O CÚMPLICE

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O vendedor de seguros, Matheus Santos, estava descansando em casa quando o telefone tocou. Ao atender, palavras atropeladas atravessaram o cabeamento telefônico e esbarraram em seu ouvido. Era seu futuro cúmplice Alberto, que perguntava desesperadamente sobre o que fazer para obter um seguro de vida que englobasse sua esposa e filhos. Perguntas brotavam de todas as formas ao ponto de deixar o pobre corretor aturdido e ao mesmo tempo em estado de alerta, pois, aquelas não eram simples perguntas comuns em suas vendas. Os xingamentos se iniciaram assim que Alberto perdeu a calma por completo e diante disso, o tabelião do cartório municipal e corretor de seguros lançou ao ar a pergunta que desmontaria toda a agressividade de Alberto Azevedo:

"Você quer ou não o dinheiro do seguro, Sr. Alberto?"

O silêncio absoluto entre os dois era quase palpável. Do outro lado da linha o ex-garimpeiro Alberto estava com as mãos frias e seus olhos latejavam. Seu coração acelerou e num impulso involuntário recolocou o telefone no gancho.

 [...]

Matheus Santos lembra claramente — enquanto caminha descalço na areia da praia particular da Ilha do Caranguejo — de ter segurado o impulso de dizer a Alberto o valor de uma família. Porém o que fez, foi retirar calmamente o telefone do gancho e discar o número do empresário. Os dois se conheceram em uma das muitas visitas que Alberto fez ao Cartório Municipal onde Matheus trabalhava. Foi em uma destas visitas que Santos percebeu o quão rico e cheio de esquemas escusos era Alberto. O que era um bom atrativo para esquecer sobre seus princípios.

Enquanto vislumbrava o pequeno ponto branco que vinha despontando no horizonte trazendo consigo a família de Alberto, Matheus Santos concluiu suas lembranças do dia anterior ao relembrar que, após discar o número de telefone do empresário — e este atender antes mesmo do segundo toque — ter dito o que o empresário tanto ansiava ouvir:

"Te ajudarei no que precisar."

O resto de humanidade que resistia bravamente dentro daquele empresário quase falido foi expurgado após a frase nefasta de Matheus. Foi a partir dela que eles conversaram sobre métodos e planos, sobre falsificações de laudos e valores de propinas a serem pagos. Concordaram em como ceifariam aquelas vidas e de como seriam extremamente ricos a partir dali. Matheus Santos pensou em tudo, não era a primeira vez que mataria alguém.

Após ter atracado o barco pesqueiro que alugou para chegar na ilha e andar por alguns minutos na praia da Ilha do Caranguejo, o corretor leu as instruções salvas em seu celular — desde como chegar à ilha até como entrar na velha mansão — e finalmente encontrou o local do abate: uma velha e suntuosa mansão construída aos pés de uma formação rochosa, bem no centro da ilha que facilmente passava dos dois mil metros quadrados.

A construção era antiga, talvez da época do Brasil Colonial, com dois andares — térreo e varanda superior — totalmente construída com madeira de lei. Seu telhado circular foi feito com telhas coloniais e sua fachada dava um toque de alta nobreza. Janelas arredondadas pareciam povoar toda a mansão e, foi em uma delas que Matheus pôde ver uma mulher. Ela estava lá, olhando para a imensidão do mar prateado, evaporando por conta dos raios de sol insistentes e abrasivos. Matheus a observou atento, na certeza de que ela também o veria. "Na certa é uma empregada do casal de alemães donos daqui" pensou ele, enquanto olhava na direção do olhar da estranha. Viu apenas o gigantesco mar, alguns navios cargueiros ao longe levando minério para algum país asiático e o ponto branco no horizonte, que era o iate de seu sócio macabro. "Ela os está vendo?" Pensou Matheus enquanto retornava seu olhar para a tal janela, mas a mulher já não estava lá. E isso o preocupou. Ele se apressou em chegar à Mansão em meio a passadas desengonçadas por entre as pedras no caminho, enquanto o sol já se adiantava para o centro do céu para naturalmente, marcar o meio dia.

