O conto das minhas entranhas

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     "Há uma variedade de tristezas que fizeram morada em minhas entranhas e que nunca irão embora", leu em algum lugar. Nunca esqueceu a frase, porém .

       Sabia de suas tristezas, sentia quando elas se remexiam no interior de si, coexistindo; coabitando o seu corpo. E ele não se importava. Eram indivíduos em protocooperação. Não, mais do que isso: eram indivíduos em mutualismo intenso, dependentes e interligados.

       À noite, quando seu coração inchava em solidão, as tristezas lhe faziam carinho. E quando elas não se livravam da insônia, o garoto as acalmava até dormirem. Eram família. As tristezas eram mais presentes que qualquer amigo que ele tivera, sempre ali, quietas e dispostas a ouvir qualquer dor que aparecesse. O garoto até brincava, dizendo que as tristezas  que tinha eram estudantes de psicologia, estagiando em seu peito sofrido, rumo ao diploma.

       Porém, ele acreditava que as coisas não poderiam ser tão simples, não poderiam se limitar apenas às tristezas. Ele queria ser habitado por outros sentimentos, conhecer novas sensações. Mas como falaria para as tristezas que elas não eram suficiente? Logo elas, que viram cada sucesso e cada fracasso da sua vida humana comum e cinza? 

        Acordou cedo, regou suas plantas, fez café e, enquanto bebia, reuniu toda a sua coragem. Olhou nos olhos das tristezas e perguntou, humildemente, se elas poderiam ceder espaço para novas emoções. E, para a surpresa do garoto, as tristezas que habitavam suas entranhas se agitaram, empolgadas com a possibilidade de coexistir com outros sentimentos. "Tristezas também gostam de coisas novas", disseram em coro. 

         Assim, o garoto e as tristezas deitaram na cama. Começaram a vasculhar cada memória existente no cérebro do corpo que compartilhavam, afinal, emoções não nascem de lugar nenhum. Emoções são filhas de lugares que visitamos ou gostaríamos de visitar, de visões que tivemos ou gostaríamos de ter e, principalmente, de pessoas que conhecemos ou gostaríamos de conhecer melhor. 

        Encontraram, em uma caixinha mental bem brilhante, o rosto de um outro garoto, bem diferente por sinal:  cabelos lisos, pele clara, sorriso bonito. E os olhos? AH! Os olhos eram a coisa mais linda e ambígua (ou melhor, lindamente ambígua) que as tristezas já haviam visto: vivos e penetrantes, mas fundos e resguardados. Eram olhos de quem também possuía tristezas dentro de si. Apaixonou-se. 

       A paixão apareceu ao lado do pulmão esquerdo, tímida e diminuta. 

-Por que é tao pequena assim, paixão?- perguntaram as tristezas, curiosas. 

-Porque irei crescer e me afirmar, até me tornar amor. Ou desaparecer tentando, talvez.- respondeu a paixão. 

-Eu não sei o que é amor. O que é amor?- perguntou uma das tristezas, a mais curiosa delas. 

-Ninguém sabe até... saber.- respondeu a paixão.

         O garoto demorou um pouco para entender as influências que sua nova companheira exercia no corpo que dividiam. Às vezes, ele se perdia em imagens idealizadas de uma vida ao lado do garoto de olhos ambíguos. Outras, quando aquele por quem se apaixonara sumia, sentia-se inquieto, como se passasse por um longo processo de abstinência. "Apaixonar-se é uma droga. Literalmente.", afirmava uma das tristezas, a mais sarcástica delas.

          Algo curioso, porém, aconteceu: Um dia, após um longo tempo sem contato com o garoto de olhos ambíguos, a paixão decidiu que não queria mais morar ao lado do pulmão direito, mas sim, ficar nas entranhas, junto às tristezas. O garoto e as tristezas não se importaram e a paixão foi muito bem recebida na casa das tristezas. Assim, por várias noites, as tristezas e a paixão espantavam a solidão do garoto e dormiam juntinhas, dependentes uma das outras.

           Depois, decidiram que o espaço vazio ao lado do peito direito deveria ser ocupado por outra emoção. Na verdade, o garoto e a paixão ficaram receosos, mas as tristezas, sempre empolgadas com coisas novas, conseguiram os convencer. 

          Foi em um dia nublado que a felicidade apareceu. O garoto andava pelos jardins da faculdade, tão distraído que não percebeu que cantava mais alto que o normal. E, entre os rostos de julgamento e as risadas zombeteiras, estava o garoto de olhos oblíquos, observando-o. Após isso, sorriu. "SORRIA DE VOLTA!", gritou a paixão, ficando um pouquinho maior; um pouquinho mais próxima de virar amor. Desde então, passaram a trocar sorrisos sempre que se viam.

          A felicidade era uma emoção bem peculiar. De vez em quando, acordava, enchia o corpo de positividade e brilho e voltava a dormir. "Acorda! Brilhe mais um pouco!", falava uma das tristezas, a mais impaciente delas, enquanto sacudia a felicidade para lá e para cá. Mas não havia resultado: a felicidade não se mostrava com frequência. Ficava no seu cantinho, dormindo quieta. 

          "Imagino que seja difícil dormir constantemente, ainda mais sozinha assim" disse uma tristeza, a mais gentil delas. As outras tristezas concordaram e se apiedaram da nova amiga. Resolveram trazê-la para morar com elas. Assim, todas as noites, as tristezas e a paixão espantavam a solidão do garoto e dormiam juntinhas com a felicidade, dependentes uma das outras. 

          E o espaço vazio ao lado direito do pulmão? Ah! Esse continuou vazio.

         Raiva, coragem, ciúme, desejos... Por muito tempo as novas emoções chegaram e, por mais individuais, por mais específicas, complexas ou simples que pudessem ser, elas sempre iam morar com as tristezas. As tristezas gostam de coisas novas. 

          À noite, elas todas se juntavam, espantavam a solidão do garoto e dormiam juntinhas.

          Dependentes uma das outras.



Os contos que habitam em mimOnde histórias criam vida. Descubra agora