VI

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As gotas de chuva molhavam as janelas do carro e escorriam em uma diagonal por causa da força aplicada pelo movimento do carro, Samuel estava com o rosto encostado em uma dessas janelas olhando para as lâmpadas dos postes que passavam constantemente. Um atrás do outro, como crianças em uma fila no jardim de infância. Samuel sentiu o carro parar, era apenas um sinal vermelho ele deduziu, estava tão distraído que nem percebeu Ron se virar para ele do banco da frente.

- Você realmente vai ficar calado aí olhando pro nada?

Samuel se assustou com a pergunta do seu amigo, por breves minutos ele tinha se esquecido que estava em um automóvel.

- Só não tenho muito o que falar Ron, apenas isso.

- Você não tem muito o que falar? - Repetiu Ron ao mesmo tempo que fazia suas corriqueiras perguntas retóricas. - Não sei se você percebeu Sam, mas o mundo está de ponta cabeça. - Ele se virou novamente para a direção e arrancou com o carro após se dar conta que o sinal já havia acendido a luz verde.

- O mundo sempre esteve de ponta cabeça Ron, só não percebemos isso pois perdemos tempo demais olhando pra dentro dos nossos próprios umbigos. -Samuel sentiu a chuva apertar mais ainda e percebeu que Lucky estava inquieto.

- Na minha opinião você está errado Samuel, pelo menos sobre a minha pessoa você está completamente errado.

- É claro que sobre você eu estou errado Ron - Samuel olhou pelo lado do banco e percebeu que a visão do motorista estava completamente debilitada por conta da chuva forte. - Você é praticamente uma criatura de outro mundo Ron.

- Sou igual o Superman cara - Ron riu da própria piada infame. - Vim de outro mundo pra ajudar vocês mortais aqui da terra.

- Superman negro, eu acho que não existe um Superman negro.

- Isso é racismo Sam, não acredito que isso veio de você. - Ron na verdade não se importava com piadas direcionadas a sua raça. Por conta da sua forma física avantajada, poucos que não são amigos dele tiveram a audácia de bancar o racista. Já os que fizeram, foram devidamente espancados pelos punhos de Ronaldo Madea.

- Não é racismo - Samuel esboçou um sorriso. - É só que não existe até aonde eu sei nenhum Superman negro.

- Ah, dane-se - Ron mais uma vez se virou pra trás, dessa vez olhando Lucky que estava mais calmo naquele momento. - Eu nunca gostei do Superman mesmo, eu sou mais o...

- CUIDADO! - Samuel gritou ao ver um homem atravessando a rua.

Ron instintivamente pisou bruscamente no pedal de freio, o asfalto molhado não ajudou com a aderência, porém devido aos freios ainda novos do carro, ele parou. O homem não foi atingido por questão de centímetros, Samuel foi jogado contra o banco do motorista violentamente, só não se machucou mais gravemente pois o sinto de segurança o poupou de sofrer uma fratura. Já Lucky não teve a mesma sorte, foi lançado para a parte da frente do carro batendo com as patas dianteiras no painel, deu um grunhido de dor que logo foi interrompido, pois ele começou a latir para o homem que estava inerte na frente do carro.

- Puta merda. - Disse Ron abrindo a porta do carro e saltando pra fora. - Tá tudo bem com você cara?

O homem vestia um casaco preto e uma boina cinza escura, seu rosto estava coberto pela penumbra da noite e suas mãos estavam por dentro dos bolsos do casaco. Ele não demonstrava estar assustado diante daquele incidente.

- O que está acontecendo aí fora? - Samuel perguntou em vão, pois a sua voz foi completamente abafada pelo som da chuva e dos latidos do seu cão.

- Hey cara, tá tudo bem contigo? - Perguntou mais uma vez Ron para o desconhecido. - Você quer ir para um hospital ou qualquer lugar assim?

Ronaldo já estava encharcado por conta da chuva, o homem porém não parecia se dar ao luxo de se preocupar com suas vestes molhadas. Por fim se movimentou, levantou a cabeça que até então estava baixa, como se estivesse pensando com qual pé iria retornar a sua caminhada. Olhou para Ron e saiu andando sem dizer nada.

