Numa manhã - creio eu - meus pais imortais me chamaram para uma conversa. Era Dezembro, e junto com ele, o inverno lá em cima alterava um pouco as coisas aqui embaixo, o submundo estava mais frio do que o habitual e, minha mãe trajava um longo casaco de pele escura enquanto Hades exibia-se em sua armadura, segurando o elmo ao lado do corpo. Perséfone tinha uma sombra de tristeza no rosto, o que me deixou preocupado, muito preocupado.
-Aconteceu alguma coisa? - Coloquei minha espada no canto e retirei meu próprio elmo, com um pouco de dificuldade por causa do amassado no lado esquerdo. - Senhora?
-Cinco minutos. Eu só a tive nos meus braços por cinco míseros minutos... - Sussurrou.
-Quem? - Andei em sua direção, mas parei assim que percebi o que iria fazer. Mantive a postura firme e segurei meu pulso nas costas.
-Finalmente encontramos a afilhada que sua mãe precisava... Mas...
Mas? Qualquer sentença que começasse com essa palavra não significava coisa boa. Nunca significava. Não foi diferente naquele dia. Por isso a tristeza da minha mãe.
-Tive que devolvê-la.
-Ela não pode crescer aqui, Brian, não quando nem mesmo sua mãe cresceu. A menina precisa conhecer o mundo lá de cima, primeiro, e nós dois sabemos disso, querida.
Perséfone fez que sim com a cabeça, a contragosto, mas fez, virando o rosto para onde uma lareira crepitava baixo, no tom daquela conversa, ainda calma. Eu podia ver como seus olhos não exibiam mais o brilho usual, ou a boca não se se curvava, nem mesmo um pouco, para cima, numa linha reta. Eles estavam torcidos para baixo, seus olhos pareciam fazer a mesma coisa. Os ombros debaixo do casaco haviam perdido a altivez.
-Eu não entendo, não seria mais fácil se minha irmã ficasse aqui? - Era privá-la daquilo quando eu não era mais capaz de suprir sua necessidade maternal. - Do que sofrer o risco de ser estragada pelos humanos?
-Ah, meu querido... Ela pertence a eles, ainda, enquanto ainda é jovem e inocente... Assim como eu, antes de... Bem, seu pai resolveu que precisávamos conversar com você sobre ela.
-O que tem? Claro, além dela não crescer comigo... Eu seria um ótimo irmão mais velho, não seria? E vou ser, minha senhora, não precisa se preocupar com isso, quando ela descer eu...
-Cora não será sua irmã, Brian. Será sua esposa.
Eu mal tinha chegado à puberdade e já tinha um casamento nas costas, com uma esposa que tinha acabado de vir ao mundo. Um bebê careca, sem dentes...! Engasguei com as palavras de Hades, olhando para Perséfone com os olhos quase saltando da órbita, esperando que ela risse bem na minha cara e dissesse que aquilo não passara de uma brincadeira para quebrar o tédio.
No entanto, minha mãe não riu, ou meu pai.
-Esposa...? Como vocês? Mas ela é um bebê! - Perséfone se levantou, com o olhar tomado por uma seriedade que eu nunca tinha visto antes, beirei o fato de ter medo dela pela primeira vez. E... Cora?
-Ela não será um bebê para sempre, nem você, uma criança, não é? Cora será sua responsabilidade quando o tempo dela vir à nós chegar, vai cuidar da minha menina, Brian, e em troca terá uma rainha poderosa ao seu lado, governando e dando apoio como eu dou ao seu pai. - Aquelas palavras não significavam nada para mim, não quando a noção de romance se limitava ao que eu via neles, e não os invejava por não ter algo parecido. Eu não precisava daquilo.
-Agora. - Foi a vez de Hades falar. - Agora você não precisa, mas, como sua mãe colocou, não será uma criança para sempre, Brian. Se me dão licença, tenho alguns assuntos para resolver, Perséfone, diga o que ele precisa saber, mas não o encha com qualquer bobagem romântica. - O tom que ele usou fora frio e fez a mulher que aparentemente amava se encolher nos ombros. E saiu da nossa linha de visão.
Perséfone pediu que eu sentasse no divã perto do fogo, para ela, minhas roupas não condiziam com o inverno, mas claro que eu não era de sentir frio assim, não com o treinamento que Hades andava tendo comigo. O clima não era um inimigo, apenas um deus furioso, eu deveria saber lidar com ele como nada além de uma pessoa. Dobrei os joelhos ali mesmo no cão, sendo acompanhado por ela.
-Querido, você sabe o que significa o termo afilhado? - Disse que não, mas ficar calado não era do meu feitio.
-São humanos dos quais vocês cuidam, humanos especiais.
-Humanos especiais como você, que tem uma aura... Única, uma aura forte, que tomamos para nós, mas... Não apenas para criar. Brian, um dia você será rei daqui. Quando seu pai morrer, ele vai passar tudo o que tem para você, cada lembrança, cada faísca de poder, cada alma que habita aqui até o último cão negro será seu.
-Está dizendo...
-Afilhados são a continuação do nosso legado, do nosso poder, da nossa responsabilidade quando nós não podemos mais. São o futuro, Brian. É isso o que você significa, e a minha Cora, também, por isso é importante que haja pequenos sacrifícios e reconsiderações. Eu te amo, filho, e te peço hoje para abrir mão de uma vida que ainda nem conheceu, desistir de um amor que sequer experimentou em troca de poder, de um trono e de uma rainha. De uma vida perfeita e gloriosa. É o que eu te ofereço. Você aceita, meu Brian?
Engoli em seco, olhando aquela mulher assustadoramente persuasiva que me oferecia um mundo incrível e que muitos matariam para conseguir. Claro que, tendo isso, a certeza de ser, também, tudo o que meu pai esperava. De não decepcionar os que me deram tudo, inclusive a vida. Eu não conseguia pensar em mais nada, queria apenas ser o que eles queriam que eu fosse, queria nunca desapontá-los.
- Déchomai na eínai vasiliás sas, kyría mou. - Beijei sua mão com cuidado e saí da sala para a área de treinos, deixando meu elmo no mesmo lugar que o soltara. Não precisaria mais daquilo.
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O Filho da Morte (EM PAUSA)
FantasyBrian não era como os outros. Nunca foi. E o motivo disso envolvia o fato de que desde sua concepção, sua alma pertencia à escuridão. Uma madrugada insana.Uma morte prematura. Sangue. E um Deus dos Mortos furioso marcaram sua quase morte e nascimen...