O conto das minhas vozes

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       Permanecer concentrado era impossível. Ao piscar os olhos, mesmo que minimamente, sentia-me fora de órbita, como se uma força magnética arrastasse minha consciência para uma região desconhecida do meu cérebro. Contudo, eu precisava resistir e chegar ao meu destino: o penhasco.

        Ainda me recordo de quando as vozes começaram: eram sussurros, delicados e fragmentados, cantarolados em meu ouvido. "Aqui não é... o seu lugar...", elas diziam. A princípio, e como qualquer pessoa sã, ignorei-as, achando que, talvez, não estivesse dormindo o suficiente.

        Mas as vozes não se calaram. Pelo contrário, ganhavam força e, o que outrora eram sussurros, hoje, gritavam com convicção na minha cabeça: "ESSE NÃO É O SEU LUGAR! ESSE NÃO É O SEU MUNDO!". Busquei ajuda profissional, me mediquei e quase cheguei a me internar. Os meus únicos momentos de paz, todavia, eram durante meus banhos ou quando eu me submergia na gélida piscina. Água.

        E, como se não bastasse ter de conviver com um sentimento sutil, mas persistente e crescente, de não pertencimento, manifestado através de vozes e gritos, comecei a perder minhas energias. Eu podia sentir a minha consciência se dissolvendo, cada vez mais acelerada.

        Eu precisava de mais água. Estar na água era aliviante. Eu podia sentir os átomos de hidrogênio e oxigênio cambalearem pela minha pela, em perfeita harmonia. Em pouco tempo, passei a me banhar várias vezes ao dia. Com uma semana, porém, as vozes aprenderam a falar mais alto no chuveiro e, quando me dei conta, já estava me imergindo diariamente na piscina.

        Um mês. Em apenas um mês, elas já haviam aprendido a gritar enquanto eu nadava.

        Minha única alternativa para poder resistir às vozes, era o mar. A cidade onde eu moro é litorânea e encontrar conforto nas águas salgadas não seria difícil. Mas quanto tempo eu teria até que elas aprendessem a gritar mais alto que o barulho das ondas? Um ano? Eu não tinha (e ainda não tenho) escolha.

        Não iria apenas me banhar no mar. Eu iria garantir que, por lá, meu corpo ficasse.

        Admito que pular de um penhasco é uma escolha egoísta, afinal, sempre quis saber como é a sensação de cair de uma grande altura. O vento contra o tronco, os flashes de sua vida passando pelos seus olhos enquanto seu corpo se desloca até o chão, o zumbido do ar nos ouvidos...

        Ao sair de casa, pude ter o prazer de contemplar pela última vez, o cinza do céu nublado: a minha cor favorita. E foi caminhando pela mata que separava meu lar do penhasco, contornando árvores e pedras, que as vozes se manifestaram com uma intensidade diferente da anterior: desespero.

        As vozes estavam com medo. Elas entenderam que era o fim.

        O terror era tamanho que as frases, emitidas em um volume estrondoso, se misturavam na minha cabeça. "COMO OUSA?... ESSE NÃO É O SEU LU... GAR... ESSE NÃO É...". Admito que foi sadicamente prazeroso vê-las, ou melhor, ouvi-las em pânico. Mas, como elas mesmas diziam, esse não é o meu lugar, então porque eu deveria continuar aqui? Aturando-as, ainda por cima?

        Eu cantarolava qualquer música que viesse a minha cabeça para manter minha concentração, já fraca, enquanto desviava dos galhos e rochedos opacos. Sabia que, no menor lampejo de fraqueza, eu acabaria deitado no chão, bombardeado por vozes incaláveis até sabe-se lá quando.

        Quando notei o barulho das ondas se quebrando contra a extremidade do penhasco, fui preenchido por um orgulho gigante e indescritível. Aproximei-me e ajeitei-me na beira do rochedo pontiagudo. Olhei para baixo. Não tive medo. Pelo contrário, a espuma das ondas, os rochedos com musgo e sal... tudo não passava de uma visão convidativa. Dessa vez, um novo sussurro foi carregado pelo vento até mim: "esse é o seu lugar. Venha".

        E, abraçado pelo pedido da mãe Água, lancei-me aos seus cuidados, como um bom e devoto filho.

        Silêncio.

Os contos que habitam em mimOnde histórias criam vida. Descubra agora