Alguns quilômetros por ali, de Thayna Dinizs

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A história trata de um encontro entre duas mulheres que se relacionavam à distância, mas há meses não se falam. Narrado por uma delas, Valentina, a ação se inicia quando ela está em Brasília, em busca de uma confirmação do término do relacionamento delas, o que por si só nos faz perguntar: por que agora? Valentina mora em Minas Gerais e com o auxílio do irmão da ex-namorada, quer surpreendê-la numa festa de aniversário onde se encontra com a nova namorada. Não sabemos a duração do namoro delas, mas considerando que a família de  Laís conhece Valentina e está ciente da situação das duas, não deve ter sido um relacionamento curto.

Apesar da história ser dividida em capítulos e ter um epílogo, ela tem a estrutura de conto: tem apenas uma peripécia, é concisa e concentrada, e termina de forma abrupta, no clímax - o papel do epílogo aqui não é de explicar algo, ele apenas cria um gancho e abre possibilidades que ficam a cargo do leitor imaginar. O primeiro capítulo começa como se fosse o meio de história: se inicia abruptamente, sem as apresentações sobre as personagens, e sem maiores explicações sobre o que elas estão fazendo ali além do mais imediato. Esses elementos dão o tom da narrativa. Trata-se de uma história já iniciada previamente, mas cujo término ficou mau resolvido. A narrativa se inicia no que poderia ser um clímax do relacionamento delas como um todo, o encontro. Como ao longo da narrativa o leitor pouco toma conhecimento da pré-história (o namoro), acabamos conhecendo muito pouco da dinâmica do relacionamento das duas. O que temos propriamente é a dinâmica corporal entre elas (que é novidade no relacionamento, posto na narrativa) e vários mau-entendidos, manipulações, deslealdades, rancores (acumulados ao longo do relacionamento).

A estratégia de Valentina é surpreender Laís e sua nova namorada, Fernanda, num local público, para que, segundo a narradora, sua ex-namorada pudesse fugir de si. Vê-se que essa ideia não tem fundamento, e o risco de confronto com a atual namorada é possível (dado o desconhecimento da personalidade dela), além do mau estar geral de tentar resolver problemas amorosos em local público. Mais adiante, ela muda de argumento e diz que a escolha do local é para salvaguardar sua integridade física, considerando que Laís bem poderia bater nela. Por ser narrativa em primeira pessoa, não podemos confiar no juízo de Valentina, mesmo que tenhamos acesso à história apenas por ela. Sendo assim, questionamos então os reais motivos dela ter escolhido um local público no qual Laís está com a atual namorada. Causar ciúmes? Causar desavensas? Causar? Novamente, por que ela resolveu ir de encontro com Laís agora, depois delas terem terminado? Mais à frente, Valentina diz para Laís que precisava de confirmação, vê-la nos olhos dizendo que tudo entre elas tinha acabado. É um motivo egoísta, e talvez Laís deva mesmo isso a ela. Mas também tem um fundo de esperança de que o encontro cara-a-cara vá suscitar emoções e resolver os problemas do relacionamento. Resumindo, que a atração sexual entre elas vá sobrepujar seus defeitos. É ingênuo, mas quem pode culpá-la? É seu último recurso na tentativa de salvar seu relacionamento, mesmo que a outra já tenha seguindo em frente. Valentina age por impulso, motivada pelas emoções e pelas sensações. Ela pode dizer que tem medo de apanhar de Laís, mas ela também tem medo de bater em Laís. Pode parecer um pouco arriscado afirmar isso, mas é uma possibilidade plausível considerando os indícios de seu comportamento (ela mesma diz que estava apreensiva que as possíveis reações de Laís poderiam lhe causar), mesmo que num outro momento ela não tenha revidado os socos de Fernanda.

Laís age de maneira parecida com a de Valentina: reage aos aconteciemntos motivada pelas emoções e sensações. E por mais que ela tenha arquitetado o cárcere privado – um problema sério – não entendemos seus motivos. Por que se confinar com a ex se Laís deu todos os indícios de que não quer mais esse relacionamento? Ela pode por a culpa nos mau-entendidos, e no seu próprio medo de ser abandonada, mas seus atos fazem o letreiro de “relacionamento abusivo” gritar. E até podemos supor que ela esteja confusa, já que seus atos são confusos. Mas não justifica o abuso. No final da narrativa, Valentina, num momento de muita lucidez, percebe que elas não conversaram de verdade, como adultas que são. E mesmo nos poucos momentos em que elas falam o que sentem enquanto estavam encarceradas, é uma fala motivada pelo desejo de ambas de se entenderem, mas sem profundidade. Vemos como Laís é volátil e termina seu outro relacionamento gritando do lado de dentro do apartamento, sem olhar ou dar maiores explicações sobre seus motivos à Fernanda. Esse é o primeiro indício dentro da narrativa de que Laís não se importa com os sentimentos alheios. Valentina viu nos olhos de Laís o que queria ver, e entorpecida pela reconciliação, perdeu esse momentos de perceber que Lais estava procedendo com a outra como procedeu consigo. Antes, Valentina achou que quem tinha detido as duas no apartamento era o irmão de Laís (o que por si só é problemático), mas não esboçou indignação porque a reconciliação tinha dado certo. A partir do momento que Valentina fica sabendo que seu encarceramento foi arquitetado por Laís, Valentina percebe de fato que Laís não é confiável e todas as mágoas e problemas do relacionamento das duas emergem e elas terminam de vez. O amor ou o que elas julgam que seja amor não é suficiente. E chegar a essa conclusão indica que Valentina amadureceu no processo.

O epílogo, como dito antes, abre possibilidades, mas não necessariamente de reconciliação. Como ele é aberto, vai da interpretação do leitor. As personagens secundárias estão na narrativa apenas para causar os mau-entendidos ou auxiliar nos planos das duas personagens principais, dada a concisão da narrativa, mas poderiam ter um melgir cuidado em cena (a aniversariante, por exemplo, simplesmente desaparece depois que Valentina a beija). Há alguns problemas de entendimento de algumas frases por motivos de falta de vírgula e uso equivocado de conjunções, mas nada que comprometa o entendimento geral.

Indicamos a leitura das peças de Henrik Ibsen, em especial Casa de Bonecas, que trata da importância da conversa séria entre um casal, além da presença forte do passado e suas complicações devido ao tempo decorrido.

#DesafioLGBT: Resenhas (FECHADO)Onde histórias criam vida. Descubra agora