Madeira. Gasolina. Ela. Fogo.
A morte de Emiliana Qualquer não significava muita coisa. Aconteceu num dia qualquer, numa fogueira qualquer, em um bosque qualquer. Até o seu corpo era qualquer, descoberto por acaso por crianças que brincavam nas proximidades. Nem pra notícia Emiliana Qualquer servia: os jornalistas não queriam uma figura nua e carbonizada no jornal. Então só deixaram a manchete ali, discreta no canto da última página: "Emiliana Qualquer é encontrada morta".
Nada se sabia sobre Emiliana Qualquer. Tinha pais? Irmãos? Tinha amigos? Se bem que amigos ela não devia ter, era muito estranha. Só sabia falar de livros e de significado de sonhos e as roupas dela eram tão feias quanto sofá de tia encalhada. Só se avistava Emiliana Qualquer quando ela saia de sua casa velha para regar as plantas do jardim ou para alimentar os cachorros de rua que dormiam na sua varanda. Enfim, isso tudo agora já não importava mais: Emiliana Qualquer estava morta. Mortinha da silva. Emilianinha Qualquerzinha Mortinha da Silva.
Mesmo que a vida de Emiliana Qualquer não fosse significativa para as pessoas daquela cidade e mesmo que sua morte fosse menos significativa ainda, as pessoas não deixavam de fantasiar histórias sobre seu falecimento.
"Aposto que ela colocou fogo em si mesma. Ela era muito miserável", dizia o comerciante rico.
"Eu conheço muito bem a laia dela, morreu num ritual de bruxaria. Tenho certeza absoluta!", dizia a mulher cristã do comerciante rico.
"Pois eu acho que ela foi sequestrada e assassinada", dizia o policial amante da mulher cristã do comerciante rico.
"Que nada! Inocentes vocês são! Aquela mulher era louca, ia tacar fogo no bosque pra queimar a cidade toda e por acidente se matou", dizia o vendedor de tabaco e álcool, amigo e amante do comerciante rico.
Todos esperavam ansiosos o laudo da perícia sobre a morte de Emiliana Qualquer e todos decepcionados ficaram quando o laudo foi inconclusivo. Mas ninguém se decepcionou mais que Verônica, a única pessoa da cidade que de fato reparava na pobre existência de Emiliana Qualquer.
Não chegaram a ser amigas, pois nunca conversaram. Verônica só gostava de observar as esquisitices de Emiliana Qualquer. Achava-a excêntrica, única, como essas pecinhas minúsculas de quebra-cabeça que a gente só encaixa por último. Como o último biscoito esfarelado que a gente só come pela metade e deixa o restinho no lixo com o pacote. Vivia um pequeno e infinito universo dentro de Emiliana Qualquer, sabia Verônica, e ela queria captar, mesmo que à distância, cada estrelinha desse universo.
Mas agora não havia mais o universo Emiliano Qualqueriano, pois foi brutalmente assassinado pelo fogo. Pobre Emiliana Qualquer! Não merecia morrer, ninguém merece. Morrer é permitir que sua existência se dissolva na poeira da terra e no sopro do vento. Morrer é um verbo tão feio, mas tão feio que a gente nem pronuncia por completo: todo mundo fala "morrê" e corta o errezinho no final da palavra como se ele nem existisse. Pobre errezinho, pobre Emiliana Qualquer.
Verônica, então, decidiu ir ver o lugar da morte de Emiliana Qualquer. Ora, não seria justo ela poder observar aquela mulher mais uma vez, mesmo que em fragmentos? Era um direito dela e ai de quem tentasse impedi-la! Verônica iria enfrentar à resistência e ir ao leito de Emiliana Qualquer!
Mas não houve resistência.
Sem policiais, sem faixas amarelas do C.S.I. e sem cães farejadores. Sem pessoas querendo impedi-la de entrar na cena do crime. O túmulo de cinzas de Emiliana Qualquer estava tão abandonado quanto ela fora em vida e Verônica ficou devastada. A crueldade do mundo para com aqueles que não se encaixam nele era tão voraz assim? Os investigadores nunca saberiam quem matou Emiliana Qualquer porque nunca sequer tentaram procurar devidamente. Talvez tenham sido eles mesmos, com sua brutal sede de violência às diferenças. Talvez tenha sido o comerciante rico, com sua aversão à pobreza. Ou será que foi a mulher do comerciante rico, com toda a sua [falsa] moral? Tantas possibilidades...
Verônica se aproximou do que um dia foi o corpo de Emiliana Qualquer, de Emiliana excêntrica única quebra-cabeça biscoito esfarelado Qualquer, e segurou sua mão. Chorou pela solidão da mulher que morreu incompreendida, chorou porque, mesmo vendo o universo em Emiliana Qualquer, não teve coragem de dizer a ela o tamanho de sua grandeza. Chorou. E no meio de todas as lágrimas, notou o silêncio assustador, em luto, ao seu redor. Silêncio excêntrico, quebrado apenas por pequenas gotas de água que caiam do céu. Gotinhas únicas de chuva, que nunca caem duas vezes.
As folhas das árvores estavam todas excentricamente desbotadas, sinais de que o outono se aproximava, e o Sol se pôs, deixando apenas rastros únicos de luz que as nuvens de chuva iam tampando aos poucos. Excêntricos e únicos. Emilianos qualqueres.
Naquele momento, não teve medo de morrer, porque morrer já não era dissolver sua existência em terra e vento. Era deixar um legado de você em tudo que não é você. É fazer sua alma transcender em pequenos infinitos que compõem as coisas.É pronunciar o errezinho no fim do verbo. E mesmo após a morte, o infinito de Emiliana Qualquer estava ali: no silêncio, na chuva, nas folhas e rastros de sol.
Descanse em paz Emiliana, já não mais Qualquer.
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Os contos que habitam em mim
Short Story"Os contos que habitam em mim" é uma coletânea de histórias que te convidam a mergulhar na misteriosa, intensa e fragmentada essência humana.