O que acha de seu novo lar? — perguntei a Laura. Ela estava sentada no centro do meu sofá creme, usando um vestido de brim com uma camiseta branca por baixo. Os cabelos ruivos estavam presos em marias-chiquinhas, e segurava uma boneca de pano chamada Meg, que possuía desde um ano de idade. Meg tinha cabelos pretos de lã, cara e corpo laranja, grandes olhos castanhos circundados por cílios espetados e vestido azul-marinho. Os cabelos da boneca também estavam presos com elásticos ao estilo maria-chiquinha.
— Tem um cheiro ruim — respondeu Laura com franqueza.
A garotinha no sofá tinha razão. Meu apartamento fedia a peixe e aos demais detritos na lixeira, os quais, dia após dia, haviam estado se decompondo em amontoados malcheirosos, como que ressentidos por terem sido negligenciados durante as semanas que eu passara fora. Da porta, inspencionei a sala. O lugar parecia ter ficado ainda mais desorganizado: papéis e revistas espalhados pelo chão, um sapato virado a um canto, correspondência que eu não havia terminado de abrir no dia do meu aniversário encimando precariamente o braço do sofá.
— Exceto pelo cheiro — falei a Laura, afastando o caos e a resultante vergonha para um canto da mente.
A expressão no rosto da menina era a de quem se perguntava se eu havia enlouquecido. Como ela podia imaginar que algo não estava ali — ainda mais, algo que tornava sua presença tão marcante? Era como lhe pedir que voasse até alua.
— Espere um segundo.
Deixando a sala de estar, passei por nossas bolsas de viagem, que ocupavam parte do corredor longo e estreito, e entrei na cozinha. Contraí o rosto diante do fedor. Era tão forte que poderia ter arrancado tinta das paredes, e o ar acima da lixeira parecia ferver no calor de agosto. Contendo a respiração, peguei o lixo e levei-o até a grande lixeira preta que ficava no corredor das escadarias e voltei ao apartamento, lavando as mãos no banheiro. Outra onda de vergonha me assaltou quando notei as manchas de pasta de dente na torneira da pia e o fio dental caído ao lado da privada. Aquela bagunça teria de cessar, compreendi enxugando as mãos na toalha de rosto branca. Agora, havia alguém mais a levar em conta; organização tinha de se tornar um hábito em vez de uma ocorrência rara. Eu teria de aprender a ser meticulosamente organizada, a repetir o mandamento "Um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar" até que se tornasse um hábito tão arraigado em minha vida quanto escovar os dentes. Voltando à cozinha, abri a grande janela basculante, deixando entrar o ar abafadiço. O odor desagradável logo se dispersaria, os cheiros nor¬mais de uma casa retomariam seu lugar.
No sofá, Laura fazia aquilo que sabia melhor do que ninguém — estava sentada quieta e silenciosamente. A espera. A espera de que eu assumisse o controle, de que lhe dissesse o que fazer em seguida. A parte trágica era que eu não sabia realmente. Ainda não planejara nada. A vida se tornara uma lista de eventos que tive de enfrentar: identificação do corpo, funeral, recolhimento dos pertences de Kathyrin, mudança de volta para Storybrooke. Um passo de cada vez até que o último item da lista fora executado. E ali estávamos nós, em Storybrooke. O que também significava que não havia mais plano algum. Eu não sabia o que viria em seguida. A vida, sim. Mas como?
— Aqui será o seu quarto — falei a Laura.
Ela lançou um olhar em torno do sofá e, depois, a mim. Do que está falando?, sua expressão dizia.
— Tiraremos o sofá e o colocaremos na cozinha fedida. Só espero que não esteja mais fedida até lá. Compraremos uma cama para você, poderá ter uma tevê. Não esta, porque é grande demais. Vamos colocá-la na cozinha também. Ou melhor, vamos comprar uma tevê pequena e um videocassete para que você possa assistir suas fitas e gravar coisas. E podemos pintar as paredes da cor que desejar. Lamento, mas não poderá ter papel de parede porque ele aca¬bará em discórdia. Quando eu era pequena, meus pais quase se divorciaram por causa de papel de parede... — Laura estudava-me enquanto eu tagarelava. — De qualquer modo, você escolherá a cor, desde que seja uma com a qual possa conviver por bastante tempo, não uma assustadora que lhe cause pesa¬delos. Não que eu esteja dizendo que é proibido você ter pesadelos, ou algo assim. Apenas não quero fazer nada para encorajá-los.