- Lucky, acalme-se! - Sam gritou com seu cão, ao perceber que ele latia e acompanhava com a cabeça o estranho enquanto ele atravessava a avenida.

- É cada doido que tem nessa cidade. - Ron falou consigo mesmo se virando na direção do carro e dando de ombros, esclarecendo bem para Samuel, que ele não tinha ideia do que havia ocorrido ali.

Após o homem sair do campo de visão do cão, ele simplesmente parou de latir, se virou para Samuel e voltou na direção dele. Lucky estava com a face abaixada sentindo a dor de ter se chocado contra o painel do carro.

- Me desculpe Lucky, foi só você ficar comigo por um tempo e você já se machucou. - Sam pegou o cão pela coleira e passou a mão nas costas dele para ver se havia alguma costela quebrada. - Eu sou um péssimo dono.

- Ah, que frio! - Exclamou Ronaldo adentrando o carro. - Como eu disse esse mundo está de ponta cabeça. - Ele deu partida no carro e acelerou.

- O que diabos aconteceu lá fora Ron? - Samuel não sentiu nenhuma fratura no cão, o que o deixou mais aliviado.

- Eu não faço a menor ideia, aquele cara parecia estar drogado ou qualquer merda assim, deve ser a maldita droga nova que apareceu nas ruas. - Ronaldo deu seta para a direita e entrou no estacionamento do Mercado. - Só sei que eu com certeza vou pegar um resfriado.

- Bem, eu acho que está aí a próxima investigação que você deve fazer pro jornal, você não acha?

- Eu meio que já estou no encalço disso, fora também o surto de suicídios na parte baixa da cidade. - Ron terminou de estacionar e desligou o carro. - Obviamente você não deve estar sabendo disso, até porque na televisão casos de suicídios não são noticiados comumente para não gerar repercussão.

- Não precisa explicar Ron, eu também trabalho lá.

- Foi mal, é que faz tanto tempo que eu não te vejo por lá, que até me esqueci que você já botou o pé naquele lugar. - Ron encostou a cabeça no volante e se manteve em silencio por um tempo. - E o Lucky, como ele está?

- Pelo visto ele está bem, não parece ter quebrado nada.

- Sua definição de bem - Ron fez aspas com as mãos. - É muito dúbia.

- Enfim - Suspirou Nara. - Você fica no carro com ele ou eu fico?

- Nenhum nem outro. - Respondeu de bate pronto Ronaldo já abrindo a porta do carro.

- Não sei se você sabe, mas eles não permitem animais em mercados Ron.

- Anda logo Sam, até parece que você nunca quebrou uma regra ou outra. - Ron estendeu a mão para sentir a chuva, porém ela já havia acabado. - E não precisa se preocupar com o cabelo a chuva já passou.

- Vai se ferrar Ron. - Samuel desceu do carro trazendo Lucky pela coleira que surpreendentemente nem ao menos mancou ao tocar o chão.

Os três foram caminhando em direção a entrada do mercado aonde uma ou duas famílias saiam com suas compras noturnas, Sam olhou para uma menina que estava maravilhada com Lucky.

- Oi tio - Disse a criança olhando para Nara com a mais doce voz que poderia viver dentro de um ser humano. - Ele morde?

Samuel se agachou na altura da garota e disse:

- Apenas se você for malvada - Samuel estampou um sorriso completo no rosto. - Você não é malvada, é?

A menina balançou a cabeça negativamente mordendo o lábio inferior.

- Ótimo - Esbravejou Sam. - Então se você quiser, você pode fazer carinho nele.

- Eba! - Ela pulou de alegria e começou a afagar Lucky que retribuiu o carinho com um abanar de sua cauda.

- Bem, eu acho que eu mudei de ideia - Ronaldo disse colocando a mão no ombro direito de Samuel. - Acho que o mundo não está completamente perdido.

- Obrigado Tio. - Disse a criança antes de voltar correndo para os seus pais.

- Também acho - Concordou Sam ficando de pé. - Nem tudo está perdido.

Vinho QuenteOnde histórias criam vida. Descubra agora