Vergonha de morrer

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Um dia desses, na aula de Literatura, Clarisse abriu um livro do Dummond e leu o poema
Memória, que termina dizendo que “as coisas findas, muito mais que lindas, estas ficarão”.
Transcreveu, então, os versos no quadro e comentou que o poeta se referia às mortes que a
gente vai acumulando ao longo da vida.
-como assim, a gente?-indignou-se Danyelle, cruzando os dedos em figas e dando três
batidinhas na carteira. -Ainda sou muito nova pra ficar pensando nisso. Papo mais deprê!
Danyelle era considerada a maior semeadora de abobrinhas da sala;quem poderia levar a
sério a garota que se acha a rainha da Inglaterra só porque possui um y no meio do
nome?Eu seria capaz de apostar que ela receberia uma chuva de vaias, mas a turma lhe deu
apoio e se voltou contra a professora.
-Baixíssimo astral!-disse Leninha. –Um poema assim não acelera o coração nem provoca
suspiros.
Debrucei-me na carteira da minha ingênua amiga e tentei lhe explicar que a poesia não tem
a função de aumentar o nível de adrenalina no sangue do leitor. Meu sussurro foi engolido,
no entanto, pelo vozeirão do Guto:
-Por que é que todo poeta tem mania de escrever sobre a morte?Será que isso não afasta os
leitores?
Tive vontade de responder que todas as formas de arte tratam dos mesmos temas, inclusive
os filmes de exterminadores de andróides a que os garotos assistem com água na boca. Mas
nesse instante Marcelo ergueu o braço e ficou estalando os dedos até que Clarisse lhe deu a
palavra. Ele sempre começava lembrando que era o representante da turma – e dessa vez
não foi diferente:
-Como representante da turma, tenho de concordar com os colegas. A gente ainda tem
muita vida pela frente e não quer perder tempo com assunto que é da terceira idade.
Depois de ouvir todas essas pérolas, Clarisse perguntou se alguém mais queria se
manifestar. Eu adoraria nadar contra a correnteza e fazer uma defesa apaixonada do
Drummond , acontece que não gosto de falar em público(meu forte é escrever sozinha) e
preferi esperar pelo depoimento da professora. Ela disse que o poema não tinha nada de
fúnebre, mórbido ou sinistro. Os versos traziam, sem dúvida, uma certa dose de melancolia,
mas isso não deveria ser confundido com pessimismo. Muito pelo contrário:é preciso apostar todas as fixas na esperança pra supor que as coisas findas sobrevivem á morte.
Pensei que Clarisse continuaria falando sobre literatura, mas de repente fechou o livro e
pulou para a filosofia . Contou que tinha nascido numa cidade do interior, onde os velórios
eram realizados em casa, com a janela aberta e na presença das crianças, que desse modo se
acostumavam a encarar a morte. Mas, de uns tempos para cá, esse assunto virou tabu e
sumiu das salas de visita. Tem gente que evita pensar na morte ou até mesmo pronunciar a
palavra –pelo menos na frente dos filhos¬¬- . Sob o pretexto de impedir que a garotada
sofra, muitos pais estão ajudando a formar uma geração que se julga eterna e trata a morte
como um fenômeno que só ocorre com os outros.
-As pessoas, antigamente, tinham medo de morrer-concluiu Clarisse. -Hoje em dia, parece
que sentem vergonha.
*
Clarisse tem razão quando diz que as famílias varrem a morte pra baixo do tapete. Na
minha família , pelo menos, foi assim. Ao entrar no quarto da vó Nina e me ver chorando
diante da cama, minha mãe não veio me abraçar nem me ofereceu o ombro. Só estava
preocupada em impedir que Xandi assistisse a cena . Com receio de causar um trauma
irreversível , chegou ao cúmulo de me pedir que levasse meu irmão até o playground e
ficasse lá brincando com ele até que o corpo da minha avó fosse levado do apartamento.
O plano não decolou. Antes que eu pudesse enxugar os olhos , Xandi apareceu no quarto e
viu a joaninha passeando na testa da vó Nina.
