O Feijão Tá Muito Caro!

69 3 2
                                    

~Narrado por Teresa~
Abri o chuveiro, com a cabeça rodando e o coração apertado, mas batendo como um pandeiro.
"Como podemos ajudar essa menina, meu Deus?", pensei, sentindo a água cair em meu corpo.
Engoli seco, me lembrando mais uma vez da imagem de 122, assustada e encolhida... Só de lembrar, me cortava o coração...
A água caiu em meu rosto, escorrendo pelo meu nariz e quase me afogando, como sempre. Bom, comigo, até meu banho era meio cômico... Eu era uma piada, fala sério!
Afastei meu rosto da água, antes que me afogasse de verdade, e balancei a cabeça, tentando arranjar uma solução que ajudasse a menina e, definitivamente, chamar a polícia não era essa opção, seria fácil demais, além de desconfortável para a coitada.
Espalhei o shampoo por meu cabelo, passando de leve as unhas no couro cabeludo.
Eu senti dó, confesso, e vontade de abraçar ela e dizer que tudo ia passar, mesmo que eu não soubesse direito o significado do "tudo"...
Podia até ser que ela não quisesse voltar para casa, dependendo de onde vivia. Ela podia ter sido maltratada, ou só estava de saco cheio do povo, como eu um dia estive...
E foi como se eu tivesse voltado à casa antiga dos meus pais, depois de mais uma discussão costumeira...
"Um dia eu ainda vou fugir daqui, certeza!", pensei, trancando a porta do meu quarto, e a janela também, pra os pestinhas não escalarem a 'torre'.
Talvez eu ligasse pra Ash vir me buscar com a tia dela, elas tinham uma vida dos sonhos morando juntas! A Ash tinha 16 anos e a Maggie tinha 34, tipo, Ash foi morar com a Maggie quando a Maggie tinha 21 anos! Pensou?
Tá, os pais da Ashley tinham morrido num acidente, mas aposto que sua mãe também era super maravilhosa! Até a avó dela era mais legal que minha família inteira! A senhorinha tinha 60, mas viajava até pra ver os cangurus!
Eu definitivamente não tinha nascido pra aquela família, simplesmente não me encaixava! Minha mãe era filha única, então eu não tinha nenhuma tia legal. Meu pai tinha uma irmã coelha, eu tinha 6 primos, tudo um bando de chato e quadrado!
Minha mãe quase me trucidou quando eu apareci com uma tatuagem de HENNA no pulso! Era só uma pombinha, cara! Não tinha nenhuma coisa muito UAU!
Devia ter feito a permanente logo, já era maior de idade mesmo! Ela não podia controlar meu corpo! Não mesmo!
Liguei a música no último volume, nem me importando se ficaria surda aos 90 anos, só queria espairecer a cabeça e colocar os pensamentos em ordem... Pelo menos por um momento.

Ouvi as risadas vindo do andar de baixo, provavelmente meu pai tinha falado alguma coisa cientificamente engraçada, ou coisa assim... Era só disso que minha mãe e meus irmãos riam, com aqueles óculos fundo de garrafa, parecia até de nerd, só faltava a fita crepe na frente!
Depois das risadas, os passos de minha mãe correndo na escada. Mas, espera, minha mãe só corria quando tinha uma notícia...
-Teresa! - gritou ela, batendo diversas vezes na porta do meu quarto.
-Não tô! - falei, rolando os olhos.
-Abre logo, menina! - falou, impaciente.
Bufei, como um cavalo que relinchava, e abri a porta, encarando a pessoa na minha frente.
Eu tinha os cabelos mais ruivos do que os dela, que estavam presos em um rabo de cavalo, que deixava sua testa uns cinco centímetros maior!
-Que é? - perguntei, seca, como sempre.
Não, eu não era assim rebelde com todo mundo, só com eles mesmo!
-Seu pai ganhou uma promoção pra trabalhar no laboratório de pesquisas na Antártica! - falou ela, animada.
-E...? - falei, sem nenhum interesse.
-Vamos nos mudar - falou, esperando minha reação.
Ergui as sobrancelhas, arregalando os olhos. Mais essa? Nananinanão!