— Bem, mas voltando ao seu quarto. Sim, podemos pintar as paredes. E eu lhe arranjarei um tapete ou algo parecido porque este piso laminado, embora pareça bonito, é bastante frio de manhã. Tirarei a escrivaninha e a colocarei no meu quarto. Acho que cabe lá. E usaremos a cozinha como sala de estar e também como cozinha. É grande o bastante, felizmente. Isso tudo lhe parece bem?
Laura apenas me encarou.
— Estou falando depressa demais?
Ela torceu os lábios e o nariz e meneou a cabeça, as marias-chiquinhas balançando enquanto confirmava que eu estava matraqueando sem parar. Soltando um longo suspiro, afundei a seu lado no sofá.
— Desculpe. Só quero que você... — Aquilo soou como se eu a estivesse pressionando. Como se lhe dissesse que, se não se sentisse instantaneamente em casa, estaria errada. Que me aborreceria. — Desculpe — repeti, embora ela não soubesse porque eu me desculpava.
Havíamos embarcado no trem para Storybrooke no início da manhã daquele dia. Meus pais haviam se oferecido para nos levar de carro até ali, mas eu recusara. Queria um distanciamento de Londres, que nós duas começássemos da ma¬neira como sempre seria — apenas nós duas.
— Será mais fácil para todos se pegarmos o trem — argumentei. — Vocês poderão ir nos visitar numa outra ocasião. — Contratei o dono de um furgão que partiu na nossa frente com as caixas de Kathyrin, nossa bagagem mais pesada e tudo mais que não conseguiríamos carregar. Ele apareceu quando o táxi que nos levava da estação entrou em minha rua. As caixas estavam agora empilhadas no vestíbulo do pequeno prédio, aguardando um lugar no meu apartamento. Ele, aliás, parecera enorme dois anos antes, quando havia me mudado, mas eu acumulara uma porção de pertences: livros, CDs, vídeos, DVDs, revistas, ele-trodomésticos, quinquilharias das quais eu não iria me desfazer. Portanto, agora, espaço seria um problema. Teria de encontrar um lugar para os poucos pertences que Kat deixara. Quando eu cheguei ao depósito, fiquei horrorizada em descobrir que a unidade dela era a menor disponível. E, assim mesmo, suas dez caixas haviam ocupado apenas uma pequena parte do compartimento. Sua vida inteira, seus 32 anos, cabiam em dez caixas. A maioria das caixas continha coisas que ela queria que eu passasse a Laura. Kat nunca fora de guardar tralhas, nunca acumulara quinquilharias ou lembranças e certificara-se de que não ocuparia mais espaço do que o necessário agora que se fora. Bem, que se fora tanto quanto possível. Eu estava com as cinzas dela numa das minhas malas. Eu não as espalharia. Providenciaria para que fossem enterradas perto de nós, para que Laura e eu tivéssemos algum lugar para ir se quiséssemos depositar flores ou visitá-la.
— Gostei das janelas — comentou Laura num tom manso. Eu havia sido abençoada não apenas com grandes cômodos no meu apartamento, mas também com janelas de um metro e oitenta de altura no meu quarto e na cozinha e duas grandes janelas onde seria o quarto da menina. Eram lindas... Mas representavam um perigo em potencial?
Pare de se preocupar, ordenei a mim mesma. Laura não caíra de janela alguma até então; por que começaria agora?
— Obrigada — respondi. — Também gosto das janelas. Ouça, precisamos de comida e de algumas outras coisas, como uma escova de dentes nova, xampu e o que mais você precisar. Assim, que tal irmos fazer compras? O que me diz?
— Gostei da idéia — disse Laura em seu fio de voz.
— Não está cansada da viagem longa? — Tínhamos acabado de chegar ao apartamento, mas eu queria estar em movimento. O movimento constante me impedia de pensar em como as coisas poderiam dar errado, no que havíamos perdido, no que aquela situação realmente significava.
— Não — sorriu ela. — Não estou cansada.
— Ora, era isso que eu queria ouvir.

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A Filha
RomanceDesde que descobriu que seu noivo, Robin, tinha lhe traído com sua melhor amiga Kathyrin, há 4 anos atrás, Regina mudara totalmente sua personalidade. A noite de sexo entre seu noivo e sua melhor amiga, aparentemente inconsequente, gerou Laura, afil...