A viagem de Cabral até o Brasil não foi exatamente um cruzeiro de luxo. Naquela época, os
navegadores já sabiam que a Terra é redonda, mas muitos marujos ainda duvidavam dessa
teoria e embarcavam nas caravelas com receio de despencar numa cachoeira que os levaria
aos quintos dos infernos. Chegar ao fim do mundo, porém, não era o único temor da
tripulação dos treze navios que em 22 de abril de 1500, depois de navegar um mês e meio,
finalmente avistou o Monte Pascoal e esfregou os olhos pra ter certeza de que não estava
sonhando. Além dos monstros que assombravam a imaginação recém-saída da Idade
Média, os navegantes tinham de enfrentar obstáculos concretos, como tempestades,
maremotos, escorbuto, navios piratas, falta de comida, e de água potável. Oficiais e
marinheiros alimentavam-se de carne salgada, cebola, vinagre, azeite, água e vinho, mas o
prato principal, por assim dizer, eram os chamados “biscoitos de marear”. Tratava-se de
uma bolacha salgada que, ultrapassado o prazo de validade, transformava-se numa pedra
fedorenta e destruía os dentes, estômagos e intestinos mais aventureiros. A diarréia se
espalhava como uma epidemia, por isso duvido que algum marinheiro tenha encontrado
forças pra berrar “terra à vista”, como contam os livros de História.
Onde aprendi tudo isso? Nas aulas de literatura! Clarice acredita que a ficção se nutre de
todas as disciplinas, de modo que não pediu licença a Apolo pra discorrer sobre as grandes
navegações. Depois de nos contar como os tripulantes comiam, trabalhavam, dormiam, se
divertiam e faziam as necessidades, a professora revelou que tinha um especial interesse
por um daqueles personagens. Não estava falando de Cabral, como muita gente pensou, mas de Pedro Vaz de Caminha, autor do primeiro texto da língua portuguesa produzido em
nosso território.
Na opinião da professora de Literatura, não existem textos totalmente objetivos ou isentos
de ideologia; até mesmo as bulas de remédio estão carregadas de metáforas, e, pra bom
entendedor, a poesia brota nas estrelinhas como erva nas frestas das calçadas de cimento.
Embora não seja considerada uma obra literária, há um bocado de ficção na carta que
Caminha escreveu ao rei de Portugal, dom Manuel I, o Venturoso, relatando as belezas
naturais da nova colônia e os bizarros costumes indígenas.
A carta foi assinada em 1° de maio, portanto Caminha deve ter levado mais de uma semana
pra concluí-la. Será que estava intoxicado pelos “biscoitos marear” e precisou de alguns
dias, após o dês embarque, pra encontrar inspiração? Clarice disse que o ideal seria
examinar cada parágrafo do documento, mas por falta de tempo tinha selecionado alguns
trechos que passou a ler em voz alta.
Ao ouvir que alguns índios tinham “os beiços furados e nos buracos traziam uns espelhos
de pau”, Danyelle não se conteve:
- Eu aposto que os portugueses ficaram encantados quando viram as índias com piercing!
Mas é mesmo muito convencida! Só porque tem meia dúzia de argolas espalhadas pelo
corpo, Dany acha que esse tipo de adereço seria capaz de impressionar os marujos.
Convencida e insistente:
- As índias só usavam piercing no rosto? Ou será que, como eu, também enfeitavam outras
partes... Mais secretas?
- Não se esqueça – informou Clarice – de que elas andavam nuas. Não havia nenhuma parte
secreta onde esconder um piercing.
- Nuas? – os garotos perguntaram em uníssono, frustradíssimos por não terem nascido no
fim do século XV e participado da expedição de Cabral.
Marcelo foi o porta-voz da curiosidade masculina:
- Você está querendo dizer, professora, que as índias desfilavam sem nada? Não usavam,
sei lá, nem uma peninha de arara?
Clarice respondeu com um trecho de carta:
- “A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes,
bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixar
de encobrir suas vergonhas do que mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência. ”.
- Não entendi – disse Leninha. – Se os índios estavam com vergonha, por que não vestiam
uma canga? Ou, então, um vestidinho básico?
- Quem se sentiu envergonhado foi o Caminha – explicou Clarice. – De acordo com a
rígida moral da época, não ficava bem escrever ao rei que as nativas do Novo Mundo
deixavam à mostra os genitais, ou o sexo, ou a vulva. Os autores eram obrigados a usar
palavras mais sutis, como vergonha, que nesse contexto deixa de ser substantivo abstrato e
vira concreto.
- Imagem a adrenalina dos gringos – disse Guto – quando eles viram as índias com as...
Vergonhas de fora!
