O guia das histórias cruzadas

Roupa amassada

  Havia tanta coisa naquele guarda-roupa que era muito provável aquela roupa amassada nunca mais ser vista, mas digo-vos, adoro essas peças que o destino nos prega! E a vida amorosa de Letícia apenas era palco para a lembrança.

Amor fervente, dos que mais me encanta falar. Casal inconsequente que aproveitou ao máximo os seis meses que tiveram a partilhar a vida. Sim, pouco, mas muito para todos os momentos que fizeram acontecer, e aquela roupa amassada era prova de uma noite louca, tão louca que Letícia teve de sorrir ao ver.

Estava pronta, ou quase. Almoço de família é a coisa mais complicada de ser pontual, e achar uma camiseta estava a ser mais difícil do que o habitual. Como eu disse, havia tanta roupa que seria quase impossível, mas não naquele dia 20 de outubro, que por acaso, era data de namoro de Letícia e Marcos. Casal de 2015, casal de loucuras e fetiches.
Aquela camiseta não era para estar ali, pois quando chegou o término, Letícia havia doado tudo que ganhou, tudo que a fizesse lembrar, e assim o esqueceu, ou não. Pois a camiseta ainda estava lá.

Distraída e com pressa, a puxou, vestiu e somente a frente do espelho notou. E agora, sim, agora começa o feixe de lembranças, o sorriso inquieto, torto.

- Ah, Marcos! Achei que havia te trancado na memória. Eu me lembro dessa noite.

Sua mente falava, parei para ouvir.
Estavam em Búzios, um fim de semana memorável para aquele casal que viajava sempre de carro, aprontando pelos caminhos, som ligado, velocidades máximas, a juventude gritava e a sua voz jamais era de fundo.

Já no fim da viagem, chovia tanto que parecia cair o mundo, completamente molhados, não iriam embora assim. Entraram então numa pequena loja que vendia lembranças, e ali, Marcos escolheu a camiseta que dizia "O meu amor veio de Búzios e essa lembrança restou". Era engraçado lembrar das loucuras que fizeram, e que aquela camiseta por muitas vezes fora testemunha. Além de que o fato mais curioso era ser sempre vestida amassada.

Atrasada e com pressa, Letícia se esqueceu do mundo e fitava o espelho com saudade nos olhos. A essa altura já não se lembrava porque tinha fim, mas sabia que uma simples mensagem não a mataria, e enfim, mesmo amassada a camiseta lhe servia. Saiu para o almoço e no caminho digitou para o número que mesmo inexistente em seu telefone ainda estava gravado na memória.

"Bom dia, Marcos. Aqui é a Letícia, estou mandando esta mensagem para te lembrar do final de semana em Búzios, a camiseta ainda me serve, e ainda amassada está!"

Talvez isso seja superar, e não trancar as memórias, doar as lembranças e se desfazer do que aconteceu. A vida é mesmo momento, e um amor, por mais que fracassado, é algo que se viveu. Letícia trancou Marcos, e aquela camiseta amassada a fez ver que não o esqueceu, até porque nunca se sabe quando um amor morreu.