Capítulo II

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No sábado, com efeito, Carlos, recolhendo ao Ramalhete de volta da rua de S. Francisco, encontrou o Ega no seu quarto, metido num fato de cheviote claro, e com o cabelo muito crescido.

— Não faças espalhafato, gritou-lhe ele, que eu estou em Lisboa incógnito!

E em seguida aos primeiros abraços declarou que vinha a Lisboa, só por alguns dias, unicamente para comer bem e para conversar bem. E contava com Carlos para lhe fornecer esses requintes, ali, no Ramalhete...

— Há cá um quarto para mim? Eu por ora estou no Hotel Espanhol, mas ainda nem mesmo abri a mala... Basta-me uma alcova, com uma mesa de pinho, larga bastante para se escrever uma obra sublime.

Decerto! Havia o quarto em cima, onde ele estivera depois de deixar a Vila Balzac. E mais sumptuoso agora, com um belo leito da Renascença, e uma cópia dos Borrachos de Velasquez.

— Ótimo covil para a arte! Velasquez é um dos Santos Padres do naturalismo... A proposito, sabes com quem eu vim? Com a Gouvarinho. O pai Tompson esteve à morte, arribou, depois o conde foi busca-la. Achei-a magra; mas com um ar ardente; e falou-me constantemente de ti.

— Ah! murmurou Carlos.

Ega, de monoculo no olho e mãos nos bolsos, contemplava Carlos.

— É verdade. Falou de ti constantemente, irresistivelmente, imoderadamente! Não me tinhas mandado contar isso... Sempre seguiste o meu conselho, hein? Muito bem feita de corpo, não é verdade? E que tal, no ato de amor?

Carlos córou, chamou-lhe grosseiro, jurou que nunca tivera com a Gouvarinho senão relações superficiais. Ia lá às vezes tomar uma chavena de chá; e à hora do Chiado acontecia-lhe, como a todo o mundo, conversar com o conde sobre as miserias publicas, à esquina do Loreto. Nada mais.

— Tu estás-me a mentir, devasso! dizia o Ega. Mas não importa. Eu hei de descobrir tudo isso com o meu olho de Balzac, na segunda-feira... Porque nós vamos lá jantar na segunda-feira.

— Nós... Nós, quem?

— Nós. Eu e tu, tu e eu. A condessa convidou-me no comboio. E o Gouvarinho, como compete ao individuo daquela especie, acrescentou logo que haviamos de ter também "o nosso Maia". O Maia dele, e o Maia dela... Santo acordo! Suavissimo arranjo!

Carlos olhou-o com severidade.

— Tu vens obsceno de Celorico, Ega.

— É o fluo se aprende no seio da Santa Madre Igreja.

Mas também Carlos tinha uma novidade que o devia fazer estremecer. O Ega porém já sabia. A chegada dos Cohens, não é verdade? Lêra-o logo nessa manhã, na Gazeta Ilustrada no high-life. Lá se dizia respeitosamente que s. exc.ªs tinham regressado do seu passeio pelo estrangeiro.

— E que impressão te fez? perguntou Carlos rindo.

O outro encolheu brutalmente os ombros:

— Fez-me o efeito de haver um cabrão mais na cidade.

E, como Carlos o acusava outra vez de trazer de Celorico uma língua imunda, o Ega, um pouco córado, arrependido talvez, lançou-se em considerações criticas, clamando pela necessidade social de dar às coisas o nome exato. Para que servia então o grande movimento naturalista do século? Se o vicio se perpetuava, é porque a sociedade, indulgente e romanesca, lhe dava nomes que o embelezavam, que o idealisavam... Que escrupulo pode ter uma mulher em beijocar um terceiro entre os lençoes conjugais, se o mundo chama a isso sentimentalmente um romance, e os poetas o cantam em estrofes de ouro?

Os Maias (1888)Onde histórias criam vida. Descubra agora