Aquele Garoto, de Phellipe Rangel

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Aquele Garoto é uma fanfic de Teen Wolf e portanto, dispensa certas convenções narrativas tais quais caracterização de personagens e apresentação do universo. Sendo esta uma história de universo alternativo, o intuito prévio da fanfic é construir tal universo (mesmo que este seja o universo realista) e adaptar as personagens a este contexto. Em suma, esse tipo de história é geralmente uma história de estudo de personagem.

Em Aquele Garoto, temos Stiles Stilinski como o narrador, estudante do colegial, que se apaixona à primeira vista por um estranho num ponto de ônibus em Beacon Hill (cidade na qual se passa Teen Wolf). Essa premissa é dado no prólogo e revivido no primeiro capítulo. Prólogo significa, no sentido mais comum, o que vem antes da história e/ou exposição. O prólogo não necessariamente deve conter a pré-história do que será narrado a seguir; ele pode conter o final da história, e neste caso, teria o papel de indicar uma ação reflexiva em relação à história; ou pode conter um trecho do clímax ou de uma peripécia central, com o mesmo efeito reflexivo, mas a partir do primeiro capítulo até a ação tratada no prólogo. Não é o que ocorre aqui. “Prólogo” cumpre o papel de expor o assunto da história, mas perde seu efeito porque logo no primeiro capítulo o narrador-personagem revive a cena apresentada.

A história tem um formato que remete ao folhetim e ao melodrama (uso aqui o termo técnico e não pejorativo: uso de recursos para prender a atenção do leitor, uso de fanservice, com muitas peripécias e reviravoltas ao longo da romance). A quantidade das peripécias é exagerada, e cenas como a da briga da família Stilinski pelos motivos do pai ter outra família deixa de ter foco no meio da cena e o tema da discussão passa a ser a sexualidade de Stiles; isso tudo dentro do quarto de hospital onde a mãe está se recuperando de uma tentatia de suicídio. Parece absurdo, e é, o que caberia se a história caminhasse para um sátira, mas aparentemente ela não chega a sê-lo. O que nos deixa na dúvida se essa era a intenção do autor, ou fora um descontrole em administrar o derenrolar das peripécias (chamamos esses elementos de “nó” e “desenlace”).

Como o autor assumidamente tende às cenas clichês, o exagero na quantidade de peripécias, uma atrás da outro, num espaço pequeno de dois capítulos, deixa o texto inflado, causando estranheza ou efeito cômico, mas tal efeito acaba deixando as questões dos personagens sem profundidade. E lembramos: o foco aqui são os personagens. Mas vamos supor que o foco fosse nas peripécias, elas ainda seriam demasiadas e as personagens teriam que ser mais planas para darem conta de tanta reviravolta; neste caso, as personagens mais reagem do que agem propriamente. Não é este o caso do romance. Desde o início já é nos dado a premissa sobre análise das personagens perante o encontro amoroso do protagonista. Essa é a peripécia principal: Stiles se apaixona à primeira vista por Derek, eles interagem em algumas cenas, eles se distanciam, eles brigam, eles se aproximam, eles brigam, eles assumem seus sentimentos, eles brigam, eles quase se acertam, tentam separá-los, eles brigam de novo, e eles se acertam. Isso dá mais ou menos dois terços do romance. Depois disso, o que acontece formalmente são resoluções das peripécias paralelas e o clímax acaba sendo extendido até o último capítulo, quando há a consumação sexual da relação dos dois (mais à frente comentaremos essa cena pois ela cruza com uma peripécia paralela).

As peripécias paralelas são importante porque é nelas que as personagens podem crescer e ser aprofundadas. Depois da peripéria principal, podemos elencar a segunda peripéria mais importante do romance: o abuso sexual sofrido por Scarlat e, sabemos posteriormente numa reviravolta, Stiles por colegas de escola. Ela tem essa importância antes mesmo de sabermos que Stiles fora mais que drogado por colegas de escola, o que parece artificial, já que o antagonismo de Anthony em relação ao Stiles naquela noite é enfatizado sempre que eles se cruzam ou seu nome é mencionado. Mas o problema desse arco é que ele é mais parte da linha narrativa de Scarlat que de Stiles, até a revelação nos últimos capítulos. Então o foco deveria ser no estupro que ela sofreu, e isso acaba sendo tratado com pouca seriedade. É impensável que uma pessoa que sofra abuso volte ao local apenas uma semana depois, para deixar lá uma caixa contendo objetos que simbolizem que “sempre há um lado bom nas coisas/pessoas”. Qual é o lado bom de ser estuprada? Ao final do arco, um dos estupradores se redime com Stiles e Scarlat, quando deveria ser igualmente punido tal como Anthony fora punido. E o mais impensável ainda é que ele e Scarlat se tornam um casal, nove meses depois do estupro. Nem a melhor pessoa do mundo agiria dessa forma em nove meses. O que nos leva de volta ao arco principal, quando Derek prepara uma “noite de núpcias” no local onde Stiles fora estuprado, dias depois dele descobrir isso. Não costumamos questionar as ideologias dos textos ou dos autores, mas numa situação de trauma é no mínimo muito ingênuo afirmar que “tudo tem um lado bom”. Não se trata de colar em cima de uma lembrança traumática uma lembrança boa, e pronto, trauma superado; a psiqué humana não funciona assim.

