Certa tarde, Renato avistou uma cigana com vestido longo de chita, e flor vermelha nos cabelos. Hesitou um pouco, mas não pôde resistir. Talvez o universo tivesse conspirado meticulosamente para aquele encontro místico.
-Bom dia! A senhora prevê o futuro e essas coisas?
- Futuro, presente ou passado. Ou algo aí dentro, que 'esté' 'dormido'. Qual es tu nombre, 'tchico'?
-Renato.
-El renacido! Placer, soy Soledad.
-Como?
-Mi nombre. – A cigana falava em particular portunhol.
-A senhora pode ler minha mão?
-Quanto vintén 'tiene'?
-Nenhum vintém.
-Asi que ni sorte 'tienes'.
Renato sentiu a frustração de uma expectativa traída. Ele acreditava que as pessoas do mundo dos mistérios não se importavam com dinheiro. Mas, dinheiro em sociedade capitalista é como água de coco em praia ensolarada. Mais cedo o mais tarde, haverá de fazer falta. Quando Renato caminhava, desapontado e reflexivo, a cigana o chamou: "Tchico!". Sem resposta, ela insistiu: "Renato! 'Traigame' dos cafés, y yo leré la borra para ti". Renato, que não queria ou podia pagar pela consulta exotérica, pagou pelo café. "Ahora, tómalo". Renato obedeceu e tomou o café. Ela pegou o copinho branco de plástico, fixou o olhar ao fundo, apertou os olhos, fez ares de mistério, e lhe perguntou: "Que vés tu?". Supunha-se ser ela, a cigana, quem veria algo mágico na matéria visível. E, Renato, talvez induzido psiquicamente, talvez emergido emocionalmente, talvez conectado a uma força inexplicável, viu na abstrata forma da borra ao fundo a face de seu pai.
-Esse é meu futuro, ou é o meu passado?
-Tal vez un gran amor.
Renato prendeu na garganta um choro ressentido, guardado. Lembrou-se de seu pai chegando em casa, ao fim do dia, com seus pés sujos e calejados, os olhos vermelhos de sol, sempre acompanhado do leal vira-lata chumbinho. Sentiu não haver dito o quanto sentia por ele, por sua dura vida e suas dores. Sentiu não haver-lhe perguntado de seus sonhos. Seu pai não teve sonhos, ou sua realidade foi tão dura que os abortou? Coisas da vida. Muitas vezes só se pode entender o que se passa, quando tudo já passou.
Ali, vi o que é o amor,
E a solidariedade que advém dele:
Por vezes, uma lealdade cega, um pertencer ao grupo...
E um desejo emergente e 'traidor' de ser e fazer diferente,
Que leva ao 'adeus' pesaroso e rompedor,
Embora não sem amor.
Renato riu. Riu pra não chorar.
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O Catador de Sonhos
AdventureRenato, questionador nato, pobre de nascença, renascido, autor de seu renascimento. Um entre tantos descarados e desalmados pela esmagante multidão. Um sobrevivente, um lutador, um vivo de fome, um faminto de amor e, no palco da vida, um ator. ...