Capítulo IV

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Foi num sábado que Afonso da Maia partiu para Santa Olávia. Cedo nesse mesmo dia, Maria Eduarda, que o escolhera por ser de boa estreia, instalara-se nos Olivais. E Carlos, voltando de Santa Apolônia, onde fora acompanhar o avô, com o Ega, dizia-lhe alegremente:

— Então aqui ficamos nós sós a torrar, na cidade de mármore e de lixo...

— Antes isso, respondeu o Ega, que andar de sapatos brancos, a cismar, por entre a poeirada de Cintra!

Mas no domingo, quando Carlos recolheu ao Ramalhete ao anoitecer — Batista anunciou que o sr. Ega tinha partido nesse momento para Cintra, levando apenas livros e umas escovas embrulhadas num jornal... O sr. Ega tinha deixado uma carta. E tinha dito: "Batista, vou pastar."

A carta, a lapis, numa larga folha de almasso, dizia: "Assaltou-me de "repente, amigo, juntamente com um horror à caliça de Lisboa, uma saudade "infinita da natureza e do verde. A porção de animalidade que ainda resta no meu "sêr civilisado e recivilisado precisa urgentemente de espolinhar-se na relva, beber "no fio dos regatos, e dormir balançada num ramo de castanheiro. O solicito "Batista que me remeta amanhã pelo onibus a mala com que eu não quis "sobrecarregar a tipóia do Mulato. Eu demoro-me apenas três ou quatro "dias. O tempo de cavaquear um bocado com o Absoluto no alto dos "Capuchos, e ver o que estão fazendo os miosotis junto à meiga fonte dos Amores..."

— Pedante! rosnou Carlos, indignado com o abandono ingrato em que o deixava o Ega. E atirando a carta:

— Batista! O sr. Ega diz aí que lhe mandem uma caixa de charutos, dos Imperiales. Manda-lhe antes dos Flor de Cuba. Os Imperiales são um veneno. Esse animal nem fumar sabe!

Depois de jantar Carlos percorreu o Fígaro, folheou um volume de Biron, bateu carambolas solitarias no bilhar, assobiou malagueñas no terraço — e terminou por sair, sem destino, para os lados do Aterro. O Ramalhete entristecia-o, assim mudo, apagado, todo aberto ao calor da noite. Mas insensivelmente, fumando, achou-se na rua de S. Francisco. As janelas de Maria Eduarda estavam também abertas e negras. Subiu ao andar do Cruges. O menino Vitorino não estava em casa...

Amaldiçoando o Ega, entrou no Gremio. Encontrou o Taveira, de paletó ao ombro, lendo os telegramas. Não havia nada novo por essa velha Europa; apenas mais uns Nihilistas enforcados; e ele Taveira ia ao Price...

— Vem tu também daí, Carlinhos! Tens lá uma mulher bonita que se mete na água com cobras e crocodilos... Eu pelo-me por estas mulheres de bichos!... Que esta é dificil, traz um chulo... Mas eu já lhe escrevi: e ela faz-me um bocado de olho de dentro da tina.

Arrastou Carlos: e pelo Chiado abaixo falou-lhe logo do Damaso. Não tornara a ver essa flor? Pois essa flor andava apregoando por toda a parte que o Maia, depois do caso do Chiado, lhe dera por um amigo explicações humildes, covardes... Terrivel, aquele Damaso! Tinha figura, interior, e natureza de péla! Com quanto mais força se atirava ao chão, mais ele resaltava para o ar, triunfante!...

— Em todo o caso é uma rez traiçoeira, e deves ter cautela com ele...

Carlos encolheu os ombros, rindo.

Não, não, dizia o Taveira muito sério, eu conheço o meu Damaso. Quando foi da nossa péga, em casa da Lola Gorda, ele portou-se como um poltrão, mas depois ia-me atrapalhando a vida... É capaz de tudo... Antes de hontem estava eu a cear no Silva, ele veio sentar-se um bocado ao pé de mim, e começou logo com umas coisas a teu respeito, umas ameaças...

— Ameaças! Que disse ele?

— Diz que te das ares de espadachim e de valentão, mas has de encontrar dentro em pouco quem te ensine... Que se está aí preparando um escândalo monumental... Que se não admirará de te ver brevemente com uma boa bala na cabeça...

Os Maias (1888)Onde histórias criam vida. Descubra agora