Ele a tacou com força na parede, quebrando a penteadeira e alguns perfumes. Puxou-a pelos cabelos e tacou-a novamente. E mais uma ou duas vezes. O monstro esmurrou a parede e saiu do Cômodo.
Ela era mulher criada, daquelas independentes que cuidam dos irmãos por contra própria após a morte da mãe e o abandono do pai. Só ela e Deus. Ele, por sua vez, insistia em se manter moleque, abrir mão das responsabilidades e se embebedar na primeira esquina que pudesse. No fim das noitadas, se estirava no banco da praça e só acordava no dia seguinte. Às vezes sem celular ou carteira. Não se importava; o pai arcaria o prejuízo.
Foi em um sábado que se esbarraram. Era manhã, ensolarada inclusive, e ele cambaleava de um lado para o outro com um braço ensanguentado. Ela se apiedou dele. Sentou-o no meio fio e ali mesmo fez um curativo, retirando os cacos de vidro do corte, provavelmente gerado por uma garrafa quebrada. Ele era bem bonito, com olhos tão escuros que pareciam amêndoas. Assim como os dela, tão pretos quanto a própria pele afro.
Seis meses depois,o reencontro ocorreu nos corredores de uma faculdade particular. Ela trabalhava numa mercearia para bancar o curso de gastronomia. Ele foi presenteado pelo reitor com uma bolsa integral. Queria ser administrador: dava dinheiro e estava na moda.
Em mais cinco meses, namoravam. Ele levou flores e um bombom. Tão gentil. Chegou até a espetar o dedo no espinho da flor. Ela beijou o machucado. Gentil e sensível, corrigiu mentalmente.
Ele não possuía sogros para conhecer. Ela não conseguiu agradar os dele. "Humilde demais", a mãe dele dissera. Pobre, ela sabia. Mas não se incomodava, ele a amava.
Com um ano, tiveram a primeira briga. Ele xingou ao vê-la de saia curta na frente dos amigos. Segurou- a forte, sacudiu-a e se afastou. Desculpou-se. Tão gentil.
Mais dois meses, veio o primeiro tapa. Mais uma semana, deitou-se com ela, mesmo sem a sua permissão. Gentil e sensível .
O que estava acontecendo? Não sabia, ou melhor, não aceitava. Ela o conhecia e esse homem não era o dela. Frustrou-se. Teve raiva dele e de si mesma. Mas era apenas uma fase, eis de passar como qualquer outra.
Pois até agora, três anos depois, a fase persistia, mais frequente ainda. Ela amaldiçoou-se. Dedicou-se anos aos seus irmãos e largou a si mesma. E no desespero; na necessidade urgente de preencher o vazio que é ser sozinha, almejou que alguém cuidasse dela. Ele não cuidou.
Levantou-se . Fez um curativo em si mesma, limpando os pedaços de caco de vidro dos perfumes quebrados.
Nunca mais se viram.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Os contos que habitam em mim
Short Story"Os contos que habitam em mim" é uma coletânea de histórias que te convidam a mergulhar na misteriosa, intensa e fragmentada essência humana.