Capítulo II

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Passei o resto da noite acordado enquanto Atena descansava. Ás sete da manhã, saímos do hotel. Assim que chegamos na entrada, um esperava. O motorista, um senhor já de idade, desceu do carro e tirou o chapéu para o meu pai.

– Bom dia, doutor. Vai ficar aqui muito tempo?

– Só alguns dias. Agradeço por me ajudar.

– Qualquer coisa para o senhor, doutor. E os dois?

– São meu filho, Daniel, e uma amiga dele, Atena.

O homem cumprimentou a Atena e a mim com um aperto de mão longo e dedicado, ainda segurando o chapéu contra o peito. Enquanto era cumprimentado, eu sentia o olhar do homem me medindo.

– Pode me chamar de Raimundo, rapaz. Você parece seu pai quando ele era moço. Forte do mesmo jeito.

– Vocês se conhecem há muito tempo?

– Desde que ele era da sua idade. O doutor e o pai dele deram um jeito no meu menino quando ele ficou ruim das pernas lá atrás. Mas eu nunca esqueci, não. O doutor é boa pessoa.

– Foi meu pai quem tratou da maior parte do problema, mas eu agradeço pela sua gentileza, Raimundo. Agora, poderia nos levar para até o endereço que eu passei?

Durante a viagem, estendida em muito pelo trânsito do centro da cidade, Raimundo e meu pai não pararam de conversar, embora a maior parte das palavras tenha sido dita por Raimundo. Era estranho ver quão animado ele se mantinha enquanto falava com meu pai, tecendo elogios, contando pequenos causos. Em dado momento, ele chegou a mostrar uma fotografia tirada muitos anos antes. Nela, estavam Raimundo, sua esposa, seus dois filhos, meu pai e alguém que provavelmente era meu avô.

– Ele tem razão sobre vocês dois se parecerem. Bem, ele era mais refinado, sem dúvidas, e os óculos dão um ar intelectual. Ele parece mais inteligente que você, isso é certeza.

Obrigado.

– Não fique assim. Eu ainda prefiro o seu jeito mais bruto e anárquico de ser, mestre. Tem muito charme na sua falta de sofisticação.

– Você é muito engraçada.

– Eu sei.

Demorou cerca de uma hora até chegarmos ao local onde se daria o congresso, um teatro no centro velho da cidade, o Mirabilia. Aquele teatro, como eu descobriria mais tarde, tinha sido um importante centro cultural durante a Era do Rádio, tendo recebido até mesmo apresentações de Amelinha Borba e Ataulfo Alves, perdurando durante a Era Vargas até, enfim, cair em decadência e ser fechado pela ditadura militar, durante o governo Costa e Silva. O local passou anos fechado desde então, até ser adquirido por uma empresa privada que passou a usá-lo como um tipo de centro de convenções de baixo custo para quem estivesse interessado. Havia poucos carros parados na entrada do teatro, mas dois ou três seguranças tinham sido deixados em frente à porta. Raimundo estacionou em frente ao teatro e disse que esperaria até irmos embora. Meu pai foi á frente e confirmou seu nome na lista de convidados. Enquanto passávamos, pedi que Atena fizesse uma cópia da lista de convidados. Com meu pai distraindo o obviamente inexperiente rapaz que tratava de checar os convidados, não deve ter sido difícil para ela fazer isso. Dali, pudemos entrar no teatro.

Apesar de termos chegado com mais de uma hora de antecedência, já havia algumas pessoas circulando pelo teatro. Em sua maioria, eram homens da idade do meu pai ou um pouco mais velhos, acompanhados de rapazes cujas idades variavam entre adolescentes e outros até mais velhos que eu ou com alguma mulher muito mais nova do que eles. A opulência com que todos eles se vestiam me fazia sentir deslocado dentro dos meus jeans e camisa. Enquanto eu tentava me localizar naquele ambiente exagerado, percebi que um par se aproximava de nós deliberadamente chamando atenção com passos pesados e sorrisos escancarados. O homem mais velho devia passar dos sessenta, era gordo e barbudo, andava apoiado numa bengala aparentemente de marfim e usava um terno obviamente caro. O rapaz que vinha junto a ele, provavelmente não muito mais velho que eu, usava roupas tão finas quanto, mas que pareciam muito diferentes num corpo muito mais musculoso e alto. Meu pai se virou para os dois devagar, sem expressão. Atena, porém, pareceu reconhecê-los, ou ao menos ter uma noção de quem eram eles. Ela me puxou pelo braço para perto de si e sussurrou em meu ouvido: "Castelli". O rapaz, provavelmente percebendo, nos encarou com seu sorriso escancarado, abaixou a cabeça de leve, fingindo um cumprimento. Devolvi, mas Atena empinou o nariz e devolveu apenas um olhar indiferente.

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