A mentira

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-Joelhos separados, garoto, não quer cair de novo, quer? – Hades não era um exemplo de paciência, isso eu devo salientar, mas no fim, acabei percebendo que nem mesmo eu conseguia ser. Perdia a cabeça nas mínimas escolhas que se pode fazer durante uma luta. Uma luta de mentira. Para minha felicidade senão decerto já estaria morto. E mamãe me procurando no rio Estige.

Seria doloroso demais para minha mãe.

As coisas tinham mudado um pouco desde nosso último encontro no salão principal. Hades havia me concedido a honra de sair numa expedição com seus soldados e isso havia custado uma discussão enorme com a esposa sobre eu não ser maduro o suficiente para sair numa excursão dessas, mas o que ela poderia fazer? O mês de sua estada no mundo de cima se aproximava e tendo a permissão dela ou não eu ainda seria enviado com os soldados. Meu pai tinha razão em alguns pontos. Eu era alto para minha idade, inteligente e perspicaz, pelo menos mais do que a maioria me dizia, afinal, não havia muitas – para não dizer nenhuma – crianças no submundo. Não era um lugar bom para criá-las a menos que a situação se definisse na minha própria. Um marcado dos deuses, prometido mesmo antes de ser dado à luz.

A quê? Eu não sei.

Por quê? Uma ideia breve e idiota, mas não era a verdade.

Meus pais apenas diziam que meu sangue, como o deles, tinha o poder do mundo dos mortos e um dia eu entenderia tudo, quando eu perguntava mais, apenas viravam o rosto e repetiam que era uma história dramática e ignoravam os muitos detalhes, Hades me pouparia deles até que tivesse idade o suficiente para tomar alguma decisão relevante para o reino. Era o que ele dizia.

Agora eu me preparava no meu quarto, colocando um projétil de armadura de bronze frio pesada enquanto os demais se preparavam nas instalações abaixo do rio, nos juntaríamos a eles mais tarde. Coloquei o elmo embaixo do braço e observei o reflexo no espelho... Teriam todas as crianças essas feições? Machucadas? Como se fossem amaldiçoadas?

Toquei meu próprio rosto, a pele era suja de fuligem e grossa, com uma cicatriz fina perto dos olhos, quase imperceptível quando o cabelo estava grande, o que era mais comum. Eu não gostava quando Perséfone o tentava cortar, assim era mais fácil para se misturar no meio dos outros.

-Está cada dia mais parecido com ele. – Minha rubra mãe, usando um casaco e sandálias, acessório incomum quando passava a maior parte do tempo caminhando descalça.

-Obrigada, minha senhora. – Ela piscou rápido, balançando a mão no ar, criando uma flor dourada e colocando perto de as armas ficavam.

-Ó, pelo amor de Afrodite, odeio quando me chama assim, sabe disso.

-Desculpe, mãe. Mas é uma forma de respeito para com a rainha, não é?

-É, sim, certamente. Para os outros, não para o meu próprio filho, não é um escravo ou súdito meu, Brian. – Ela não parou – E vejo que suas aulas estão sendo produtivas... O que mais aprendeu? – Vi-a sentar na minha cama, dando breves tapas no lugar ao seu lado como se fôssemos amigos confidentes e aquele não passasse de um encontro corriqueiro mesmo ela sempre vindo aqui antes que eu dormisse para cantar enquanto alisava meus cabelos. – Venha querido, passaremos meses sem nos ver, vai privar uma pobre mãe de alguns minutos a sós com o filho?

-Não seja dramática, mãe.

-Não estou. – Sentei-me ao seu lado enquanto ela tentava esconder a ânsia de chorar, mordendo o lábio de baixo e franzindo de leve as sobrancelhas. – Meu menino forte, quanto pode mudar em seis meses? Deixe-me ver bem seu rosto,deixe-me olhar uma última vez esses olhos azuis... – Ela sabia que tinha algo a mais naquela expedição, mas claro que não contaria para mim, não até eu tudo tivesse sido feito. – Sempre fui apaixonada por eles, são tão...Delicados. Perfeitos demais para este inferno! Não é justo que...

-O que, mãe?

A mulher riu, tremendo a voz enquanto me abraçava forte.

-Não é justo que não possa levá-lo comigo. Adoraria as cores lá de cima, o sol, o calor... Bom, isso não. – Rimos. – Talvez, quem sabe, a neve? É frio e poderíamos fazer anjos na neve.

