Capítulo V

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No escritório de Afonso da Maia ainda durava, apesar de ser tarde, a partida de whist. A mesa estava ao lado da chaminé, onde a chama morria nos carvões escarlates, no seu recanto costumado, abrigada pelo biombo japonez, por causa da bronchite de D. Diogo e do seu horror ao ar.

Esse velho dandi, — a quem as damas de outras eras chamavam o "Lindo Diogo", gentil toureiro que dormira num leito real — acabava justamente de ter um dos seus acessos de tosse, cavernosa, aspera, dolorosa, que o sacudiam como uma ruína, que ele abafava no lenço, com as veias inchadas, rôxo até à raiz dos cabelos.

Mas passara. Com a mão ainda tremula, o decrepito leão limpou as lágrimas que lhe embaciavam os olhos avermelhados, compoz a rosa de musgo na botoeira da sobrecasaca, tomou um golo da sua água chasada, e perguntou a Afonso, seu parceiro, numa voz rouca e surda:

— Paus, hein?

E de novo, sobre o pano verde, as cartas foram caíndo num daqueles silêncios que se seguiam às tosses de D. Diogo. Sentia-se só a respiração assobiada, quase silvante, do general Sequeira, muito infeliz essa noite, desesperado com o Vilaça seu parceiro, resingão, e com todo o sangue na face.

Um tom fino retiniu, o relogio Luiz XV foi ferindo alegremente, vivamente, a meia noite; — depois a toada argentina do seu minuete vibrou um momento e morreu. Houve de novo um silêncio. Uma renda vermelha recobria os globos de dois grandes candieiros Carcel; e a luz assim coada, caíndo sobre os damascos vermelhos das paredes, dos assentos, fazia como uma doce refração cor de rosa, um vaporoso de nuvem em que a sala se banhava e dormia: só, aqui e além, sobre os carvalhos sombrios das estantes, rebrilhava em silêncio o ouro de um Sèvres, uma palidez de marfim, ou algum tom esmaltado de velha majolica.

— O que! ainda encarniçados! exclamou Carlos que abrira o reposteiro, entrava, e com ele o rumor distante de bolas de bilhar.

Afonso, que recolhia a sua vasa, voltou logo a cabeça, a perguntar com interesse:

— Como vai ela? Está sossegada?

— Está muito melhor!

Era a primeira doente grave de Carlos, uma rapariga de origem alsaciana, casada com o Marcelino padeiro, muito conhecida no bairro pelos seus belos cabelos, loiros, e penteados sempre em tranças soltas. Tinha estado à morte com uma pneumonia; e apesar de melhor, como a padaria ficava defronte, Carlos ainda às vezes à noite atravessava a rua para a ir ver, tranquilisar o Marcelino, que, defronte do leito e de gabão pelos ombros, sufocava soluços de amante, escrevinhando no livro de contas.

Afonso interessara-se anciosamente por aquela pneumonia; e agora estava realmente agradecido à Marcelina por ter sido salva por Carlos. Falava dela comovido; gabava-lhe a linda figura, o aceio alsaciano, a prosperidade que trouxera à padaria... Para a convalescença, que se aproximava, já lhe mandara até seis garrafas de Chateau-Margaux.

— Então fora de perigo, inteiramente fora de perigo? — perguntou Vilaça, com os dedos na caixa do rapé, sublinhando muito a sua solicitude.

— Sim, quase rija — disse Carlos, que se aproximara da chaminé, esfregando as mãos, arrepiado.

É que a noite, fora, estava regelada! Desde o anoitecer geava, de um céu fino e duro, transbordando de estrelas que rebrilhavam como pontas afiadas de aço; e nenhum daqueles cavalheiros, desde que se entendia, conhecera jamais o termometro tão baixo. Sim, Vilaça lembrava-se de um janeiro peor no inverno de 64...

— É necessário carregar no punch, hein, general! — exclamou Carlos, batendo galhofeiramente nos ombros macissos do Sequeira.

— Não me oponho, rosnou o outro, que fixava com concentração e rancor um valete de copas sobre a mesa.

Os Maias (1888)Onde histórias criam vida. Descubra agora