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—Senhora Eleonora?

Com o chamado de Simon, a senhora ergueu os olhos. Eles eram foscos, de um castanho quase que mórbido, acinzentados pela falta de esperança.

Eleonora poderia ser uma avó dócil, com olhar um tanto quanto perturbado, mas com um sorriso encantador. Ela transparecia calma e tranquilidade, exceto pelas mãos, sempre trêmulas, carregadas pelos resquícios das infindáveis convulsões de sua história. Vestida num manto quase que translúcido, como um pijama largo e surrado, ela mantinha-se ali, em sua cadeira de balanço, com os braços unidos, como uma senhora a bordar. Não havia nada em suas mãos, no entanto. Ela apenas ficava ali, repetindo o movimento do tricô eternamente, com os olhos alternando entre o teto, o chão e o rosto de Simon.

—Essa sou eu —disse ela, de voz cansada. —Quer um suéter?

—Creio que não seja necessário. Faz calor, hoje. Estamos bem assim.

—Eu tenho frio. Mas sempre tenho frio, na verdade. Deve ser de mim. Ou desse lugar. Gostaria muito de sair daqui, ver o sol outra vez.

—Mas você pode ver o sol daqui.

—O sol não quer ser visto daqui —retrucou ela. —Eu também não quero ser vista pelos de lá. São dois mundos diferentes, e mundos diferentes não nasceram para se conhecer.

Simon imaginou que aquela senhora tinha uma família, em algum lugar do país, possivelmente. Uma família que a abandonou nos momentos de dificuldade, talvez. Um neto que trabalhava demais, ou um filho preguiçoso, ou mesmo irmãos podres de rico que não queriam responsabilidades desnecessárias, mais preocupados com seus bens materiais do que com a herdeira de sangue. Eram casos mais comuns do que aparentavam, ainda que soassem como atitudes incrédulas. Todos os dias, pessoas eram abandonadas daquela forma, deixadas ao léu, jogadas no mar do adeus. Eleonora não seria a primeira, e infelizmente, tampouco a última.

—Mundos diferentes —Simon repetiu, tentando dar corda numa possível conversa de devaneios. Tinha nas mãos a câmera e um bloco de anotações, o qual rabiscava constantemente. —O que sabe sobre eles?

—Ah, sei pouco. Mas sei pouco porque pouco há pra se saber, obviamente. Entre fronteiras intransponíveis, diversos mundos um dia existiram, interligados e separados, ao mesmo tempo. Parece loucura, mas é só realidade.

—Não acho que pareça loucura —mentiu.

—Acho que mente. Mas não me importo. Aqui, todos mentem. Esse mundo é meio estranho.

—E qual deles não é?

—Nenhum! —e ela riu, pouco, um riso curto e abafado, que logo desapareceu. —Todos têm as suas loucuras, cada qual do seu jeito. Essa é a graça! Descobrir o que um mundo tem de mais louco que o outro era um passatempo interessante naquela época.

—Que época?

—Antes que ele chegasse.

—Ele?

—Sim. —Ela olhou para o lado, mas não havia ninguém. —Ele. Quando ele chegou, as coisas ficaram estranhas. Parece que esse mundo se fechou, enclausurado. Os outros mundos deram adeus e se esconderam, ou também se fecharam, talvez.

—E quem seria ele?

—O cara dos olhos fundos. Ele parece um de nós, mas é diferente. Sei lá o que ele tem. Acho que ele é louco.

—O que não seria nada bom. Pode me contar mais sobre os outros mundos, Senhora Eleonora?

—Por que quer saber? Aliás, quem é você? Está conversando comigo há um bom tempo e eu sequer sei seu nome, garotinho.

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