-engraçado- limpou o bigode de leite na manga da camiseta . -por que a vovó não sente
cosquinha?
Contar ou não contar , eis a questão!Minha mãe tentou tirar o garoto do quarto, mas ele
conseguiu soltar o braço e se debruçou na cama pra examinar a joaninha de perto .
-A sua avó ... -disse minha mãe se engasgou nas reticências.
-Morreu . Já sei-disse meu irmão. - mas ela não tem mais nenhuma vida?
Xandi percebeu a nossa cara de espanto e informou como funcionava seu jogo preferido de
videogame:o gladiador iniciava o combate com uma única vida, mas deixava de ser
vulnerável á medida que derrotava os inimigos e ia colecionando vidas extras até alcançar a
imortalidade.
Não foi fácil explicar que as regras do videogame não se aplicam ao mundo real. Sem saber
o que dizer, minha mãe gaguejou que as almas viajam para o céu, e foi cruelmente
metralhada de perguntas. Quanto tempo dura essa viagem?Qual a velocidade do
foguete?No céu existe tevê?Celular?Internet banda larga?
Tive de ajudar minha mãe a rebater o interrogatório, mas nem sempre as respostas
coincidiram e de vez em quando entravam em conflito. Mas Xandi não estava nem aí para
as nossas tímidas explicações. Ajoelhada no colchão, ele esticou o braço sobre o rosto da
vó Nina e me deu a impressão de esboçar uma carícia de despedida... Que ilusão! O gesto
era parte da estratégia de capturar a infeliz joaninha!
Nunca fui militante ecológica, dessas que se amarram a troncos de árvores para impedir o
avanço das motos serras, mas viro bicho quando deparo com um animal judiado. Conheço
bem o meu irmão:a pretexto de realizar experiências científicas, ele não hesita em arrancas
as asas de mosquitos, amputar as patas de besouros e esfregar vaga-lume nos dentes para
ver se o sorriso brilha no escuro. Não sei do que Xandi seria capaz se tivesse nas mãos uma
joaninha. Temendo pelo destino da minha personagem, senti aflorar o instinto maternal
quando meu irmão conseguiu agarrá-la e saiu correndo pela casa.
Pensei que fosse se trancar no seu quarto, mas a porta ficou entreaberta. Do corredor , vi o moleque trepar na estante e retirar da última prateleira uma caixa de sapatos. Em vez de
guardar a joaninha lá dentro, abriu a tampa e esvaziou a caixa. O chão encheu-se de
pequenos insetos, que foram colocados lado a lado, pacientemente, embora muitos não
soubesse que deveriam ficar quietos . Quando todos estavam mais ou menos alinhados,
Xandi estalou os dedos e deu a largada.
Assistir a corrida de insetos parece coisa de maluco, mas talvez seja o modo que xandi
encontrou para distrair do sofrimento. Não querendo deixá-lo sozinho, pensei em pedir a
Leninha que fizesse companhia a meu irmão e aproveitasse pra proteger os insetos de
qualquer experiência científica. Minha amiga, porém tinha evaporado, deixando pra traz a
mochila.
Eu, hein!Liguei para a portaria. Seu Esteves demorou um século pra atender e bocejou que
nããããããão, não tinha visto ninguém descer do elevador. Não viu porque , como sempre,
estava dormindo em serviço! Isso era o que eu queria responder, mas não está entre aspas
porque na última hora mordi a língua. Não seria justo despejar no porteiro o coquetel de
raiva, tristeza e desamparo que eu sentia com a morte da minha avó. Agradeci entre os
dentes e fui até a sala pra saber com quem minha mãe estava brigando.
Deixando de lado o orgulho, ela havia telefonado para o consultório do meu pai. A
secretária Xirlei com X, informou que no momento o doutor Renato estava fazendo uma
extração e não podia ser interrompido, mas minha mãe disse que era caso de vida ou morte,
aliás de morte e começou a chorar, Peguei o telefone, dei a noticia a Xirlei e pedi que
avisasse meu pai.
