Era uma vez, uma era. A 'era da comunicação'. A era que possibilitava a comunicação por pequenos aparelhos, pelas facilidades advindas da internet. Esta era, como todas as anteriores, disponibilizava seus meios mais avançados para alguns, assim como os meios mais tradicionais para outros. Enquanto uns viam pela internet gente lavando a roupa no rio Ghandi, gente lavando a roupa no rio Ghandi nunca tinha ouvido falar de internet. Não que o mundo se dividisse em 'modernidade' e 'tradição'. Em verdade, havia uma grande população mundial, que se podia denominar 'minoria' ou excluídos. Renato via nas vitrines os tais computadores. Via aparelhos celulares, multimídias. Se não os via em propagandas, ou novos em alguma vitrine, os tocava quebrados e jogados nas lixeiras. Em sua infância, o único aparelho de comunicação que tinha, era uma engenhoca chamada ironicamente 'telefone sem fio', já quer era composto por duas latas sem tapa, unidas por um fio de barbante. Apenas funcionava se duas crianças apanhassem as latas, separando-as até onde o fio permitisse. Uma vez 'distantes', gritavam no interior da lata frases como: 'alô, alô, câmbio' e 'câmbio, desligo'.
Através do metal cunhado se estabelecem relações.
Através do metal, também, a comunicação.
Se vive e se morre por ele. Do you "have metal"?
-"Natinho!"
Alguém, claramente íntimo, o chamou. Renato virou-se a avistou um menino meio rapaz, extremamente magro, de olhos fundos e uns poucos pelos crescidos no pontiagudo queixo. Sua magreza denunciava uma infância de fome, mas não era só isso. Seu olhar era como o de um boneco com olhos de vidro.
-Artur!? – Renato não pôde conter o susto ao reconhecer naquela figura mórbida, um amigo de recente infância.
-Natinho, velho, me empresta cinco reais!?
Ao ver sua mão mediana, ossuda e trêmula, previu a quais necessidades se destinaria o dinheiro. A mesma mão, que por si se denunciava, tentava ocultar o fundo cortado de uma lata.
-Artur, velho, vou emprestar porque sei que você tá na fissura.
-Não é pra usar drogas. – Disse Artur em voz e olhar baixos.
-Quem sou eu para dizer o que você deve ou não fazer, Artur. O destino que der ao dinheiro, só custará a você. Se vai custar caro ou não, só você vai saber. Cada um faz da própria vida o que quer. Renato calou-se diante da questão que as próprias palavras lhe acabavam de apresentar.
"O que se quer, ou o que se pode?
O que se quer dentro do que se pode?
Isso é liberdade?
Afinal, quem pode se dizer livre?"
-Valeu, Natinho. - Artur rompeu seu pensamento. -Você é um cara muito legal. Sei que preciso de ajuda, mas não posso ir pra clínica, agora.
-Você não pode, ou você não quer, Artur?
-Artur empurrou a nota amassada para o fundo do bolso de sua calça, que já parecia encerada de sujeira. Fez um gesto de escoteiro, embora nunca tenha sido um, e se foi.
A ironia é que 'Artur' foi, também, o nome do homem que se tornou rei após arrancar de uma pedra, a lendária espada de Excalibur. Artur, o amigo plebeu de Renato, nascido em tempos posteriores à monarquia, tempos de suposta democracia, tentava sacar daquela pedra, mais destrutiva do que libertadora, uma arma para lutar. Qual seria a luta de Artur, o guerreiro do reino perdido? Essa foi a última vez em que se viram. Artur e tantos outros conhecidos de Renato desapareceram. Alguns dos pais desses desaparecidos pareciam nem perceber a ausência dos filhos. Estavam emaranhados demais nas próprias carências. Um filho em casa, que não significasse acréscimo na renda, seria uma boca a mais para comer. As necessidades básicas acabam por minimizar ou aniquilar os valores nobres. Também havia pais a buscar, aflitos, os filhos desaparecidos, assim como havia pais desaparecidos, pais dependentes de químicos, pais agressores, pais exploradores, pais vitimados. Por vezes, tornava-se difícil definir quem era quem. Muitos pareciam ser de tudo um pouco, compartir de uma mesma sorte. Sorte, esta que se anuncia em ditados populares como "Tentar a sorte!; um dia, a sorte muda!; Golpe de sorte!"... Há quem defina a sorte como a boa oportunidade que surge para quem esteja preparado. Assim sendo, pode-se supor que a sorte existe apenas a quem aposte em algum jogo de azar?
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O Catador de Sonhos
AdventureRenato, questionador nato, pobre de nascença, renascido, autor de seu renascimento. Um entre tantos descarados e desalmados pela esmagante multidão. Um sobrevivente, um lutador, um vivo de fome, um faminto de amor e, no palco da vida, um ator. ...