Capítulo VI

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Ao fim do jantar, na rua de S. Francisco, Ega que se demorara no corredor a procurar a charuteira pelos bolsos do paletó, entrou na sala, perguntando a Maria, já sentada ao piano:

— Então, definitivamente, v. exc.ª não vem ao sarau da Trindade?...

Ela voltou-se para dizer, preguiçosamente, por entre a walsa lenta que lhe cantava entre os dedos:

— Não me interessa, estou muito cansada...

— É uma séca, murmurou Carlos do lado, da vasta poltrona onde se estirara consoladamente, fumando, de olhos cerrados.

Ega protestou. Também era uma massada subir às Piramides no Egipto. E no emtanto sofria-se invariavelmente, porque nem todos os dias pode um cristão trepar a um monumento que tem cinco mil anos de existência... Ora a sr.ª D. Maria, neste sarau, ia ver por dez tostões uma coisa também rara, — a alma sentimental de um povo exhibindo-se num palco, ao mesmo tempo nua e de casaca.

— Vá, coragem! um chapéu, um par de luvas, e a caminho!

Ela sorria, queixando-se de fadiga e preguiça.

— Bem, exclamou Ega, eu é que não quero perder o Rufino... Vamos lá, Carlos, mexe-te!

Mas Carlos implorou clemencia:

— Mais um bocadinho, homem! Deixa a Maria tocar umas notas do Hamlet. Temos tempo... Esse Rufino, e o Alencar, e os bons, só gorgeiam mais tarde...

Então Ega, cedendo também a todo aquele conchego tepido e amavel, enterrou-se no sofá com o charuto, para escutar a canção de Ofelia, de que Maria já murmurava baixo as palavras cismadoras e tristes:

Pâle et blonde,

Dort sous l'eau profonde...

Ega adorava esta velha balada escandinavia. Mais porém o encantava Maria que nunca lhe parecera tão bela: o vestido claro que tinha nessa noite modelava-a com a perfeição de um mármore: e entre as velas do piano, que lhe punham um traço de luz no perfil puro e tons de ouro esfiado no cabelo — o incomparável ebúrnio da sua pele ganhava em esplendor e mimo... Tudo nela era harmonioso, são, perfeito... E quanto aquela serenidade da sua forma devia tornar delicioso o ardor da sua paixão! Carlos era positivamente o homem mais feliz destes reinos! Em torno dele só havia facilidades, doçuras. Era rico, inteligente, de uma saúde de pinheiro novo; passava a vida adorando e adorado; só tinha o numero de inimigos que é necessário para confirmar uma superioridade; nunca sofrera de dispepsia; jogava as armas bastante para ser temido; e na sua complacencia de forte nem a tolice publica o irritava. Sêr verdadeiramente ditoso!.

— Quem é por fim esse Rufino? perguntou Carlos, alongando mais os pés pelo tapete, quando Maria findou a canção de Ofelia.

Ega não sabia. Ouvira que era um deputado, um bacharel, um inspirado...

Maria, que procurava os noturnos de Chopin, voltou-se:

— É esse grande orador de que falavam na Tóca?

Não, não! Esse era outro, a sério, um amigo de Coimbra, o José Clemente, homem de eloqüência e de pensamento... Este Rufino era um ratão de pera grande, deputado por Monção, e sublime nessa arte, antigamente nacional e hoje mais particularmente provinciana, de arranjar, num voz de teatro e de papo, combinações sonoras de palavras...

— Detesto isso! rosnou Carlos.

Maria também achava intolerável um sujeito a chilrear, sem idéias, como um passaro num galho de árvore...

— É conforme a ocasião, observou Ega, olhando o relogio. Uma valsa de Strauss também não tem idéias, e à noite, com mulheres numa sala, é deliciosa...

Os Maias (1888)Onde histórias criam vida. Descubra agora