Enquanto Matt e Martha cantavam "Eve of destruction", eu rodopiava pela fogueira. Havia um cheiro doce no ar, provocado pelas flores do campo, ou talvez outra coisa qualquer. Tudo girava e ganhava vida ao meu redor. Senti mãos masculinas no meu cabelo cacheado e logo fui envolvido por braços fortes, que me giravam e giravam... As árvores balançavam ao ritmo do violão, sacudindo suas raízes como se quisessem andar. As pedras pulavam em círculos. Vida!
Não fazia a menor ideia de como havia parado ali, nu, no meio de tantas outras pessoas nuas, de cabelos lisos e longos com grandes tiaras. Estava na minha cidade, típica zona urbana do século XXI, e as lembranças do meu passado (passado esse que não vivi) surgiram. Foi quando um cantarolar baixo ressoou, bem lentamente, aumentou e, em segundos, eu estava dançando num bosque iluminado apenas pela fogueira.
Trouxeram-me chá e dividi com o coelho rabugento perto de mim, que me agradeceu empolgado antes de sair correndo. O sol brilhava verde e a lua ondulava ao seu redor. Mais cheiro doce. Mais chá.
O homem forte, dessa vez, me puxou para fora do círculo dançante. Pude ver seus olhos, negros, brilhantes e convidativamente dilatados. Ele me beijou e sua língua lotou minha boca de arco-íris em forma de quadradinhos. Tantas cores deixavam minha boca macia. Tantas sensações me faziam contorcer de prazer.
Eu ouvia alguns sons por perto. Uma buzina, uma criança rindo com sua mãe, uma moto em velocidade alta, mas isso tudo passou assim que o homem me tocou. Ele fungou e cristais subiram pelo ar. As árvores riram, se lembrando dos flocos de poeira brilhante que apareciam durante o amanhecer. As árvores gostam de coisas brilhantes.
Martha parou de cantar, deixando Matt iniciar uma suave acapella. Eu amo a voz rouca de Matt, tão alucinógena e tranquilizadora. Martha se aproximou e me tocou por trás, senti seus peitos em minhas costas. Bethe, Gerard, Anthonio, Barney, Tália... todos chegaram mais perto, em uma mistura de toques, sabores, tamanhos e calores.
A canção de Matt era, aos poucos, abafada pelos corpos que se amontoavam em cima de mim, ao meu redor, embaixo... De longe, podia ver as flores guardando suas pétalas, meio constrangidas, meio desejosas. Mas muitas não resistiram e lançaram seu pólen sobre nós. Mais cheiro doce no ar. Mais cristais. Mais chá sendo espalhado no meu corpo por línguas vorazes.
Mais, mais, MAIS!
E, silêncio.
Estava de volta no concreto moderno. Sem corpos, sem cores, calores, cabelos a voar com a brisa. Ah, a brisa! Mas eu ainda estava nu, a prova concreta de minha real nostalgia. Concentrei-me, ignorando as buzinas, os carros, a fumaça suja e poluída. Alguém gritou diante minha nudez, mas ainda continuei esvaziando a mente. Lutei contra a visão monocromática da cidade, dispensei o caos metropolitano.
E, aos poucos, o cheiro doce voltou. E também as mãos, a música, a orgia que unia a todos. Éramos um organismo vivo, ereto, pulsante, iluminados pela luz do sol verde e da lua ondulante.
Agora e para sempre.
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Os contos que habitam em mim
Cerita Pendek"Os contos que habitam em mim" é uma coletânea de histórias que te convidam a mergulhar na misteriosa, intensa e fragmentada essência humana.