Não sei como ele se virou para dispensar o paciente e driblar o trânsito do fim de tarde:o
fato é que levou menos de dez minutos pra chegar ao apartamento. Ficou abraçado a minha
mãe, sem dizer nada, e por um instante apostei que um dia voltaria a se entender. O abraço
só não foi mais longo porque o troglô do meu irmão entrou na sala e se pendurou no
pescoço do meu pai.
-Você sabia-ele foi logo perguntando -que a vovó não sente mais cosquinha ?
Vó Nina e meu pai sempre conviveram numa bem-humorada simbiose:pra se vingar das
piadas de sogra que ele contava na hora do almoço, ela preparava sobremesas irresistíveis,
mesmo para um inimigo das cáries. Depois que vó Nina sofreu o derrame e não pôde mais
ir ao consultório, meu pai continuou tratando dela em cãs, ajudando na escovação e no uso
do fio dental. Ela costumava perder a paciência e morder o dedo do genro, que, por sua vez,
ameaçava arrancar-lhe os dentes -sem anestesia- se não se comportasse como uma boa
menina.
Agachado ao lado da cama, meu pai roçava as costas da mão no cabelo ralo da vó Nina.
Estava tão distraído que não viu minha mãe abrir o guarda-roupas e sacudir os cabides.
-Preciso de ajuda pra esconder a roupa da mamãe. Vocês acham falta de respeito se ela for
enterrada com um vestido estampado?
Eu não estava com a cabeça pra decidir o último modelito da vó Nina. Mas nem por isso
fiquei quieta:
-Espere ai, mãe. ela cansou de pedir pra ser cremada.
-Que história é essa?
-Pediu, sim. Me fez prometer, inclusive, que jogaria as cinzas numa roseira.
-Bobagem, Joana. Nos últimos tempos, a mamãe não dizia coisa com coisa.
Meu pai saiu em defesa da sogra:
-Também não é assim. Apesar da doença, dona Nina tinha muitos momentos de lucidez.
-Como é que você sabe Renato? Você nem mora mais nesta casa!
Muito bem, minha querida. Mas no tempo em que eu morava...
-Águas passadas. E não me chame de querida, por favor. Muito menos de minha querida.
O silêncio ficou pesado, mas terminou com um pedido de desculpas. Minha mãe admitiu
que estava nervosa e procurou se justificar. Professora de História na faculdade, ela
costumava associar o ritual da cremação ao martírio sofrido pelos judeus na Segunda
Guerra. Não gostava da idéia de pulverizar os mortos e muito menos as cinzas por aí. Por
que não enterrar a vó Nina ao lado do corpo do vô Plínio, no túmulo da família, onde a
gente pode rezar e levar flores no Dia de Finados?
-Porque não era isso o que ela queria-respondi, sem disfarçar a irritação. - E ninguém
precisa ir ao cemitério pra rezar pelos mortos.
Xandi perguntou o que significa cremação e ouviu do meu pai uma explicação breve, mas
didática. Ao compreender o motivo da briga, meu irmão falou sobre um número de circo
que tinha visto na tevê: o mágico trancava a assistente numa caixa e dividia a mulher ao
meio com um serrote.
-Vocês podiam fazer igual com a vovó. Da cintura pra cima, ela seria enterrada, e da
cintura pra baixo, cremada. Ou então o contrário. Quem ganhar o par ou ímpar escolhe.
A crueza da proposta encerrou a discussão. Minha mãe acabou se resignando a respeitar o
desejo da vó Nina, mas em troca exigiu que jogássemos as cinzas numa roseira do próprio
cemitério. Fez questão, ainda, de mandar gravar no túmulo uma frase em memória da
minha avó. E encomendou a criação do epitáfio à escritora da família.
_*_
Por que a maioria dos homens não chora em público?Talvez seja falta de tempo. Acho que
meu pai gostaria de ficar aqui em casa, recordando as piadas que contava para a sogra e os
doces que ela fazia, mas teve que sair atrás de um médico que assinasse o atestado de óbito.
