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A neve estava mais densa agora, meu pé afundava de acordo com os paços pesados e firmes que eu dava até chegar a porta do palácio.

- A partir de hoje, vocês passaram mais tempo juntos – James disse autoritário no alto da escadaria enquanto olhava para mim e Felipe – A senhorita se mudará para o quarto ao lado de Charles no quinto andar, esta noite.

- Gosto do meu quarto – disse recusando.

- Eu não serei contrariado! – o rei gritou – Vocês faram o que eu quiser, quando eu quiser e como eu quiser!

- Não pode forçar ninguém a se apaixonar – o príncipe tomou forças para mais um desafio com o rei.

James se aproximou de nós dois com um olhar vencedor e gélido.

- Eu sou o rei, ninguém é mais poderoso do que eu.

"Conheço uma rainha que falava a mesma coisa, mas presumo que James não brigaria com ninguém por causa de tiaras" – pensei lembrando de mais uma referência literária. Felipe me acompanhou até o salão de entrada, pensei que ficaria para chorar sozinha no meu quarto, mas o príncipe me chamou antes que eu pudesse me virar.

- Ayla, eu sinto muito...

- Ter um pai com uma pedra no lugar do coração, não te faz culpado de nada.

Ele sorriu de leve.

- Tenho que agradecer por ter me defendido – me aproximei tentando não demonstrar a minha vontade de chorar – O que você quis dizer com "Eu não tenho mais treze anos de idade"?

O sorriso no rosto de Felipe desapareceu e ele pegou a minha mão.

- Consegue guardar um segredo?

Confirmei com a cabeça, então ele começou a me levar para o quarto dele. Quando chegamos, fechei a porta e perguntei.

- O que aconteceu?

O príncipe estava de costas, olhando alguma coisa nos braços e respirando pesado.

- Felipe? Não precisa me contar se não quiser...

- Chega uma hora em que temos que mostrar quem somos...Ninguém consegue esconder as lágrimas por muito tempo, uma hora ou outra elas vão transbordar. Você querendo ou não.

Ele rasgou as mangas longas da camiseta preta, pegou um pano com algum líquido e passou nos braços. Quando ele se virou, consegui ver as cicatrizes profundas que cobriam os pulsos, algumas ainda estavam frescas.

- O que ele fez com você? – Caminhei até ele preocupada.

- Ele não fez isso. Eu fiz.

Quis perguntar o motivo que o levou a se auto mutilar, mas as pessoas que fazem isso não precisam desse tipo de pergunta ou julgamento. Elas precisam de alguém que as acolha.

- Desde os meus treze anos escuto que sou fraco de mais, novo de mias, inútil de mais. James sempre me disse que homem não chora e que se eu fizesse isso, era porque eu não um homem digno de governar o meu país.

Não sabia o que fazer, Felipe começou a chorar e com tudo isso, o meu orgulho vacilou e as lágrimas também começaram a encharcar o meu rosto.

- Eu uso maquiagem a prova d'água e manga comprida para esconder as marcas por isso quase ninguém sabe – ele permanecia com a

cabeça baixa – Essa se tornou a única forma de me sentir melhor, mas ao mesmo tempo eu me odeio por me rebaixar a isso. Chegou uma gora em que ficou inevitável, cada corte era um alívio...deve ser por isso que eu não consigo parar.

O abracei forte tentando amenizar a dor oculta de um príncipe que se afogava nas próprias lágrimas.

- Vem aqui – sentei ele na cama e fiz o mesmo – Às vezes, as pessoas mais felizes são as que mais tem motivos pra chorar.

Chorei ainda mais por lembrar que eu era uma dessas pessoas. Felipe levantou a cabeça e começou a limpar as minhas lágrimas.

- Não chore, por favor. Não quis te magoar...

- Não, é que o meu pai também tinha uma cicatriz, eu sei como dói – lembrei da história do meu pai, da dor que era ficar longe de quem eu amo e de como me senti quando a minha mãe morreu - Pessoas boas como nós, só ganhamos uma cicatriz para nos ajudar a amadurecer, ela fica ali para nos lembrar de sermos fortes e de que ainda há esperança, apesar de tudo.

Felipe olhou para mim triste, mas com admiração, ele se aproximou segurando o meu rosto e me beijou. Foi um beijo delicado, digno de um príncipe, mas inesperado para dois amigos.

- Desculpe Ayla – ele se afastou enquanto eu processava a informação – Eu agi por impulso, eu sei que você não me ama. Me perdoa...

Fechei os olhos e segurei a mão dele. "Essa é a sua vida agora, Felipe é o seu noivo e você a futura princesa da França" – pensei por alguns segundos e abri os olhos.

- Você também não me ama, mas agora precisamos começar a aceitar que em breve serei a sua noiva...

- Eu sei que não sou o amor da sua vida, mas farei tudo o que eu estiver ao alcance de um rei para fazer você feliz.

"O grande problema é que eu não queria tudo o que estivesse ao alcance de um rei, eu queria tudo que estivesse ao alcance de alguém que me amasse" – meus pensamentos estavam confusos demais para serem compreendidos naquele momento, então resolvi que que era melhor ficamos nos olhando por alguns segundos, mas alguém bateu na porta.

- Só um minuto – ele disse enquanto ai até a porta.

Ouvi um choro de criança e reconheci a voz de Charlotte que vinha segurando um cobertor.

- Eu quero a mamãe.

Príncipes sabiam planejar ataques, mas pela cara de Felipe concluí que explicar a morte para uma criança, não era impossível para ele.

- Vem aqui princesa – peguei ela no colo e fui para a sacada – Está vendo aquela estrela lá em cima?

Ela enxugou as lágrimas e olhou para a estrela mais brilhante do céu.

- Sim.

- A sua mamãe está lá – tentei explicar – Se você acreditar, ela sempre vai estar lá para te proteger.

- Mas eu quero ela comigo...

- Ela está – apontei para o coração dela – Bem aqui.

- Você pode conversar com ela sempre que quiser – Felipe disse se aproximando.

- Mas e quando estiver de dia? – Cece conseguiu se acalmar e começou a querer entender.

- Você deixa de acreditar na luz quando fecha os olhos? – Perguntei e ela fez que não com a cabeça – E quando a nuvem cobre o sol, ele sempre volta não é?

- É assim que vai ser – o príncipe complementou e depois fez pose de super-herói – E eu sempre estarei aqui para te proteger.

- Meu irmão – Cece desceu dos meus braços e subiu na cama para fingir que estava em perigo – Me salva, me salva.

Os dois começaram a brincar de "salvar o dia", mas eu não estava muito no clima então saí de fininho. Ao ver eles assim lembrei de como eu, Aurora e minha mãe ficamos mais unidas quando meu pai morreu; então conclui: Talvez o amor possa unir muito mais do que a morte pode separar.

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