-Que bom que eu não me incluo nesse vamos - falei, com um sorriso sínico - Que bom pra vocês, sério!
Ela franziu as sobrancelhas, acentuando a ruga que tinha entre elas. Ela podia fazer uma plástica, sei lá... Dinheiro pra isso não faltava!

E foi assim que eu decidi aceitar o convite de Maggie e ir morar com elas! Foi a melhor decisão da minha vida, e, pela primeira vez, minha família ficou feliz com ela!

Voltei ao banheiro, com meu patinho companheiro.
Quem me vê hoje em dia, sempre me acha uma pessoa legal, leve e meio diferente, mas eu nem sempre fui assim. Já tive meus dias de fúria, de tristeza, de auto piedade e crises existenciais... Como qualquer um. E o que eu aprendi com tudo isso foi que você sempre pode dar a volta por cima, recomeçar, mudar de estilo, de personalidade... Não viver pra agradar à todos é o primeiro passo.
É... Vendo por esse lado, 122 não se parecia tanto assim comigo, era só uma breve semelhança...
122 parecia tão frágil, mas, ao mesmo tempo, com uma determinação de adulto. Mesmo que tivéssemos insistido pra saber alguma coisa, ela manteve em oculto, em segredo, como se não pudesse falar pra ninguém de onde veio, ou o que faziam com ela lá... O que sabíamos era que não eram coisas muito boas. Essas coisas a deixaram com medo até da própria sombra e, posso não ser uma especialista, mas sei que isso não é saudável para uma criança.
Digamos assim, ela devia ter uns 12 anos e sabia guardar segredos melhor do que eu... Que vergonha hein, dona Teresa?!
Passei o creme no cabelo, enxaguando em seguida.
Desliguei o chuveiro, que tinha uma torneira de patinho! Ah, não me julgue! Ela estava mais barata do que a normal, e fazia até "Quá Quá", quando você apertava!
Sorte eu, a Maggie e a Ash nos dávamos bem, senão ia ser difícil... Eu era extremamente grata à Maggie e a Ash, por tudo que elas fizeram e continuava fazendo por mim. Gostaria de retribuir de alguma forma, mas, como muitas outras coisas, eu não sabia como...
Eu não sabia nem como eu ia conquistar meu marido quando cassasse! Nem SE eu iria casar!
Enrolei uma toalha na cabeça e peguei a de corpo, enrolando-a no corpo.
Abri a porta, indo me trocar no quarto.
Ia esfriar, eu sabia disso, o céu tava encoberto, meio nublado, podia até chover! Precisava chover mesmo, aguar as plantas, deixar um pouco de lama pro Josh limpar depois...
Coloquei meu jeans rasgado e meu moletom do Piu Piu, que eu já tinha separado antes, no quarto branco e verde.
Fitei a imagem no espelho e sorri, vendo a pessoa que me tornei nesses últimos anos. Tatuagens ocupavam alguns lugares do meu corpo, na pele clara. O cabelo, sempre ruivo, com o corte repicado, mas mesmo assim longo.
Bem diferente da menina de corte Chanel e óculos grossos do fundamental! E, cá entre nós, as lentes de contato ajudavam bastante!
Enfiei meu celular no bolso do jeans e calcei um par de tênis, me dirigindo para as escadas.
Fiquei no alto da escada, escutando Ash falar com a 122.
-Eu vou pegar roupas limpas pra você, aí você coloca depois de tomar um banho - falei, indo guardar a caixa na cozinha - Você pode até dormir no meu quarto, se quiser!
Sorri fraco, sentindo orgulho da minha amiga. À essa altura, eu já sabia que ela ia dar o seu melhor pra cuidar da menina, e eu iria ajuda-la!
Meu, cá entre nós (2), Ash tinha gostado mesmo da 122, pra estar tããããão preocupada! Porque a Ash podia ser bem fria e insensível quando ela queria! Talvez estivesse mudando...
Desci as escadas, olhando para Ash, com os olhos semicerrados.
-Falou com sua tia? - Perguntei, já sabendo a resposta.
Ashley não era previsível, mas eu a conhecia desde o jardim de infância, era tempo pra caramba!