Enquanto minha mãe me pedia ajuda na escolha do vestido da vó Nina, Xandi queria que
eu fosse ao quarto dele para ver o fim da corrida: a joaninha estava na frente e já se
aproximava da linha de chegada!
Não pude atender nenhum dos dois: o telefone falou mais alto. Bastou que eu ouvisse alô
para reconhecer a voz do Marcelo; como representante da turma, Le me apresentou os
pêsames e perguntou onde seria o velório. Eu disse que não sabia e sugeri que ligasse mais
tarde. O telefone voltou a tocar, ainda mais estridente; dessa vez era a Danyelle. Ela
começou a choramingar e confessou que gostava muito da vó Nina, mas até que de mim.
Aquilo era o quê, um elogio ou uma ofensa?Na duvida, respondi obrigada e aproveitei para
perguntar como soubera da notícia.
Leninha não entrou no quarto da vó Nina, mas com certeza percebeu que ela havia morrido
e se encarregou de avisar Deus e a escola. Colegas, professores e diretores resolveram me
ligar ao mesmo tempo e fazer as mesmas perguntas sobre o local do velório. Fiquei com a
orelha fervendo e adotei uma solução extrema: tirar o telefone da tomada!Nem assim foi
possível uma trégua: logo em seguida o interfone tocou e me deixou ansiosa. E se eu
tivesse de enfrentar uma comissão de alunos em visita oficial de pêsames?
Foi um alivio quando seu Esteves me informou que quem estava lá embaixo era Salete e o
filho. João chegou soprando a franja, como costuma fazer nos momentos de aflição. Faz
pouco tempo que a gente está namorando, mas já aprendi a interpretar o código de gestos
que ele utiliza quando não sabe o que dizer. Estava ali pra me consolar em silêncio e,
apesar da timidez, não teve pudor em me abraçar na frente da mãe.
Seguimos os três até o quarto da vó Nina. Salete fez uma oração na cabeceira da cama e
depois do amém comentou que nunca conhecera um espírito tão... fashion! Enxugou os olhos com um lenço de papel e retirou da bolsa um estojo de primeiros socorros
cosméticos. Pediu licença pra maquiar a minha avó e, ante o olhar de censura do filho,
apressou-se em explicar que não usaria cores fortes, apenas um pouco de blush pra quebrar
a palidez.
Minha mãe aprovou a idéia e perguntou se não seria o caso de passar base nas unhas e
também dar um jeito no cabelo da vó Nina. Salete disse que sim, faria o serviço completo,
mas antes me chamou num canto e examinou a palma da minha mão esquerda.
- Parece um mapa do tesouro – ela disse, maravilhada. – Veja só a extensão da
profundidade desta linha. Você nasceu poderosa, Joana, e é capaz de fazer o que quiser. Até
milagres.
Embora seja a dona do salão de beleza, Salete não abandonou o alicate. Ela continuou
trabalhando como manicure e, atendendo aos pedidos, também exerce o dom de vidente.
Muitas freguesas que vão atrás dela, a pretexto de cuidar das unhas, estão mais interessadas
em mostrar a palma da mão pra saber se a linha do destino lhes reserva um marido rico ou
um prêmio acumulado da loteria.
Acreditando ou não em quiromancia, não há como negar o talento da Salete. Foi ela quem
previu que eu tinha o mundo na mão e poderia transformar a realidade com as palavras.
Sempre confiou na força da minha ficção e um dia me pediu o favor de ressuscitar o
Frederico. Este cachorro, apesar de vira-lata, possui o nome e olhar de gente e é tratado
como membro da família. Tinha sido morto pelo ex-marido da Salete e jazia numa poça de
sangue quando concordei em criar uma frase pra tentar o milagre. Foram, na verdade, duas
frases, rabiscadas no canto de uma conta de luz: Frederico não é gato, mas também tem
sete vidas. E vai se levantar agora mesmo. Mal terminei de escrever, o bicho mexeu o rabo,
sacudiu o pelo úmido de sangue e começou a correr e latir pelo quintal.
