Prólogo

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O semáforo daquela rua oscilava.

Amarelo, vermelho.

Nunca verde.

Não era o único semáforo da cidade, entretanto. Diversos deles apresentavam o mesmo problema. Ao período noturno, alguns deles tremeluziam, descontrolados. Alguns diziam que era a parte elétrica, outros, que a culpa era do controle técnico. De qualquer forma, os semáforos oscilavam.

Especialmente aquele.

Era como uma música. Vermelho, amarelo. Amarelo, vermelho. Um, dois; três, quatro. As luzes voejavam no escuro da noite, brilhantes, manhosas. Não havia preguiça no semáforo, como haveria de ter em tantos quantos eram os olhos fechados nas casas. Havia caos. Luzes perdidas, sem rumo, sem firmeza.

Amarelo, vermelho.

Então, branco.

O branco de roupas. Vestimentas cujo vento era incapaz de sacudir. Um branco sereno, quase que imundo, impuro. Não marcava o corpo que vestia, grande demais. Não soprava junto do vento, pequena demais. Grande e pequena, assim, perfeita, era a veste que ali vestia um ser que de perfeito nada tinha.

E o Homem de Branco andava.

À sua frente, Simon corria. O castanho de seus cabelos sacudia, parte pelo vento, parte pela aceleração. Corria, olhando para trás, para os lados, para cima. Olhava para tudo, apavorado, e seu pavor era iminente, insensato, assombroso. Ainda assim, corria, pois é o que pavor faz com o homem: torna-o um fugitivo. E Simon fugia, certamente. Passo atrás de passo, veloz, confuso. Um tamborilar de sapatos ao asfalto da noite, criando sombras de seu corpo através do amarelo e do vermelho do semáforo a oscilar.

Atrás dele, o Homem de Branco caminhava.

Simon não o via, mas sabia que ele estava lá. Corria, sempre distante, sempre à frente, mas ele ainda estaria lá, eternamente. Era um caçador, e ele, Simon, era a presa. Um animal aos olhos do atirador, um pedaço de carne na mira das flechas famintas dos índios. Uma presa. Atrás de si, o caçador, a peça alva de um teatro negro.

A cena redesenhava formas e padrões no asfalto. Vermelho, negro, amarelo, branco. Uma junção inesperada de cores e pavores. Pouco havia de som naquela madrugada. Vez ou outra uma buzina, um ronco de motor, um freio mal colocado. Ofegante, Simon sentia-se sozinho, uma presa a fugir num cômodo vazio, calado. Arfando, ouvia somente a si mesmo, e as buzinas, os roncos e os freios eram longínquos demais, quase que inatingíveis. Pensou em caçá-los, na esperança de que lhe serviriam de ajuda, mas desistiu antes mesmo de tentar.

Sabia, de alguma forma, que o Homem de Branco não permitiria que ele obtivesse ajuda.

Eram apenas os dois, o semáforo e a noite sem estrelas.

No escuro do céu, poucas nuvens se formavam. Acima de Simon, o mundo era como um mar de breu, um oceano de pesadelos. O verdadeiro pesadelo, porém, estava ali, no plano em que o solado de seus sapatos estrondava. Atrás de si, em roupas comuns, em vestes claras. O Homem de Branco não parecia respirar. Não parecia viver, na verdade. De seu rosto, revelava apenas os olhos e parte da pele, ambos escuros, tanto quanto a noite que acolhia aquela perseguição, senão mais. E o escuro que ali se mostrava era um contraste com o branco de suas vestes, numa bagunça de cores abominável que, de tão perversa, nada tinha de explicação.

Então, uma nova cor surgiu no mundo.

Entre o amarelo e o vermelho do semáforo, azul. Entre o negro da noite e o branco das vestes, azul. Azul fervente, fátuo, brilhoso e bruxuleante.

Azul de fogo.

Do fogo incomum, certamente, já que o fogo há de ser alaranjado, quase que sempre. Havia o vermelho e o amarelo do semáforo, num dos cantos daquela passagem, mas o laranja de sua união não existia. O fogo era azul, ainda que quente. Fogo azulado, cristalino. O fogo crepitava num som incômodo, um ruído nauseante e repetitivo, que no silêncio daquela noite sem estrelas, assombrava.