Ela tirou o celular do bolso do avental - por que diabos ela ainda estava com aquilo?! - e foi para a cozinha.
-Ash fez um bom trabalho, né? - Sorri, me sentando ao lado de 122.
Ela olhava para o alto da minha cabeça, onde eu tinha um topete de toalha.
-É pra secar o cabelo - expliquei, tirando.a toalha e agitando a cabeleira ruiva.
Gotículas de água caíram no rosto dela, a fazendo sorrir.
-Seu sorriso é muito bonito - falei, sorrindo também.
Ela franziu as sobrancelhas.
-Sorriso?
Arqueei as sobrancelhas, quase não crendo no que ouvia.
-Sorriso - com o dedão e o indicador, abri um sorriso em meu próprio rosto - Assim.
Ela repetiu meu gesto, sorrindo de novo.
-Bonito - assentiu, olhando em meus olhos.
-Muito bonito! - Falei, dando ênfase no muito e tocando a ponta de seu nariz - Você é linda!
Sabe, eu posso não ser formada em psicologia, mas eu já fui da idade que a 122 tem e, às vezes, tudo o que precisamos ouvir de alguém é isso. É bom ouvir de outras bocas que nós temos valor, que somos bonitas, inteligentes ou espertas... São como palavras mágicas.
Podem ser ilusórias também, dependendo de quem a falasse. Já sofri bastante com essas palavras! Ui! Até doía o pâncreas!
Ela sorriu, mas o sorriso logo foi embora, quando as mãos dela foram parar na cabeça raspada.
Por um minuto, quando entrei na cozinha e vi aquela menina comendo sorvete, pensei que ela tinha fugido do hospital do câncer, mas depois o pensamento foi embora...
-Ainda bonita? - Perguntou, apertando os lábios.
Sorri largo, assentindo.
-Muito bonita, por dentro - toquei seu busto - E por fora - passei de leve a mão em seu rosto.
Ela sorriu novamente, com os olhinhos brilhantes.
Segurei a mão dela entre as minhas e dei um beijinho, na parte de cima da mão.
Á essa altura, ela ainda estava sorrindo, devia estar com as bochechas doendo, mas era exercício, né não?
Sabe, pode parecer estranho, mas eu não queria que ela voltasse para seja lá de onde veio... Não que eu sentisse falta dos meus irmãos - Cruz Credo, não era isso não! -, era só... Sentir que alguém precisa de você muda tudo.
Eu gostava de ajudar, amava, na verdade. Então, em qualquer brecha, eu me jogava de cabeça, fazendo o melhor que eu podia.
Se bem que eu conseguia ser uma piada até nisso, mas já era normal eu parecer uma personagem de desenho animado, daqueles que tropeçam no ar!
-O que você gosta de fazer? Gosta de desenhar? - Perguntei, tentando arranjar alguma coisa pra ela sair do tédio.
Ela balançou a cabeça para os dois lados, com movimentos rápidos.
-Ok... Então vamos esperar a Ash terminar de falar com a Maggie...
Tinha algo em desenhos que a incomodava, e eu ia descobrir o que era!
Eu não gostava de desenhar, nunca gostei da ideia de pintar dentro das linhas! Não era obrigada!
-Teresa! - Berrou Ash, da cozinha - Tá afim de ir no mercado hoje?! Ou vai querer pedir uma pizza de Bacon, daquelas bem gordurosas, pra a gente morrer aos poucos?
Rolei os olhos. Minha amiga sabia que eu era uma pessoa que se importava com a saúde, por isso a chantagem da pizza.
-Faz a lista, brucutu! - Berrei de volta, rindo fraco.
Pensa: Três mulheres crescidas, moravam juntas, berravam o tempo todo, mas nunca ficavam roucas... Pensou? Então, imagino que tenha pensado em mim, Ash e Maggie... Só acho!
122 me olhava, atenta. Era bem observadora, não queria nem saber.
Eu não era muito de ir no mercado, Ash e Maggie que gostavam de fazê-lo, mas fazer o que... Tudo por uma alimentação mais saudável.
122 voltou a abraçar os joelhos, encaixando a cabeça sobre eles.