Disse Salete que não há diferença entre ressuscitar um cachorro e uma avó. E completou,
quase sem voz:
- Por que você não junta algumas palavras pra botar a dona Nina de pé?
Repeti que tinha respondido à minha mãe a propósito da cremação:
- Porque não era isso que ela queria.
Não faz muito tempo, pensei em fazer uma redação pra acabar com as rugas, estrias e
cabelos brancos da vó Nina. Chegamos a conversar sobre isso, mas ela resmungou que não
sonhava ser eterna e só desejava curtir a velhice em paz. Conclusão: se não queria
rejuvenescer, que motivos teria pra ressuscitar?
Salete concordou com a minha lógica, mas não parecia muito convencida.
- Engraçado – ela disse, espiando a palma da mão da minha avó – Essas linhas mostram que
a dona Nina ainda tinha muita vida pela frente.
Vestido estampado, sandálias de salto e um colar de pérolas que dava duas voltas no
pescoço: foi assim, com roupa de festa, que vó Nina passou a noite do velório. É pena que
ninguém pôde atestar a elegância da anfitriã; o caixão dos pés até o queixo, deixando à
mostra o rosto levemente maquiado e as mãos de unhas impecáveis cruzadas na altura do
peito.
Compareceram à capela do bairro alguns vizinhos, colegas de faculdade da minha mãe e
dois ou três clientes do meu pai. O que mais me comoveu, no entanto, foi a inesperada
presença de tantos moradores de rua: muitos falavam com saudade do caldo de feijão que
vó Nina preparava e distribuía, antes de adoecer, com a ajuda de voluntários.
As pessoas chegavam ao velório de cabeça baixa, soltavam um suspiro diante do caixão,
distribuíam tapinhas nas nossas costas e diziam que minha avó foi descansar, que ela estava com uma expressão serena, que Deus sabe o que faz, que para morrer basta estar vivo, que
foi uma perda irreparável, que o mundo ficou mais pobre. Sei que a intenção era nos
consolar, mas a falta de originalidade dos comentários me deixou ainda mais deprimida.
Acredito que a literatura tem o papel de combater os clichês, os chavões, as palavras gastas,
as frases feitas e de efeito: evitar, em resumo, que a língua seja corroída pelas repetições e
se transforme num mugido de vaquinhas de presépio. O problema é que diante da morte as
pessoas perdem a naturalidade. Lembrar histórias divertidas da vó Nina talvez servisse pra
consolar a família, mas quem se atreveria a misturar humor e morte?
O único lance engraçado da noite ficou por conta da Leninha. Ah! Essa minha amiga não
existe!
O sonho dela é tornar-se primeira-dama, mas por enquanto não tem idade pra se casar com
um candidato a presidente da República e se contenta em ficar com o representante da
turma. Não sei se Marcelo gosta de política ou apenas usa o prestígio do cargo pra
impressionar as garotas. De um jeito ou de outro, ele se julga uma autoridade e me
cumprimentou com tanta cerimônia que merecia ser tratado por Vossa Excelência.
Leninha também não parecia à vontade. Pendurada no braço do Marcelo, arrastava os pés
lentamente e por pouco não tropeçou nos degraus da entrada. Tive a impressão de que ela
não enxergava direito e achei que a culpa fosse dos óculos escuros. Logo descobri, no
entanto, que se movia feito cega, ops, deficiente visual porque estava de olhos fechados.
Ao me abraçar, Leninha se desculpou por ter fugido da minha casa às pressas, acontece que
não se sentia preparada pra ver o cadáver da minha avó. Confessou que tinha pânico de
gente morta e só concordara em ir ao velório porque me considerava uma irmã - e também
por insistência do Marcelo. Foi ele quem lhe deu os óculos e o braço pra que elka
caminhasse sem abrir os olhos.
