Ao despertar sentiu a superfície fria sob as costas. Abriu os olhos, fitou o teto branco, a superfície irregular. Paredes sujas, emboloradas. Aos poucos desceu o olhar e se ergueu ao notar que não conhecia aquele lugar. Girou o corpo olhando em volta, tentando descobrir onde estava.
Enquanto processava cada detalhe do recinto, Marina sentiu um medo avassalador, uma ameaça pendente e silenciosa. Observou os objetos ao redor com receio. O sentimento de familiaridade incomodava, à medida que ela se movia em torno do próprio eixo e o odor de bebida alcóolica e cigarro invadia suas narinas.
Com um braço estendido, ela se apoiou em uma das paredes e cobriu a boca tentando conter o mal-estar. Permaneceu assim por uns instantes, ofegante, olhos fechados. Até sentir a respiração compassada e o estômago mais estável.
Ainda não sabia onde estava, mas caminhou em direção à porta envidraçada à esquerda e, através da densa névoa, viu um pequeno vulto se movendo por um jardim descuidado.
Subiu o olhar e contemplou o céu escuro. Uma extensa mancha lilás diluía gradativamente a faixa azul-cobalto formando uma massa ton sur ton.
Uma atração irresistível a impulsionou a abrir as portas corrediças e, temerosa, ela cruzou o quintal em direção à criatura que se movia entre a atmosfera brumosa. Uma menina. Então um suave estalido desviou sua atenção. Marina olhou para o lado de onde parecia vir o ruído, indecisa entre segui-lo e continuar acompanhando a garota.
Quando viu que a menina se sentava em um tronco no jardim, decidiu-se pelo som. Voltou-se para a esquerda, uma trilha de terra batida entremeando o jardim que parecia mais um amontoado de plantas. Caminhou olhando para o solo, os pés descalços rejeitando as ondulações do terreno acidentado. Por que estava sem sapatos? — perguntou-se mentalmente.
Afastando os galhos que impediam a passagem, prosseguiu até que avistou o que parecia ser um portão de ferro. Sentiu nascer uma determinação de chegar até ele, mas antes de voltar os olhos para onde pisava sentiu uma dor lancinante no pé
— Ai! — Marina gemeu, acordada pela forte tensão na panturrilha.
Elevou o tronco, esticou as pernas e alcançou com uma das mãos a ponta do pé direito. Então puxou os dedos, até que o músculo começou a relaxar. Droga de câimbra!
Voltou a se deitar e, enquanto esperava a tensão no músculo se soltar, pensou sobre o sonho que acabava de ter. O mesmo três vezes seguidas, mas agora ela havia avançado mais. Não se lembrava de ter saído daquela casa antes, nem da trilha no jardim, e se viu desejando sonhar novamente só para saber o que viria em seguida.
Um lugar estranho, que parecia tão familiar. Marina não era supersticiosa, mas naquele sonho intuía a presença de algo importante, algo que precisava ser desvelado. Uma lembrança?
Sentiu uma pontada na têmpora direita, resultado das duas taças de chope que havia tomado na noite anterior. Gostaria de ficar na cama naquele sábado, mas não podia.
Marina se levantou, tomou um banho, vestiu uma roupa casual e, menos de uma hora depois, estava no CTI pediátrico em que trabalhava como pedagoga hospitalar. Chegava em cima da hora, mas em tempo de ver o garoto com quem tinha convivido uma longa temporada.
Ela sorriu, contente ao ver a alegria do menino, mas não demorou a se despedir.
Antes de partir, passou pelo boxe de outros pacientes para cumprimentá-los e já caminhava em direção à saída quando ouviu a voz do médico, coordenador do CTI.
Com um olhar interrogante, voltou-se e aguardou que ele se aproximasse.
— Bom dia — o médico a saudou.
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BRUMAS DO PASSADO - SÉRIE PRETÉRITO IMPERFEITO (Degustação)
Storie d'amorePara alguns a felicidade pode ser eterna; outros a consideram efêmera. Na vida de Marina Avila, uma jovem e solitária bailarina, trata-se de um delírio, um sonho impossível; a felicidade não existe para pessoas que sequer toleram ser tocadas. Ningué...