Delírio

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Markus acabara de sair do C.I.

Martelava a sua mente tudo que Murakami havia dito embaralhando-se. Lembrava com exatidão onde deveria ir, apenas, o resto soava como um sonho inteligível.

Atravessou a rua que dava no viaduto - os taxis e ônibus passavam assoviando ao seu lado - para então subi-lo, dar a volta e enfim chegar ao seu destino. Um lugar onde se reuniam artistas fracassados e mendigos, empresários falidos e ladrões, investigadores que ousaram ir longe demais em seus estudos. Todos os excluídos e renegados iam todas as noites ao bar que ficava em baixo do viaduto, na parte mais central da cidade, esse era o "Lar dos párias".

Em frente ao bar aglomeravam-se degenerados que não conseguiram entrar, ficando por ali mesmo. Traficando, bebendo, e drogando-se. Dentro o caos é ainda maior, com gritos e palavrões, brigas e discussões, mortes e comemorações.

Precisava falar, lembrou Markus das palavras de Murakami, com o homem mais velho e excêntrico que atendesse pelo nome de Coelho, e a busca seria dura. Por aqueles cantos muitos se consideravam coelhos.

Ao enfim conseguir chegar do outro lado da rua, após desviar-se do transito enlouquecido do centro da cidade, um gato de pelagem bicolor, branco e amarelo, parou, olhou-o pesadamente:

- Nós somos um – em um tom miado o gato disse e em seguida piscou.

Markus esfregou os olhos, incrédulo. Ao focar o olhar nas palmas das mãos viu dois olhos ali fechados. Escondeu então com as pálpebras os olhos do rosto e os que se encontravam fora do lugar habitual abriram-se instantaneamente. E eles enxergavam. Abriu os braços, com as palmas das mãos viradas em sentidos opostos. Notou que conseguia ver os dois lados ao mesmo tempo. À esquerda uma baleia cor-de-rosa passava nadando as nuvens alegremente, peixes dos mais variados saltavam do concreto do asfalto em rodopios para em seguida voltarem a mergulhar no chão duro, desaparecendo. Doutro lado os prédios dançavam gelatinosos por sobre os postes, que emitiam cores das mais diversas, azul, vermelho, verde, rosa, de tons igualmente distintos, uma pintura surrealista pela cidade. Ergueu as palmas para cima e pode ver a escuridão do céu, um pano estendido, em alguns pontos até amarrotado, com furos por onde passavam as luzes das estrelas. A lua sorria diabólica para Markus, um lembrete impreciso dos perigos que a noite trazia com ela. Abriu os olhos do rosto e os que estavam abertos fecharam-se. Caminhou sem rumo, o tempo parecia passar de forma incongruente. Hipnotizado, Markus não conseguia entender muitas das coisas que aconteciam.

Alguns passos a mais e se deparou com uma cabeça gigante que flutuava desanimada deixando um rastro vermelho, borrando tudo por onde passava, para segundos depois desborrar.

- Cuidado com a minha mãe e o meu pai. Não deixe não se conhecerem. Preciso existir – transbordava desespero o cabeção.

Um policial avistou de longe o que acontecia e veio na direção de Markus, apito na boca e cassetete balançando em fúria por sobre a cabeça. Apenas a alguns passos de Markus, parou. Apertou os lados da cabeça com ambas as mãos e gritou em agonia. A pele do pescoço começou a rasgar-se devagar, Markus observava atônito, o policial não parava de gritar. Depois foram os músculos e por fim o osso do pescoço quebrou-se. Um jato de sangue verde-amarelo jorrou, a uma altura considerável, para todos os lados. A cabeça, agora segurada na mão esquerda colada ao corpo, como um rifle, ria descontrolada.

Ao longe uma pequena multidão o avistou, não parecia tão pequena quando começaram a correr em sua direção, quilômetros e mais quilômetros de pessoas em disparada. Markus assustado tentou fugir. Quanto mais corria, mais seus pés afundavam no chão vermelho e esfarelando. Foi afundando aos poucos enquanto a multidão se aproximava com sangue nos olhos e sorrisos vermelhos. Estava até o pescoço dentro do chão, não conseguia mover nada além da cabeça para esquerda ou direita. As pessoas começaram a jogar-se por sobre ele, os sorrisos avermelhados e os olhos vidrados tentando morder seu rosto. Uma música começou a tocar, vinda do nada, pôde distinguir um trecho 

"Take another little piece of my heart now, baby!oh, oh, break it! Break another little bit of my heart, now darling, yeah, c'monnow." 