O medo não era privilégio da minha trêmula amiga. Das colegas de sala presentes ao
velório, a maioria só conhecia os mortos do cinema e permaneceu na entrada da capela.
Ouvi a professora Clarice dizer a um grupo de garotas arregaladas que a gente aprende
ficção é pra cair na realidade, portanto não dá pra continuar fingindo que a morte não existe
ou que só acontece com os outros. Apesar de todos os argumentos, as colegas me acenaram
de longe e não se aproximaram do caixão.
Agradeci a presença acenando de volta, mas minha mão ficou parada no ar quando vi um
deus grego invadir o recinto. Não, eu não estou exagerando. O professor de História
personifica o ideal de beleza clássica. Pela pitada de grisalho, dá pra arriscar a idade, algo
em torno dos 40, mas o físico de garoto sarado ainda provoca arrepios e suspiros. Não
admira que, entre as garotas, Paulo seja conhecido como Apolo.
Além de todos os atributos anatômicos, ele é inteligente, culto, irônico e, ufa, solteiro.
Faz Algum tempo que Salete conquistou o coração de Apolo e tornou-se a mulher mais
invejada da escola. Os dois atravessaram a capela sob uma onda de murmúrio e tietagem;
Dany chegou a pegar o celular pra tirar uma foto do casal. Enquanto Salete abraçava minha
mãe, Apolo apertou a mão do meu pai e em seguida veio falar comigo. O assunto? Não
faço idéia. Na ânsia de descobrir se os olhos dele eram verdes ou azuis, não prestei a menor
atenção às palavras. Talvez tenha tentado me consolar com alguma frase pré-fabricada, mas
o que me trouxe alento foi ganhar um beijo e sentir a face espetada pela barba por fazer...
Essas reticências não significam que estou de olho no Apolo. A ligação que mantenho com
essa divindade é meramente platônica - nem poderia ser diferente: afinal de contas, ele anda
saindo com a mãe do meu namorado.
Ou será que João e eu só estamos ficando?
Seja como for, João não sabia o que fazer pra aliviar o meu sofrimento. De vez em quando,
vinha me abraçar e me perguntava se eu estava bem, se precisava de alguma coisa, se não
queria ir até a lanchonete da esquina pra tomar um suco de maracujá. E a paciência de bolso
e, sentado num canto, ficou cuidando de um bichinho virtual de estimação que a cada
minuto apitava de fome. Muita gente já estava incomodada com o barulho, mas por sorte
João entende desses joguinhos eletrônicos e sentou-se junto ao cunhado pra lhe mostrar
como se enche a pança do bicho.
Foi nessa hora que dei pela presença de um senhor de cabeça branca e cabelos na altura dos
ombros. Seria um morador de rua? Passou algum tempo parado à porta, como se hesitasse
em entrar, depois avançou pelo corredor central da capela. À medida que se aproximava,
pude reparar que, no dorso da mão dele, havia um Z tatuado. Pensei que fosse algum cliente
do meu pai, mas os dois se cumprimentaram tão formalmente que abandonei essa hipótese.
Da minha avó, ao contrário, ele devia ser íntimo, tanto assim que se debruçou no caixão e
começou a soluçar.
A invasão do velório por um desconhecido em prantos só deixava duas alternativas à minha
imaginação de escritora: ou o sujeito era doido, ou então a vida da vó Nina escondia a
surpresa de um amor explosivo. Mas ela sempre me pareceu tão apaixonada pelo vô
Plínio...
Dessa vez, as reticências simbolizavam o caos. Minha cabeça estava zonza de perguntas
quando o homem tirou um lenço de bolso e esfregou os olhos úmidos. Por fim, veio falar
comigo. Em vez de me dar os pêsames, ele se limitou a lamentar:
- É uma pena, Joana, que não pude ser seu avô.
O que será que ele queria dizer? Pegou uma flor sobre o caixão e foi embora sem explicar
como sabia o meu nome.

Poderosa 2 - Sergio KleinOnde histórias criam vida. Descubra agora