-Anjos, mãe?

-E ver a chuva.

-A água que cai do céu? – Eu tinha todas as imagens que ela trazia do mundo de cima, cada cheiro e cor.

-Sim! E veríamos a lua e o céu... – Tratei de interrompê-la, pensar nessas coisas tomariam minha cabeça e eu não ficaria focado, algo que não poderíamos ter.

-Mãe, eu não preciso dessas coisas, vê-las ou tocá-las. Hades desaprovaria isso.

Eu não deveria ter dito aquilo.

-Aquele acéfalo desaprovaria até mesmo uma formiga que não anda em linha reta! Não seja como ele, meu príncipe... Você deveria ver o mundo, ver... As coisas lindas que ele têm e não apodrecer aqui!

-Não cabe a senhora decidir isso. É algo que eu quero. Quero que meu pai se orgulhe de mim, de dizer que o filho dele já é um homem...

-...Meu Brian, meu pequeno guerreiro, há mais coisas importantes nesse mundo do que...

-Perséfone, agora chega. – Era meu pai. Pulei para ficar em pé enquanto minha mãe alisava o próprio casaco, olhando o marido encostado na porta aberta. A armadura de meu pai era nega, assim como o elmo que trazia em mãos. – Diga o que precisa dizer e vá embora, o menino não precisa de melodrama em campo de batalha.

-Campo de batalha? – Zombou. – Ele é uma criança, Hades! É o nosso filho, nosso! Não pode decidir sozinho o que ele tem ou não que fazer. Não...! – Hades olhou para mim e em silêncio pediu para que eu me retirasse do quarto.

Creio que decidi um péssimo momento para ser insubordinado e permaneci à porta, me esgueirando pela parede para escutar os dois. Minha mãe chorava, fungando alto e claramente eu conseguia vê-la abraçada ao meu pai, um homem bem mais alto e forte do que ela envolvendo todo o seu corpo como se não passasse de uma criança.

-Nosso menino, Hades.

-Não, Perséfone... Sabemos disso, se fosse de nosso sangue, nunca iria ter que passar por isso. – O quê? – Se Brian... Fosse realmente nosso... Olhe, ele não é como os outros, sabe disso. Na verdade, sempre soube.

-Sim, mas...

Não fiquei para escutar.

Nem fui naquela excursão.

Ou dei um beijo de despedida na minha mãe. Tampouco peguei a flor dourada que ela sempre deixava quando saia para ver minha avó. Não me importei para o que quer que fossem mentir depois disso. Para uma criança, ter esse tipo de notícia é sempre traumatizante, mas eu nunca soube como uma criança deveria agir, sempre tentei imitar os adultos e, no momento, qualquer adulto ficaria bravo, sairia pisando forte ou tentaria confronto físico.

Sair fazendo cara feia não era do meu feitio, no entanto, foi menos doloroso do que ter que enfrentar fisicamente meu pai e acabar dentro de um fosse por uma semana. Apodrecendo.

Seria melhor do que ter que olhar para aqueles mentirosos mais uma vez e fingir que era igual a eles. Que não era mais do que um escravo, servo... Eu apenas servia para o que me indicavam, vivia o que me propiciavam e treinava para estar ao seu dispor. Para o quê? O tempo diria. Quando? Eles decidiriam.

Não eram minha família. Claro, no fundo eu sempre soube que tinha algo errado, mas o pode uma criança indagar para o rei do submundo no jantar? O durante um treino? Simplesmente não conseguia acreditar. Todos os beijos de boa noite. O carinho. O fato de Perséfone querer que eu saísse daquilo tudo.

Seria para proteger a mim? Ou a ela? Poupá-la de assumir que mentiu? Que me tirou da minha mãe de verdade.

De onde eu vim? Quem são meus verdadeiros pais? O que vocês fizeram com eles? Onde estão? Posso vê-los?

Perguntas demais são pragas para os sensatos, uma vez que a ignorância é chave para a felicidade.

Por isso eu só saí dali.

Fui por um caminho que não tinha mais volta.

Aceitando que não fazia parte daquilo ou deles. Do amor deles. Do amor. Foi difícil não pensar em Perséfone. Até mesmo em Hades, ou no meu quarto incrível, nas aventuras que eu poderia viver. Mas seria mais difícil ainda viver uma vida que não era minha.

O Filho da Morte (EM PAUSA)Onde histórias criam vida. Descubra agora