produtos. Se a indústria produzisse de modo sustentável, sustentaria produção suficiente ao invés de eficiente. E, se pensasse responsavelmente sobre a sociedade, não alimentaria a inveja e a discriminação através da elitização de seus produtos. Diz o ditado o plantio de ventania, traz colheita de tempestade. Fazendo um paralelo, pode-se dizer que há grandes indústrias plantando lata e colhendo prata. Quanta contradição!

Renato saiu do shopping rumo ao mercado informal. Não o que revende coisas roubadas, mas o que vende marcas falsificadas. Mas, que sentido haveria em desfilar um status que, obviamente, não era real? Renato divagava acerca da diversidade social e os símbolos de estilo, status, ideologia e empatia. Os componentes de um grupo esforçando-se por ser iguais entre si e diferentes dos demais. Esforçando-se por pertencer, por ser aceitos. No seu bairro, havia alguns que se enriqueciam rapidamente, de modo ligeiramente obscuro – no fundo, toda a vizinhança sabia da origem e destino do dinheiro, assim como o fim a aguardar o que acreditava haver 'subido na vida'. Esses 'exemplos de sucesso', vestiam-se como tal, ao modo ostentação: cordão de ouro pendurado no pescoço, anéis e relógio tão extravagantes quanto caros. A riqueza aí apresentada, tinha ares de cara lambuzada de criança que tomou sorvete. Renato imaginava como seria apresentar-se ao modo 'granfino'. Seria ele alguém melhor? Difícil responder. Já, melhor aceito, sem dúvida. Afinal, comprou umas roupas legais, fabricadas e vendidas por gente criativa e original que, assim como ele, estava começando a fazer.

"O mundo é de quem faz!"

Falando em ação e reação, produção e reprodução, a irmã de Renato, Lucyenne, em plenos quinze anos de idade, comunicou à família sua gravidez. A mãe ensaiou um escândalo, mas calou-se diante da própria impotência.

Alguns membros da família apenas escutaram, sem nada dizer. Às vezes, a pobreza distancia os membros de uma mesma família, ainda que estes durmam baixo o mesmo teto, baixo o teto de um minúsculo barraco. A Renato apenas coube abraçar a irmã, e fazer-lhe um par de perguntas.

-E o pai, vai assumir a família?

-A gente tá batalhando um barraco só nosso.

"Menos mal", pensou ele. "Se eu puder ajudar em algo, avisa". E foi tudo o que pôde dizer. Afinal, em que ajudaria falar de reprodução da miséria neste momento? Não, Renato não tinha espírito miserável. No mais, poderia ser pior. A comunidade estava povoada por filhos sem pai. Havia, mesmo, filho sem mãe.

Desde que o mundo é mundo, a vida se reproduz. A ciência descobriu meios para produzir a vida, em laboratório. Lucyenne reproduzia a história da mãe, porém, com roupagem nova. Renato queria para si um destino diferente do de seu pai. Se tudo corresse bem, sua próxima aquisição seria uma máquina fotográfica semi profissional.

Fotografando, eu reproduzo beleza

O Catador de SonhosOnde histórias criam vida. Descubra agora