Capítulo X

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Três semanas depois, por uma tarde quente, com um ceu triste de trovoada, e no momento em que estavam caíndo algumas gotas grossas de chuva, — Carlos apeava-se de um coupé de praça, que viera parar, de vagar, à esquina da Patriarchal, com os stores verdes misteriosamente corridos. Dois sujeitos que passavam sorriram-se, como se o vissem escoar-se desgeitosamente de uma portinha suspeita. E com efeito a velha traquitana de rodas amarelas acabava de ser uma alcova de amor, perfumada de verbena, durante as duas horas que Carlos rolara dentro dela, pela estrada de Queluz, com a sr.ª condessa de Gouvarinho.

A condessa tinha descido no largo das Amoreiras. E Carlos aproveitara a solidão da Patriarchal para se desembaraçar do calhambeque de assento duro, onde durante a ultima hora sufocara, sem ousar descer as vidraças, com as pernas adormecidas, enfastiado de tantas sedas amarrotadas e dos beijos interminaveis que ela lhe dava na barba...

Até aí, durante essas três semanas, tinham-se encontrado numa casa da rua de Santa Izabel, pertencente a uma tia da condessa que fora para o Porto com a criada, deixando-lhe a chave da casa e o cuidado do gato. A boa titi, uma velha pequenina, chamada miss Jones, era uma santa, uma apostola militante da Igreja Anglicana, missionaria da Obra da Propaganda; e todos os meses fazia assim uma viagem de catechisação à provincia, distribuindo Biblias, arrancando almas à treva católica, purificando (como ela dizia) o tremedal papista... Já na escada havia um cheirinho adocicado e triste a devoção e a virgem velha: e no patamar pendia um largo cartão, com um distico em letras de ouro entrelaçadas de lirios roxos, rogando aos que entravam que preserverassem nas vias do Senhor! Carlos entrou, tropeçando logo num montão de Biblias. O quarto todo era um ninho de Biblias; havia-as às pilhas por cima dos móveis, transbordando de velhas chapeleiras, misturadas a pares de galochas, caídas para o fundo da bacia de assento, todas do mesmo formato, entaladas numa encadernação negra como numa armadura de combate, carrancudas e aggressivas! As paredes resplandeciam, forradas de cartonagens impressas em letras de cor, irradiando versiculos duros da Biblia, asperos conselhos de moral, gritos dos psalmos, ameaças insolentes do inferno... E no meio desta religiosidade anglicana, à cabeceira de um leitosinho de ferro, rigido e virginal, duas garrafas quase vasias de cognac e de gin. Carlos bebeu o gin da santa; e o leito rigido ficou revolto como um campo de batalha.

Depois a condessa começou a ter medo de uma visinha, uma Borges, que visitava a titi, e era viuva de um antigo procurador dos Gouvarinhos. Uma ocasião em que, no casto leito de miss Jones, eles fumavam languidamente cigarrilhas, três enormes argoladas à porta atroaram a casa. A pobre condessa quase desmaiou; Carlos, correndo à janela, viu um homem que se afastava, com uma estatueta de gesso na mão, outras dentro de um cesto. Mas a condessa jurava que fora a Borges quem mandara o Italiano das imagens atirar-lhes para dentro aquelas aldrabadas, como três avisos, três rebates da Moral... Não quisera voltar mais ao beatifico cuté da titi. E nessa tarde, como não havia ainda outro escondrijo, tinham abrigado os seus amores dentro daquela tipóia de praça.

Mas Carlos vinha de lá enervado, amolecido, sentindo já na alma os primeiros bocejos da saciedade. Havia três semanas apenas que aqueles braços perfumados de verbena se tinham atirado ao seu pescoço, — e agora, pelo passeio de S. Pedro de Alcantara, sob o ligeiro chuvisco que batia as folhagens da alameda, ele ia pensando como se poderia desembaraçar da sua tenacidade, do seu ardor, do seu peso... É que a condessa ía-se tornando absurda com aquela determinação ansiosa e audaz de invadir toda a sua vida, tomar nela o lugar mais largo e mais profundo — como se o primeiro beijo trocado tivesse unido não só os labios de ambos um momento, mas os seus destinos também e para sempre. Nessa tarde lá tinham voltado as palavras que ela balbuciava, caída sobre o seu peito, com os olhos afogados numa ternura suplicante: Se tu quizesses! que felizes que seriamos! que vida adoravel! ambos sós!... E isto era claro — a condessa concebera a idéia extravagante de fugir com ele, ir viver num sonho eterno de amor lírico, nalgum canto do mundo, o mais longe possível da rua de S. Marçal! Se tu quizesses! Não, com mil demonios, não queria fugir com a sr.ª condessa de Gouvarinho!...

Os Maias (1888)Onde histórias criam vida. Descubra agora