Há também o sub-arco da peripécia principal, o namoro de Stiles com seu chefe, Jackson. Ela não é totalmente indepentende porque tem o papel de ser um obstáculo na relação entre Stiles e Derek (pensando na estrutura). Posteriormente ele ganha certa complexidade, mas ainda é vinculada à peripécia principal. O interessante desse sub-arco é que ele dá mais complexidade ao Stiles e ao Derek que o arco principal. Não se trata de um simples “quem vai ficar com Stiles”, porque sabemos que no final, Stiles vai ficar com Derek (oras, sendo uma história clichê, sabemos como tudo termina, o que nos interessa é o como as coisas acontecem). Jackson não tem apenas o papel de causar ciúmes ao Derek. Ele faz Stiles questionar o significado de estar apaixonado, mesmo que de forma superficial (lembrando que estamos lidando com adolescentes).
Na outra ponta do triângulo, o namoro de Stiles com Jackson faz com que Derek, como personagem, possa dar atenção à questões de sua própria linha narrativa fora na narrativa. Stiles pode ser o protagonista, mas Derek é a personagem mais complexa. Ele precisa trabalhar para ganhar dinheiro, ficou alguns anos fora da escola para cuidar da mãe doente, precisa se aproximar de uma pessoa cruel, antagonista do garoto por quem se apaixonou, para poder entrar no time de lacrosse. Quando ele expoe sua situação ao Stiles, sua reação é infantil, como se ele estivesse pedindo que Derek escolhece entre sua própria mãe e uma paixão de algumas semanas (na época eles se tratavam como amigos, mas como o foco narrativo é de Stiles, não sabemos quando Derek percebeu que estava apaixonado). Há todo um monólogo no qual Stiles questiona a lealdade de Derek para consigo e diz que “os fins não justificam os meios”, mas isso só vale para um mundo maniqueísta e, por mais que tenhamos personagens maniqueístas nesta história (Anthony, o pai de Stiles, Jackson), Derek não é um deles. Como fica a compreensão de Stiles para com Derek? Quando Stiles sofre o acidente, o foco narrativo é de Derek, intercalado pelo foco narrativo de Jackson. Infelizmente, o que é narrado nessas cenas são apenas reações de ciúmes e brigas físicas um com o outro.
Em geral os três são bem egoístas; Derek menos, Jackson bem mais. Por exemplo, na cena do hospital, quando Stile acorda, ninguém pergunta como ele está se sentindo, só querem saber se ele lembrava do dia em que foi atropelado (e as conversas que tiveram sobre os sentimentos de Stiles em relação a cada um deles). Já o egoismo de Stiles (misturado com a ilusão de que é preciso um outro amor para curar um coração partido) fez com que ele caísse no assédio do seu chefe sem nenhum questionamento sobre todas aquelas regalias, vantagens e segundas intenções. Sem contar uma tendência que ele tem de tratar mal toda personagem feminina que não é sua amiga ou sua mãe, sem motivos.

Encontramos alguns furos internos, como por exemplo: a informação de que Jackson sabia algo sobre Anthony e isso nunca ser esclarecido; Scarlat ter se mudado há dois anos por causa de sua carreira de modelo, mas Anthony ser culpado por ela mudar de escola no semestre anterior; a menção ao uniforme escolar ter sido abolido e descrições onde Stiles veste o uniforme. Há problemas de verossimilhança mais gerais tais como: a história se passar numa cidade americana e o ano letivo da escola ser como nas escolas do hemisfério sul; uma grande quantidade de nomes brasileiros em personagens secundários; a existência de uma editora multinacional numa cidade pacata e mesmo o funcionamento dela não se assemelhar à de uma editora. Outros problemas menores como algumas repetições de erros ortográficos como “nus” no lugar de “nos”, “estar” no lugar de “está”, "perca de memória" no lugar de "perda" e o uso equivocado de algumas conjunções, mas nada que uma revisão mais atenta não pudesse resolver.

A dica que damos na questão temática é a leitura dos romances da dita fase romântica de Machado de Assis, como Iaiá Garcia, que trata de um triângulo amoroso dentro de um complexo contexto (e foi publicado em folhetim). A dica formal é para que o autor aproveite o formato kitsch dos filmes de Pedro Almodóvar, que consegue pegar um clichê, deixa-lo cômico e denso ao mesmo tempo.

Obs.: A Fuga das Galinhas é denso, feminista.

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