Amor de mãe

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"Quando mentiras se tornam verdades eu me sacrifico por você" - Within Temptation

Eu me lembro de ter vagado pelos cinco rios dos Hades. De ter chorado enquanto bebia do Aqueronte, pensando numa vida que não pertencia à mim e depois fui tomado pelo lamento de Cócito, culpado por ter deixado os que cuidaram de mim como um idiotazinho mimado e mal-agradecido. Mas a culpa passou, sendo ocupada por uma raiva descomunal, incendiando meu próprio corpo pela primeira vez.

Foi o torpor ao qual uma criança não estava acostumada. Minhas veias não tinham mais o cheiro que sangue normal deve ter, era algo mais negro que elas continham agora, enxofre do submundo. Estava condenado.

Minha carne era apenas um trapo queimado em poucos minutos, eu até conseguia ver o músculo do coração bater sob ela. O gosto metálico entorpecia minha língua de modo que não conseguia proferir sequer uma palavra.

E lá estava ele.

Conhecem a expressão "O que não te mata, te fortalece", ou nesse caso, não te deixa ser esquecido. O Estige era responsável pela tamanha força de Aquiles, pela sua invulnerabilidade épica, ao passo que o Lete me faria esquecer tudo aquilo, a dor, a mentira... Mas também, havia um porém para quem se aproximava do Lete...

"Beba dele, jovem guerreiro, mas lembre de manter o corpo longe da margem, ou então você pertencerá ao nada".

Caso eu adentrasse aquelas águas, eu seria o esquecido. Não passaria de mais uma vaga alma dentre aquelas as que meu... Pai guardava, eu seria apenas um mortal de destino infeliz. Um nada.

-Não vai querer isso. Não foi o destino que eu quis para você. – Uma moça de cabelos iguais aos meus, mas desgrenhados, usando uma mortalha coberta de teias de aranha. – Mas você deveria me dar tudo! – Choramingou, eu só conseguia pensar no quanto minha pele ardia naquele chão imundo.

-Quem...? – Alguma coisa dentro de mim sabia a resposta, aquela voz, o jeito como falava... Parecia um resquício de sonho, de um sonho mais antigo do que eu.

-Olhe só para você... Meu menino tão lindo... Que nome te deram? – A moça se aproximava de mim com cuidado, como se tivesse medo de chegar rápido demais e acontecer alguma coisa.

-Brian. – Respondi. – Mãe? – Arrisquei, e em resposta ela fungou rápido.

-Faz sentido, não é, meu rei? – Não... tinha algo errado... O olhar das mães deve ser carinhoso e, o dela era de... Nojo? Nojo de mim?

-Fique longe dele! – Essa voz eu conhecia bem, e, mesmo sem conseguir vê-la, eu sabia que estava carregada de cabelos de fogo usando qualquer vestido bonito e vivo demais para aquele lugar. – Seu verme asqueroso com voz de mulher! – E então a pessoa debaixo da mortalha foi arremessada contra uma parede de pedras vermelhas. – Não tem o direito de sequer falar com ele!

-Não...

-Ah, Brian! – Perséfone correu ao meu socorro, colocando as mãos em cima de mim, receosa de só conseguir machucar mais. – O que...? Ah!

-Vocês têm o menino! Por que continuo aqui? – A moça berrou, de um jeito que me fez encolher no meu sangue. – Por que continuo nesse inferno!?

No entanto, a deusa sobre mim não respondeu, ela não conseguia, eu acho, fazer nada naquele momento que sobrepusesse apenas olhar para mim e sorrir de um jeito apaziguador.

-Vou te tirar daqui, filho, vou sim, e vou adiar minha viagem, eu prometo. Até você ficar melhor.

-Não! Não até eu sair daqui! Vocês me devem isso por esse demônio! Esse... Esse monstro!Eu o ofereci à escuridão em troca de uma vida! Eu não o matei à toa!

Era isso o que aquela mulher pensava de mim, no final. Do que eu não passava. O que ela fizera comigo. Ela quis me matar e...

MONSTRO?

Como pode uma criança ser um monstro? Seu próprio filho?

-Você não é isso. – Perséfone sussurrou. – É meu príncipe. – Agora um bolo tinha se formado na minha garganta e a pele fina soltava mais gosto de sangue, de um jeito que eu não conseguia sequer falar qualquer palavra solitária. – Morda a língua, sua bruxa! – E num movimento de mão a moça na parede soltava um cheiro de queimado igual a mim, só que era mais podre. – Vem, meu amor, vamos para casa.

-Então é isso? Vai me queimar? Me matar? Não pode fazer algo que já está feito! – E um riso perturbador saiu dela. Da mulher que deveria me amar.

Enquanto a que mentiu para mim envolvia meu corpo em seus braços, num carinho, não se importando com o fato de eu ser uma massa de sangue, pus e carne queimada. Mas ela não me soltou. Ela me amou naquele momento.

Assim como em todos os outros.

E eu tinha lhe dado as costas no primeiro problema, só porque não tínhamos o mesmo sangue. Isso não significava que não éramos uma família, pelo contrário, por tal motivo, o conceito de família era mais forte, por Perséfone ter me dado tudo o que uma mãe deve dar ao filho, um filho ingrato. Deixei a cabeça pender sobre seu braço, olhando para a moça com pele queimada que ficava para trás. Ela tinha ódio nos olhos, não remorso ou dor ou arrependimento. Apenas ódio. O único sentimento que conseguia nutrir por mim.

Ótimo, pensei, então ódio seria o único sentimento que eu teria por ela. E nas minhas condições, ser considerado um demônio não era uma ofensa, mas uma parcela mínima do prelúdio do seu sofrimento, e eu gozaria sobre ele.

Eu seria o Hades. E que os deuses tenham piedade dela, pois eu não terei.


O Filho da Morte (EM PAUSA)Onde histórias criam vida. Descubra agora