2 | S t r o n g

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   Encostado no batente da porta fico algum tempo observando a doce garota que dorme

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   Encostado no batente da porta fico algum tempo observando a doce garota que dorme. Ela poderia ser facilmente comparada a Bela Adormecida, se quem a olhasse enxergasse somente sua beleza e mansidão e não o monitor cardíaco ao seu lado ou a sonda nasogástrica, embutida em seu nariz. Os equipamentos médicos tiravam a leveza do quarto, mas mantinham a jovem viva.

   Sem eles, ela provavelmente morreria e levaria consigo seis longos anos de minha história profissional. Isso é mais do que a metade do tempo que exerço medicina.

   — Bom dia Ana! — Digo com um sorriso sereno, adentrando o espaço claro e silencioso.

   Agarro a caneta azul do bolso do meu jaleco e com agilidade vou preenchendo a ficha diária da minha mais antiga paciente. São anos de prática, fazendo exatamente a mesma coisa todos os dias e em questão segundos eu termino. Coloco a prancheta sob o pequeno móvel ao lado da cama e tiro o estetoscópio do pescoço, posicionando-o sobre o peito de Ana.

   Depois de alguns minutos percebo que está tudo normal. Como sempre. Nenhum som vascular diferente, nenhuma alteração, tudo absolutamente regular.

   Meu sorriso se amplia.

   — Você é quase tão repetitiva quanto minha sexta-feira à noite. — Falo olhando para ela. Seu cabelo está comprido e tão loiro quanto no dia em que a trouxeram. Seus lábios estão ressecados pelo frio e seu rosto pálido. Mas mesmo assim, Ana continua terrivelmente bonita. Seis anos se passaram e ela ainda conserva o mesmo rosto angelical da época de seu acidente, quando ganhou os jornais e revistas.

   Eu me lembro bem como foi.

   Minha mãe havia falecido semanas antes então me joguei de cabeça no trabalho. Fazia plantão de manhã, de noite e quando dava, emendava os dois e passava o dia todo no hospital. Tudo para não ter que chegar ao meu apartamento e o encontrar vazio.

   E foi durante um desses plantões, numa noite chuvosa de dezembro, que uma misteriosa garota deu entrada no hospital. Ainda me recordo com exatidão da expressão de choque que percorreu o rosto dos outros pacientes, que estavam na sala de espera, quando a equipe de emergência entrou empurrando a maca que respingava água. A informação inicial era que uma garota tinha sido atropelada por uma caminhonete desgovernada e foi arremessada no lago, depois a versão foi de que um casal de namorados havia capotado com o carro, e se cogitou até mesmo a possibilidade da garota ter tentado o suicídio acelerando propositalmente seu carro contra o lago Oasis.

   O fato que mais chamou atenção foi que a moça de baixa estatura e expressões angelicais estava vestida de noiva.

   Depois que ela chegou ao hospital e os primeiros exames foram feitos a jovem foi encaminhada para a mesa de cirurgia e fui eu quem a operou. Ela tinha batido a cabeça com força contra o volante no momento do capotamento e isso causou uma hemorragia interna. O quase afogamento em seguida apenas agravou seu quadro.

   A mídia estava descontrolada com a Jovem Noiva, como a chamavam nas reportagens. A história estranha já ganhava a atenção da cidade.

   Naquela noite, quando peguei o bisturi senti minhas mãos tremerem. E quando você é um neurocirurgião e está prestes a operar alguém isso é a pior coisa que pode acontecer.

   Lembro-me de ter sussurrado no ouvido dela palavras encorajadoras e também ter dito que quando ela acordasse, sua família estaria aqui. O que eu não sabia na época, era que mesmo com todos noticiando o trágico acidente, nunca ninguém procurou pela jovem noiva.

   A cirurgia foi um sucesso, porém, ela não acordou. No início pensei que fosse normal, que ela precisaria de uns dias para se recuperar e descansar, mas depois o tempo foi passando e os dias viraram meses e os meses viraram anos. A mídia perdeu o interesse e parou de abarrotar a sala de espera com seus repórteres sedentos e suas câmeras invasivas. Depois de cinco meses o hospital decidiu que iria desligar os aparelhos e que o governo se encarregasse de enterrar a desconhecida. Foi um tumulto.

   Só não o fizeram, pois a polícia não deixou. Ainda estavam investigando e isso me deixou esperançoso.

   Todas as noites depois do meu turno, eu vinha conversar com ela. Alguns colegas chegaram a pensar que uma depressão estava tomando conta de mim, devido à morte recente de minha mãe e o distanciamento da minha irmã Jane. Mas não... eu estava bem. Conversar com a jovem noiva me deixava bem.

   Quando ela completou um ano em coma, comecei a chama-la de Ana. Era um nome bonito, leve e que com o tempo foi ganhando espaço no meu coração. Apesar de a jovem permanecer um enigma completo, tinha ganhado algo somente dela: Um nome. Mesmo que não fosse seu verdadeiro.

   Em junho, um ano e seis meses depois, a polícia de Boston arquivou a investigação sobre Ana. Não havia mais pistas para serem examinadas, nem testemunhas a serem ouvidas. Novos casos surgiam a cada dia, fazendo o departamento de polícia desistir da jovem.

   Quando o policial passou pelo corredor procurando o diretor do hospital, soube que era para autorizar o desligamento dos aparelhos de Ana. Minha mente borbulhou e pela primeira vez me senti agoniado com a possibilidade de perda de um paciente.

   Na minha área, a neurologia, perdas são constantes. Trato de pessoas com doenças cerebrais que vão desde deficiências, atrofias... até câncer. Mortes são algo com que tenho que lidar. Mas a provável morte de Ana foi um fardo muito difícil de carregar, principalmente porque ela ainda estava aqui, nesse mundo, nessa vida.

   E para mim, nenhuma pessoa tem direito de dizer até onde a vida de outra deve ir. O hospital salva vidas, ele não deveria as tirar.

   Então eu fiz o que achava certo. Comprei a briga para mim. E depois de muitas reuniões consegui os fazer mudar de ideia e deixar a jovem desconhecida, Ana, viver por mais tempo. Ela seria uma "voluntária" em alguns testes com novos medicamentos e apesar de não concordar muito com isso, foi o melhor que consegui.

   Os testes duraram anos e foram supervisionados de perto pelo conselho administrativo. Jordan Hopkins, um dos donos do hospital e Phill McTurner, diretor, supervisionaram tudo de perto. Mas assim que tiveram acesso aos resultados tacharam Ana como inútil. Agora eles querem a descartar, eu sei. Mas não estou disposto a permitir.

   São anos em coma e em nenhum momento houve qualquer tipo de complicação no quadro hospitalar de Ana. Ela não quer morrer. Talvez esteja lutando neste exato momento. Talvez ela esteja esperando o momento certo para acordar.

   E eu vou esperar com ela. Nem que demore mais seis anos.

   Respiro fundo quando percebo que havia passado o pouco tempo que eu tinha disponível. Tenho que ir para minhas consultas agora. Ajeito o jaleco e olho para ela, segurando sua mão, como costumo fazer.

   — Tenho que ir atender meus outros pacientes e depois brigar com o conselho para garantir seus aparelhos por mais alguns meses, mas você vai ficar bem — Digo sorrindo — A mensagem de hoje é: "O que não provoca minha morte faz com que eu fique mais forte".

   E ainda sorrindo esperançoso, deixo o quarto indo direto para o piso superior.

   E ainda sorrindo esperançoso, deixo o quarto indo direto para o piso superior

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