Ash veio para a sala, balançando um papelzinho com a lista.
-Se lembrar de alguma coisa, pode comprar, e compra doce também - falou, me dando a lista.
Rolei os olhos, sentindo um beijo na minha bochecha.
Sempre fomos assim, uma fofura bem exótica!
-Já falei que te amo? - ela sorriu, me abraçando por trás.
Ela era meu apoio, minha psicóloga, mãe e médica... Me ajudava em tudo e tinha um jeito pra todas as situações! Eu agradecia muito por tê-la comigo. Não sabia o que seria de mim sem ela...
Dei um beijo na bochecha dela e peguei minha bolsa acenando antes de sair porta afora.
Eu tinha a chave reserva do carro comigo, já que o usava junto com Ash.
Antigamente eu tinha um pouco de medo de dirigir em Deadwood, por causa de tantos turistas querendo ver os cemitérios do velho oeste. Eu achava isso uma bobeira, mas quem sou eu pra julgar?
Liguei o rádio, que tocava uma música que eu conhecia, e amava! Eu lembro quando eu e a Ash ficávamos sozinhas na casa da tia dela, quando Maggie estava trabalhando no café... A gente ligava o som alto e ficava dançando, as duas loucas que sempre fomos! Uma das músicas que gostávamos era essa...
Virei a rua que entrava na cidade e conduzi o carro pelas ruas da cidade com aspecto antigo. Parecia que a cidade tinha parado no tempo, mas era uma cidade muito bonita! Com as ruas de paralelepípedos, vários antiquários e cafés retrô. Esse aspecto vintage era até que legal!
Estacionei o carro em frente ao mercado e peguei a bolsa e a lista, saindo do carro.
Depois de me certificar de que o carro estava travado, entrei no mercado, que já costumávamos ir.
Sorri para algumas atendentes e peguei uma cesta, pegando a lista para ler.
"Cenoura, pq temos uma coelha Maggie em casa
Feijão
Macarrão
Tomate
Salada
Leite
Café, muito café!
Coisas para passar no pão
Pão pra passar as coisas
Doces para a nova integrante da família"
Quando li o ultimo item, meus olhos embaçaram, acho que entrou algum cisquinho...
Eu não tinha pensado na 122 como um novo membro da família, mas era uma boa ideia... Ver minha amiga tão preocupada em cuidar da 122 era orgulhante!
Maggie com certeza iria abraçar a ideia e acolher a garota de braços abertos, eu sabia muito bem disso! E eu também gostava da ideia, era como ter uma irmã mais nova, ou mesmo uma filha postiça... Uma filha...
Sorri, virando o papelzinho para ler o restante.
"Agora não é mais lista não, fica tranquila, minha baixinha!
Teri, eu só queria te agradecer mesmo, por tudo o que você já fez por mim, e continua fazendo.
122 veio parar nas nossas vidas de uma forma engraçada, e eu não vou me contentar com o fato de o nome dela ser um número!
Eu sei que vamos conseguir cuidar dessa menina, dando todo o carinho e atenção que ela precisa.
Te amo, ruivete!
Ass: Aquela que limpou o mijo do gato"
Ri fraco com a assinatura de Ash, e fui procurar o café, que era o item mais importante da lista.
Uma das coisas que eu mais gostava no mercado era observar as pessoas e o que elas compravam.
No carrinho de uma senhora, com o cabelo levemente azulado, tinham três pacotes de papel higiênico. Essa família ia se dar bem com o gato mijão...
Tinha uma mulher meio punk, comprando chocolate amargo... Nossa, essa daí gostava de preto até na comida! Também tinha arroz selvagem e feijão preto no carrinho dela.
Tinha um casalzinho bem apaixonado no corredor das massas, deviam ser recém casados. Ownt, que fofinho! AAAAARGH, me poupe!
Nada contra os casaizinhos apeixonados, mas também não precisa matar os outros de diabetes também, pelo amor!
Uma coisa que concluí nessa ida ao mercado: O feijão tava muito caro, dava pra comprar um quilo com uma barra de ouro.

Dimensão dos Portais AbertosOnde histórias criam vida. Descubra agora