O primeiro patrão de Renato, o homem que se disponibilizou a dar-lhe a mão, em troca do suor de seus dois braços e pernas, costas e testa, havia sido patrão de José, seu pai. Seu nome era Pedro. Gerente de uma pequena cooperativa de reciclagem de material descartável, Pedro ofereceu-lhe trabalho. Ele era alguém que, afortunadamente, havia progredido. A partir da experiência pessoal, Pedro apregoava pelos quatro cantos de seu mundo, que o progresso viria a todo e qualquer que trabalhasse muito, soasse a camisa, se esforçasse. Mas, já disse Raul Seixas: "Pedro, as coisas não são bem assim". Para Renato, a teoria se afigurava pouco provável, embora não impossível, dada a vida e morte severina de seu pai, quem trabalhou mais do que demais, sendo, no fim das contas, enterrado sem direito a nome na tumba. Caiu duro em meio a alguma rua de uma grande cidade, sem escritório, sem documentos que comprovassem sua cidadania. Nasceu, mal cresceu, reproduziu, trabalhou, morreu. José não queria para os filhos o que seu pai lhe deu. Mas, o que seu pai lhe deu, foi tudo o que ele aprendeu. Deu aos filhos um pouco mais de liberdade do que havia recebido do velho pai. E essa foi a maior herança deixada a Renato: o direito de sonhar.
Aos jovens nascidos em família pobre, as opções de trabalho são escassas: picolezeiro, engraxate, flanelinha, catador de lixo, auxiliar do lar e babá. Há também trabalho ilegal, do tipo amante de aluguel, aviãozinho e pivete, que pode levar à 'reabilitação para jovens infratores' ou coisa pior. O problema é que os programas que deveriam 'reabilitar' são descritos pelos 'reabilitados' como um tipo de limbo, inferno ou um tipo de especialização para o mercado do crime. Renato sabia disso. Então, quando recebia propostas -quase intimações- de trabalho para o mercado negro, tinha sempre a resposta pronta: "Não posso me emocionar. Tenho ponte de safena". Isso, ele leu em alguma revista jogada no lixo. Imaginava se a tal 'ponte' não teria evitado a precoce morte de seu pai. Os ouvintes, ignorantes do tema, apenas respondiam com um exclamativo 'Ah!'.
Pedro, quem fora patrão de seu pai, e era chefe em uma empresa de reciclagem, ofereceu-lhe trabalho sob as mesmas condições que havia oferecido a José. Renato não tinha muitas opções, de modo que aceitou o posto. Começou na manhã do dia seguinte. Havia experimentado a função de pedinte. Mas, pedinte havia sido função temporária. Afinal, qual é função do pedinte? O pedinte pede sem oferecer nada ao que lhe dá. Então, por que há quem dê ao pedinte? Porque o pedinte ilustra a fragilidade do sistema, do mundo e da vida.
Catando latas, Renato não ouvia críticas. Sequer recebia olhares. Na rua, os carros se desviavam dele. Nas calçadas, desviavam-se as caras. Esse é um exemplo de invisibilidade pública, que nada tem a ver com truque de mágica ou poderes de algum ser sobrenatural. Renato não era um super-herói. Renato era um trabalhador sem carteira assinada, salário mínimo, seguro de vida ou plano de saúde. Um sobrevivente, um filho sem pai, um cidadão sem nação, um número a mais no saldo deixado para o futuro do Brasil. Bem ou mal, iniciou-se o tempo de 'vida útil' de Renato. Sem dúvida, o catador de material reciclável prestava um serviço de utilidade pública. Tão pública quanto pode ser a caminhada pelas ruas.
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O Catador de Sonhos
MaceraRenato, questionador nato, pobre de nascença, renascido, autor de seu renascimento. Um entre tantos descarados e desalmados pela esmagante multidão. Um sobrevivente, um lutador, um vivo de fome, um faminto de amor e, no palco da vida, um ator. ...