Matheus entrou na mansão pela entrada de serviço, usando uma chave reserva oculta pelo caseiro dos proprietários sob um vaso de orquídeas mortas. O fedor de mofo era pungente, as tábuas rangiam a cada passo que ele imprimia sobre o chão amadeirado e o vento que beijava as paredes e o telhado, pareciam suspiros agourentos. O corretor de seguros subiu as escadas empoeiradas e entrou de quarto em quarto procurando a mulher desconhecida, até que na sexta tentativa a encontrou perto da janela de antes. Ele se moveu vagarosamente, tentando não emitir ruído algum, sua intenção era fazer dela mais uma vítima de seu plano macabro. O sol invadia a mansão pelas janelas circulares, mas logo a noite e seus horrores dominariam a tudo e a todos.

Santos se aproximou o suficiente para perceber que o sol não iluminava a mulher, ele a atravessava, de forma que a estranha não projetava sombra sobre o assoalho. Matheus congelou no lugar que estava por um momento e ao ver o rosto esquálido da mulher que agora virava para encará-lo, segurou um grito na garganta e de súbito, fugiu. Ele desceu as escadas aos tropeços e tentou abrir a porta da frente no térreo, sentindo sempre as órbitas vazias da mulher queimando suas costas; ouvindo os estalos daqueles músculos rígidos ao mover seu rosto para encará-lo e o estilhaçar daqueles ossos sob a carne azulada e cheia de lodo.

O homem parecia estar sendo sugado, sentia seu sangue congelar e sua sanidade sumir com aquela cena e os sons horripilantes ecoando em sua mente. Forçou a porta da frente na tentativa vã de escapar e então lembrou por onde veio. Correu para os fundos, mas antes que encontrasse a saída sentiu uma mão segurar firme em volta de seu pescoço. O cheiro de água do mar invadiu as narinas de Matheus enquanto sua mente se recusava a aceitar o que seus olhos testemunhavam. Diante dele, um homem negro vestindo apenas uma calça feita de saco de estopa e com grilhões em volta de suas mãos e seus pés, se empenhava em asfixiá-lo.

Os olhos de Matheus injetaram-se de sangue e seus pulmões queimavam como um forno à lenha. Ele sentiu sua vida escorrer para o ralo da morte e seu corpo desfalecer, contudo, quando tudo parecia perdido o escravo simplesmente evaporou, deixando-o cair bruscamente no chão. Ao longe, Matheus Santos pôde ouvir vozes. A família de Alberto chegava à porta. Para o corretor isso já não importava mais, ele sairia daquela ilha infernal a qualquer custo.

Assim que Alberto inseriu a chave antiga na porta principal destrancando-a, o amedrontado Matheus Santos fugiu cambaleante pelos fundos. O corretor correu desnorteado, chorando como uma criança. Talvez da mesma forma que os filhos de Alberto chorariam ao terem suas vidas arrancadas por Santos já que o empresário havia sido claro (e covarde o suficiente) para dizer-lhe que talvez não possuísse coragem de matar os próprios filhos, apenas a esposa. "Grávida! Ela está grávida", pensou Matheus arrependido, chorando até suas lágrimas lhe impedirem de ver à frente.

Ele correu até cair num velho poço já coberto pelo matagal e, para sua infelicidade, cheio de água lodosa talvez da chuva ou do próprio mar, que a tudo invade e consome. Nos primeiros minutos ele se debateu e implorou por misericórdia olhando para as nuvens azuis que estampavam aquele céu deslumbrante. Ele berrou por socorro e tentou escalar as paredes barrentas, atitudes inúteis que só defecaram em sua esperança. "Eu estou só", pensava Santos se lamuriando. Mas estava errado. Ele notou o equívoco assim que um vulto surgiu lá em cima, onde o ar não cheirava a limo. Era a mulher morta que o encarava, mesmo não possuindo olhos nas órbitas, ele sabia de alguma forma que ela o olhava. Assim como sentiu alguém o encarando ali, dentro do poço. Algo estava lá com ele, arfando próximo ao seu pescoço.

Matheus iniciou o Pai Nosso, mas não o concluiu, pois, uma mão pesada como a que antes se enroscou em seu pescoço, pressionou sua cabeça para baixo d'água, abafando suas palavras, seus gritos de arrependimento e terror. Até sua vida finalmente abandonar seu corpo.

                                                          CONTINUA...

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