Carlos ia formar-se em Medicina. E como dizia o dr. Trigueiros houvera sempre naquele menino realmente uma "vocação para Esculapio".
A "vocação" revelara-se bruscamente um dia que ele descobriu no sótão, entre rumas de velhos alfarrabios, um rolo manchado e antiquado de estampas anatomicas; tinha passado dias a recorta-las, pregando pelas paredes do quarto figados, liaças de intestinos, cabeças de perfil "com o recheio à mostra". Uma noite mesmo rompera pela sala em triunfo, a mostrar às Silveiras, ao Euzebio, a pavorosa litografia de um feto de seis meses no utero materno. D. Ana recuou, com um grito, colando o leque à face: e o dr. delegado, escarlate também, arrebatou prudentemente Euzebiosinho para entre os joelhos, tapou-lhe a face com a mão. Mas o que escandalisou mais as senhoras foi a indulgencia de Afonso.
— Então que tem, então que tem? dizia ele sorrindo.
— Que tem, sr. Afonso da Maia!? exclamou D. Ana. São indecencias!
— Não há nada indecente na natureza, minha rica senhora. Indecente é a ignorancia... Deixar lá o rapaz. Tem curiosidade de saber como é esta pobre máquina por dentro, não há nada mais louvavel...
D. Ana abanava-se, sufocada. Consentir tais horrores nas mãos da criança!... Carlos começou a aparecer-lhe como um libertino "que já sabia coisas"; e não consentiu mais que a Terezinha brincasse só com ele pelos corredores de Santa Olávia.
As pessoas sérias porém, o dr. juiz de direito, o próprio abade, lamentando, sim, que não houvesse mais recato, concordavam que aquilo mostrava no pequeno uma grande queda para a medicina.
— Se péga, dizia então com um gesto profetico o dr. Trigueiros, temos de ali coisa grande!
E parecia pegar.
Em Coimbra, estudante do Liceu, Carlos deixava os seus compendios de logica e rhetorica para se ocupar de anatomia: numas férias, ao abrir das malas, a Gertrudes fugiu espavorida vendo alvejar entre as dobras de um casaco o riso de uma caveira: e se algum criado da quinta adoecia, lá estava Carlos logo revolvendo o caso em velhos livros de medicina da livraria, sem lhe largar a beira do catre, fazendo diagnosticos que o bom dr. Trigueiros escutava respeitoso e pensativo. Diante do avô já chamava mesmo ao menino "o seu talentoso colega".
Esta inesperada carreira de Carlos (pensara-se sempre que ele tomaria capelo em Direito) era pouco aprovada entre os fieis amigos de Santa
Olávia. As senhoras sobretudo lamentavam que um rapaz que ia crescendo tão formoso, tão bom cavaleiro, viesse a estragar a vida receitando emplastros, e sujando as mãos no jorro das sangrias. O dr. juiz de direito confessou mesmo um dia a sua descrença de que o sr. Carlos da Maia quisesse "ser medico a sério".
— Ora essa! exclamou Afonso. E porque não há de ser medico a sério? Se escolhe uma profissão é para a exercer com sinceridade e com ambição, como os outros. Eu não o educo para vadio, muito menos para amador; educo-o para ser útil ao seu país...
— Todavia, arriscou o dr. juiz de direito com um sorriso fino, não lhe parece a v. exc.ª que há outras coisas, importantes também, e mais proprias talvez, em que seu neto se poderia tornar útil?...
— Não vejo, replicou Afonso da Maia. Num país em que a ocupação geral é estar doente, o maior serviço patriotico é incontestavelmente saber curar.
— V. exc.ª tem resposta para tudo, murmurou respeitosamente o magistrado.
E o que justamente seduzia Carlos na medicina era essa vida "a sério", pratica e útil, as escadas de doentes galgadas à pressa no fogo de uma vasta clinica, as existencias que se salvam com um golpe de bisturí, as noites veladas à beira de um leito, entre o terror de uma família, dando grandes batalhas à morte. Como em pequeno o tinham encantado as formas pitorescas das visceras — atraíam-no agora estes lados militantes e heróicos da ciencia.
