NOITE CHUVOSA

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Alberto atracou o barco pesqueiro próximo à praia da Ilha e foi recebido por uma forte chuva. A noite caiu sobre a ilha como um manto negro e espesso e gélido. Ocultos nas trevas, os guardiões seculares daquela mansão aguardavam a volta de sua marionete assassina. As janelas redondas refletiam os raios e relâmpagos que explodiam a todo o momento no horizonte, e as tábuas que antes apenas rangiam, preparavam-se para gritar. Alberto subiu a praia e ultrapassou o cinturão de rochas que levava ao caminho da Mansão. Debaixo das pesadas gotas de chuva, o empresário assassino vislumbrou momentaneamente a mansão e viu seu esplendor sombrio. As janelas atuavam como centenas de olhos o observando, ávidos por sua visita, hipnotizando-o e o atraindo para uma noite de trevas.

Assim que o empresário entrou pela porta, vislumbrou uma grandiosa festa que se desenrolava no salão principal. Alberto olhou em volta e viu escravos servindo licor, conhaques e vinhos. Havia pessoas nos degraus das escadas, nas cadeiras no meio do salão e nos corredores, andando para lá e para cá, conversando sobre tudo e sobre todos. Pareciam aguardar algo, prestes a acontecer. O clima era fúnebre, tendo apenas a luz das velas presas ao lustre e em candelabros espalhados por todo o ambiente. Os burburinhos começaram a cessar assim que homens encapuzados adentraram ao local, carregando em uma robusta rede de panos brancos rendados, uma criança negra com grilhões atados a seus frágeis pulsos. Alberto se alocou em um dos assentos de madeira ainda vago próximo à escadaria principal e de lá viu um dos encapuzados sacar uma adaga dourada e a beijar, depois dizer palavras em latim e pelo que parecia também em alemão:

"Das brüderliche Grüße an Thule. Vincit omnia"

Os brancos gritavam tais palavras com fervor, enquanto os escravos choravam silenciosamente prevendo o que aconteceria a suas vidas, acorrentados à fidelidade obrigatória a seus senhores. Alberto ouviu quando acima dos urros em línguas estrangeiras, os gemidos da menina se intensificaram. O encapuzado ergueu suas mãos com a adaga entre elas, presa a sua função anual naqueles encontros sabáticos da Sociedade Secreta. Para aqueles Thule em específico, sacrifícios eram essenciais desde épocas imemoriais.

A menina chorou ainda mais alto, contudo nada despejaria misericórdia no sacerdote alemão já acostumado a ceifar vidas em nome de sua seita secreta. A garganta dela foi rasgada com a adaga dourada e seu pescoço ainda sangrando foi laçado com uma corda. Os auxiliares do sacerdote encapuzado puxaram a corda e içaram o pequeno corpo da menina escrava que se debatia esvaecendo em sangue. Os nobres disputavam na base dos empurrões espaço sob o sangue da criança, dançavam como o ritual deles exigia. A noite ainda prometia orgias e estupros das escravas, meninos esfolados vivos e animais decapitados. Alberto estava abismado, preso em uma visão atemporal ainda impregnada nas tábuas daquela velha mansão, onde feridas mortais ainda sangravam o liquido escarlate de pessoas inocentes, abatidas em nome de deuses perversos e imorais. Alberto se desesperou, sentiu o medo irromper sua carne e ao tentar fugir, tropeçou e caiu sobre um dos convidados, chamando para si a atenção de toda a multidão que parou o que faziam para olhar em sua direção. Um dos negros, aproveitando-se da distração dos escravocratas quebrou uma das garrafas de Conhaque e utilizando o gargalho desta, enfiou no peito de seu senhor. Todos olharam boquiabertos para o rebelde, mas logo foram surpreendidos por outros escravos, iniciando assim uma grande revolução dentro da jovem mansão da Ilha do Caranguejo.

Alberto se escondeu, enquanto o cadáver da menina sacrificada ainda balançava no lustre do salão, derramando seu sangue inocente sobre os corpos dos Thules abatidos pelo motim dos escravos. As alemãs tiveram seus órgãos removidos e jogados ao fogo e os homens foram emasculados e tiveram suas genitálias postas em suas bocas, sendo forçados a mastigar e engolir seus membros. Os escravos tocaram fogo nas canoas e nas barcas dos visitantes praticantes de magia e capturaram a dona da grande Mansão. Arrastaram-na pelos cabelos negros até o centro do salão e deram-na para o pai da pequena menina usada em sacrifício. O homem, arrancando das mãos do sacerdote a emblemática adaga dourada, se aproximou da Juíza escravocrata Madeleine Schultz e tomou para si seu olho esquerdo. A dama berrou e até tentou dialogar enquanto se urinava de dor, entretanto os rebeldes não desejavam negociar. O homem desolado enfiou lentamente a ponta de sua adaga na órbita ocular direita da Maga Thule Madeleine e retirou o último de seus olhos azuis. Apenas sangue vertia daquelas crateras infernais acompanhados de gritos de dor inumanos, fazendo Alberto desejar ardentemente acordar daquele pesadelo.

O pavor se intensificou assim que os amotinados incendiaram os corpos dos Thules e despedaçaram os sacerdotes encapuzados. Alberto subiu as escadas rapidamente, seguido de perto pelos escravos. Ele correu para a suíte onde assassinou sua esposa e seu filho caçula e se trancou. O empresário não parecia nem de longe o homem frio e calculista que preparara com seu corretor e cumplice Matheus Santos, todo um plano sórdido para se livrar de sua própria família. Ele estava tremendo, com arrepios lhe beijando a nuca e com o rosto pálido como se não houvesse mais sangue circulando em seu corpo. Batidas ribombavam na porta, rachando-a com a força de dezenas de almas de escravos.

Foram longos minutos sob a terrível ameaça de ser despedaçado como os cadáveres dos Magos Thules, tanto que Alberto se forçou a encontrar refúgio sob a cama, mas pra sua sorte o barulho cessou. O empresário abandonou seu esconderijo e destrancou a porta. Olhou para o corredor ainda hesitante e notou que já não eram luzes de velas que iluminavam o ambiente e sim as lâmpadas alimentadas pelos silenciosos geradores a diesel. Os calafrios o abandonaram, mas ainda permanecia confuso com tudo o que havia presenciado. "Aquilo aconteceu aqui?" Indagou a se mesmo, enquanto caminhava a passos extremamente lentos pelo corredor do segundo andar. "Talvez uma alucinação pelo stress de ter que por meu plano B em ação. Sim, possivelmente foi isso", pensava Alberto, tentando convencer-se de que nada daquilo realmente se lançara a seus olhos incrédulos. Tudo em vão, apenas pensamentos covardes de um homem covarde.

Ao passar em frente à porta do quarto onde seus filhos brincavam naquela primeira e última noite deles na mansão assombrada, Alberto viu balançando no lustre luxuoso preso ao teto amadeirado, a pequena criança degolada e enforcada em nome de algum deus antigo. De seus olhos escorriam lágrimas de pus tão amarelas quanto o ouro que os alquimistas produziam a partir do chumbo. A menina balançava em um movimento de vai e vem, com sua manta branca esvoaçante e fantasmagórica. O nó da corda se afrouxou de forma súbita, fazendo a aparição cair no assoalho do quarto. Ela levantou e olhou para Alberto com pequenos olhos negros e disse, em meio a gorgulhos do sangue que fluía de sua garganta cortada, apenas uma palavra, forte o suficiente para fazer Alberto voltar a correr com um louco amedrontado:

                                                           "CORRA ASSASSINO!"

             CONTINUA...

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