O fogo estava nos cantos. No topo de edifícios, nas esquinas, sobre o semáforo que ainda alternava, vermelho e amarelo. Azul, num céu negro, no asfalto cinzento, mas não no branco das vestes. O branco era sempre branco, intocado por cores, por vento e por medo.

Mas o medo exalava do branco.

Simon suava frio. Seus olhos fraquejavam com as gotículas de pavor que escorriam de sua testa, salgadas e frívolas. As pernas doíam pelo movimento exaustivo, mas ele ainda corria, buscando atrás de si pelo perseguidor inexplicável, em vão. Ele estava lá, em algum lugar que seus olhos não eram capazes de encontrar. Mas lá estava. O Homem de Branco, seja ele quem for, o perseguia na noite sem estrelas, e o fogo queimava azul, bruxuleando.

Uma pedra se postou no caminho, e Simon caiu. A pedra miou; um gato, na verdade. Fugiu, amedrontado, sem sequer se importar com o branco, o amarelo, o vermelho ou o azul. Um gato negro, claro se comparado à noite ou aos olhos do caçador, subindo nos portões de uma casa qualquer, desaparecendo das vistas de Simon e do mundo. O tornozelo ardia, falhava. Simon tentou se levantar, mas seus músculos, nada torneados e preparados para tal feito, hesitaram. Ele manteve-se ali, quedado, inerte. Tremulava, mais pelo medo do que pelo frio, mais pelo pânico do que pela dor.

Precisava de ajuda.

—Socorro! —gritou, em vão. Ninguém o escutaria. Ninguém jamais o escutaria. —Socorro! Alguém me ajude! Alguém!

Rezou para que alguém aparecesse, ainda que não tivesse uma religião, uma crença ou uma fé. Rezou para que um rosto ali surgisse, à frente de seus olhos esperançosos.

E um rosto surgiu, intocado pelo amarelo ou o vermelho do semáforo, intocado pelo azul das chamas.

Um rosto negro, de olhos negros.

O Homem de Branco estava ali.

Ele era perverso. Se fosse possível desenhar o medo, ali estaria ele. Se um artista em devaneio rascunhasse o inferno com folhas de chá, algo similar a ele nasceria. Similar, pois nada era, ou seria, como o Homem de Branco.

—O que você quer?! —tentou, recuando. Se arrastava no chão, tremulante. Acima, vermelho e amarelo. Ao redor, azul. Fervente, sombrio. Azul.

Fogo.

—O que você quer? —outra vez, porém mais baixo, temeroso. A voz falhava, os pensamentos também. Simon estava ali, em corpo. Sua mente voava ao longe, fugitiva. Queria escapar, tanto quanto ele. Queria fugir do universo, dos medos, da morte.

Queria fugir do Homem de Branco.

Ele não respondeu.

Fez o que sempre fazia.

Caminhou.

Sem pressa. Seus passos eram arrastados, riscavam o asfalto com um ruído que desaparecia sob o crepitar das chamas azuladas. Em seus olhos escuros, Simon viu o escuro da noite. Não havia estrelas. Não havia esperança.

Não havia nada.

O semáforo parou na transição do amarelo e do vermelho, apagado. A noite congelou, de súbito. O vento deixou de soprar, gélido, fervoroso. Tudo parou, de uma só vez, e tardaria a voltar a caminhar. Apenas o Homem de Branco caminhava.

Ele e o fogo azul.

Simon tentou gritar, mas sua voz falhou.

Nada o salvaria naquele momento.

Nada impediria o branco das vestes.

Nada.

Sob a névoa noturna, sangue. Vermelho demais, quente demais. O gosto metálico se espalhava pelo ar, tanto era o sangue que ali havia. O sangue queimava junto do fogo azul, despejando para o vento congelado uma neblina férrea, arroxeada, cujo odor incrédulo derrubaria céticos.

O mundo chiou.

O negro da noite faiscou diante do branco. Cores se misturaram e se perderam. Não havia mais amarelo e vermelho. Tudo era branco. O branco do mundo cintilava, sinistro. O branco do céu, do solo, das roupas. Tudo era branco.

Exceto os olhos.

Aqueles olhos seriam sempre negros.

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