A voz de Janis Joplin desesperada aumentou-lhe a angustia. Aos poucos notou que não conseguia mais respirar, fechou os olhos desejando que tudo aquilo fosse embora. Gritou o mais alto que pôde. O barulho a sua volta cessou sem aviso, de completo e total súbito. Ao abrir bem vagarosamente os olhos reparou não haver mais ninguém próximo. Estava sentado nas escadarias em frente a um templo de Sued. Uma senhora de parco cabelo grisalho o olhou com ternura.

- Está bem, moço?

- Estou sim – respondeu – Muito obrigado – Parou de imediato, chocado. A senhora estava presa em espasmos de ânsia angustiantes. Depois de sofridos três ataques de ânsias contínuas; vomitou. Uma bola de carne foi sendo expelida aos poucos da boca da mulher, nunca chegava ao fim. Os pés da idosa foram sugados para dentro do próprio corpo e saíam pela boca do lado inverso. Músculos estavam completamente expostos. Depois foram os braços e o corpo, por fim a cabeça. A boca fechou no cabelo, formando um coque.

- Tenha um bom dia então – disse, dando mordidas no cabelo a cada palavra e seguiu seu caminho.

Inquieto peregrinou pelas ruas que se distorciam e derretiam aos seus pés, sem, no entanto atrapalhar seu caminhar. Uma chuva de geleia de morango caia nos detalhados e escorria por suas paredes, quando tocava o chão se tornava um torrão de açúcar vermelho vivo, que brilhava. Um prédio de condomínio à sua frente se metamorfoseou em um gigante espelho, tentou olhar para o outro lado, tudo à sua volta eram espelhos que distorciam a sua imagem em uma casa de espelhos infernal por toda cidade. Viu Larry em um dos espelhos, em outros era mulher, negro, alienígena, animal, toda sorte de seres distintos.

- Somos um todo. Podre! Podre!– as vozes ecoavam, vindas de todos os lados.

Começou a sentir formigar as mãos, quando as olhou eram patas de cachorro, olhou-se em um dos espelhos, era agora um cachorro, mas com o rosto de Larry, tentou correr, geleia vermelha caiu por sobre ele e transformou-o em um torrão de açúcar, não conseguia se mexer. Um gigante a passos largos quase pisou em cima de Markus, tudo em volta eram mesas, cadeiras, pés e sujeira, em tamanho gigante. Um homem abaixou-se e o pegou na mão, esfregou o torrão que era Markus nos dentes e sorriu. Tornou-se o gigantesco homem. Passou a fazer parte do seu ser, entranhando-se em sua mente e corpo. Encontrava-se novamente em um labirinto de espelhos, notou que o gigante não era outro senão ele mesmo.

Coelhos começaram a sair dos espelhos aos montes, aninhando-se em seus pés, abraçando-o. Um burburinho cacofônico e ininteligível elevou-se aos ouvidos. Distinguiu palavras estranhas e sem sentido. Centenas, talvez milhares de coelhos começaram a surgir, vindos do chão cavando por entre o asfalto e caindo do céu como chuva, outros vinham de dentro dos prédios. Aglomeravam-se em torno de Markus. Um choro bem baixinho chegou aos seus ouvidos, os animais imploravam atenção. Tomado por um sentimento inexplicável, ajoelhou-se e abraçou o máximo possível deles que conseguiu. Viu-se criança novamente, em seu antigo quarto na casa dos pais. Os coelhinhos todos à sua volta aninhando-se à procura de conforto e abrigo. Ouviu passos ao lado de fora do aposento, abraçou os animaizinhos mais forte ainda.

Era a tia quem entrava no quarto, muito mais nova. Ela caminhou em sua direção, pisando em cima dos coelhos, alguns desapareciam ao serem pisados, outros, porém eram esmagados; patas quebradas, barrigas achatadas, cabeças espremidas contra o chão. Sangue sujava a pelagem branca dos seus pobres amiguinhos. Markus chorava mais ainda:

Disparou em direção a um buraco por onde entravam todos os outros animais que haviam sobrevivido, enfiou a cabeça na toca, ela foi fechando em sua volta ficando cada vez mais apertada, suas pernas ficaram para fora do buraco. Escorregou lentamente para dentro, só via escuridão. Um frio vindo de lugar algum o fez tremer.Passou a mão pela cintura; a arma continuava lá, queria pegá-la e pintar de vermelho aquela escuridão.

Um ser grotesco surgiu em meio à escuridão, tinha corpo de coelho, cabeça de lince e tentáculos de polvo por todo o corpo. À sua volta podia distinguir o som de diálogos incompreensíveis. Pôde ouvir o ser estranho dizer "Levem-no para dentro". Começou enfim a perceber que estava alucinando, fechou os olhos e deixou levar-se.



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O Pseudo-escritorWhere stories live. Discover now