Capítulo V

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Maria Eduarda e Carlos, que ficara essa noite nos Olivais na sua casinhola, acabavam de almoçar. O Domingos servira o café, e antes de sair deixara ao lado de Carlos a caixa de cigaretes e o Fígaro. As duas janelas estavam abertas. Nem uma folha se movia no ar pesado da manhã encoberta, entristecida ainda por um dobre lento de sinos que morria ao longe nos campos. No banco de cortiça, sob as árvores, miss Sarah costurava preguiçosamente; Rosa ao lado brincava na relva. E Carlos, que viera numa intimidade conjugal, com uma simples camisa de seda e um jaquetão de flanela, chegou então a cadeira para junto de Maria, tomou-lhe a mão, brincando-lhe com os anéis, numa lenta caricia:

— Vamos a saber, meu amor... Decidiste, por fim? Quando queres partir?

Nessa noite, entre os seus primeiros beijos de noiva, ela mostrara o desejo enternecido de não alterar o plano da Itália e de um ninho romântico entre as flores de Isola-bela: somente agora não iam esconder a inquietação de uma felicidade culpada, mas gozar o repouso de uma felicidade legitima. E, depois de todas as incertezas e tormentos que o tinham agitado desde o dia em que cruzara Maria Eduarda no Aterro, Carlos anhelava também pelo momento de se instalar enfim no conforto de um amor sem duvidas e sem sobresaltos:

— Eu por mim abalava amanhã. Estou sôfrego de paz. Estou até sôfrego de preguiça... Mas tu, dize, quando queres?

Maria não respondeu; apenas o seu olhar sorriu, reconhecido e apaixonado. Depois, sem retirar a mão que a longa caricia de Carlos ainda prendia, chamou Rosa através da janela.

— Mamã, espera, já vou! Passa-me umas migalhas... Andam aqui uns pardais que ainda não almoçaram...

— Não, vem cá.

Quando ela apareceu à porta, toda de branco, córada, com uma das ultimas rosas de verão metida no cinto — Maria qui-la mais perto, entre eles, encostada aos seus joelhos. E, arranjando-lhe a fita solta do cabelo, perguntou, muito séria, muito comovida, se ela gostaria que Carlos viesse viver ver com elas de todo e ficar ali na Tóca. Os olhos da pequena encheram-se de surpreza e de riso:

— O quê! estar sempre, sempre aqui, mesmo de noite, toda a noite?... E ter aqui as suas malas, as suas coisas?...

Ambos murmuraram — "sim".

Rosa então pulou, bateu as palmas, radiante, querendo que Carlos fosse já, já, buscar as suas malas e as suas coisas...

— Escuta, disse-lhe ainda Maria gravemente, retendo-a sobre os joelhos. E gostavas que ele fosse como o papá, e que,andasse sempre conosco, e que lhe obedecessemos ambas, e que gostassemos muito dele?

Rosa ergueu para a mãe uma facesinha compenetrada, onde todo o sorriso se apagara.

— Mas eu não posso gostar mais dele do que gósto!...

Ambos a beijaram, num enternecimento que lhes humedecia os olhos. E Maria Eduarda, pela primeira vez diante de Rosa debruçando-se sobre ela, beijou de leve a testa de Carlos. A pequena ficou pasmada para o seu amigo, depois para a mãe. E pareceu comprehender tudo; escorregou dos joelhos de Maria, veio encostar-se a Carlos com uma meiguice humilde:

— Queres que te chame papá, só a ti?

— Só a mim, disse ele, fechando-a toda nos braços.

E assim obtiveram o consentimento de Rosa que fugiu, atirando a porta, com as mãos cheias de bolos para os pardais.

Carlos levantou-se, tomou a cabeça de Maria entre as mãos, e contemplando-a profundamente, até à alma, murmurou num enlevo:

— És perfeita!

Os Maias (1888)Onde histórias criam vida. Descubra agora