O comentário destinava-se às carteiras vizinhas, mas a sala inteira escutou e riu. Guto não
se intimidou:
- É isso mesmo, gente. Depois de passar tanto tempo no mar, os marinheiros olhavam para
os golfinhos e enxergavam sereias. Pra mim, esses caras vieram ao Brasil pra fazer turismo
sexual!
- Também não é assim – disse Clarice. – Mas reconheço que, infelizmente, houve casos de agressão e estupro.
- Os marinheiros usavam camisinha? – perguntou Dany. – Ou será que eles não se
preocupavam com a AIDS?
Clarice lembrou que naquele tempo havia outros males:
- O que matava os índios era a varíola, a malaria, o tifo, a difteria. Eles tinham pouca
resistência às doenças dos brancos. Até um simples resfriado podia ser fatal.
João levantou o braço:
- E câncer de pele? Os índios ficavam tão expostos ao Sol...
A pergunta era dirigida à professora, mas Dany, pra variar, se intrometeu:
- Índio não é bobo garoto! Você acha que eles não usavam protetor solar?
- Caminha conta – disse Clarice, com os olhos outra vez na carta – que “andavam lá outros,
quartejados de cores, a saber, metade deles da sua própria cor, e metade de tintura preta, um
tanto azulada; e outros quartejados D’estaques”. Quer dizer, pintados de xadrez. Como
vocês vêem, não há nenhuma menção a protetor solar ou coisa parecida.
- E daí? – rebateu Dany. – Quem garante que o Pedro não mandou um e-mail dando mais
detalhes sobre os índios?
Ninguém conseguiu segurar o riso. Fazia poucos dias que vó Nina havia morrido. Por isso
eu ainda não tinha ânimo pra participar dos debates em sala de aula. Mas não consegui
engolir as abobrinhas da Dany:
- O nome é Pero, e não Pedro. Como é que ele ia passa rum e-mail para o rei de Portugal?
Entrando num cyber café em plena selva?
- O Brasil não tinha computador – admitiu Danyelle. – Mas o Pero pode ter trazido um
laptop na bagagem.
O coro de vaias e assobios transformou a sala num sambódromo. Clarice teve trabalho pra
encerrar o carnaval fora de época:
- Nenhum texto pode ser plenamente compreendido fora do seu contexto histórico. E a
carta de Pero Vaz de Caminha, como todos sabem, data de 1500. Naquele tempo, meus
queridos, ainda não havia piercings, nem biquíni, nem AIDS, nem protetor solar, nem
internet.
Fez uma pausa e concluiu com um conselho enigmático:
- Vocês precisam fazer história. Está na hora de descobrir o Brasil!
Pelo fato de ter uma filha que pretende ser escritora, dona Sônia se acha no direito de
depositar sobre os frágeis ombros da coitada a tarefa de criar mensagens originais em
cartões de aniversário, formatura, bodas de prata e Natal. Pobre de mim! Já cansei de
explicar que nada disso é gênero literário, mas minha mãe entende que uma imaginação de
onde brotam tantas personagens e situações mirabolantes não terá dificuldade de “juntar
umas palavrinhas” pra cumprimentar parentes, vizinhos e alunos da faculdade. O pior é que
ás vezes nem sei quem são os aniversariantes e formandos. Quando digo que é difícil
desejar parabéns a quem não conheço sem cair em velhos clichês, sou acusada de
preguiçosa, arrogante e insensível.
Epitáfio também não tem nada a ver com ficção. Cá entre nós, eu e meu diário, acho que de
extremo mau gosto essa literatura fúnebre, feita de boas intenções e letras de bronze, que
tenta resumir a vida do falecido em meia dúzia de palavras definitivas que o tempo corrói e
cobre de musgo. Mas não estava com cabeça pra discutir com a minha mãe e, em nome da
paz doméstica, aceitei a missão quase impossível de escrever uma frase pra ornamentar o
túmulo da família. Como vó Nina cozinhava com mãos de fada, pensei em mudar a abertura do epitáfio: em
vez de “Aqui Jaz”, que tal “Era um a vez”? Vamos ver... Era uma vez uma menina que
escolhia os namorados pela caligrafia e apaixonou-se por um falso seresteiro, fazia a
melhor macarronada de todo o planeta, incluía a Itália, tinha a mania de cavoucar a parede
com a unha, estalar os dedos da mão, fazer careta na frente do espelho, colocar o cabelo
atrás da orelha, dormir com um pé fora da casa e resolver palavras cruzadas.
Ignoro quanto custa cada letra de bronze, mas duvido que minha mãe concordasse em pagar
por um texto tão longo. Por que não manter apenas as três primeiras palavras, era uma vez,
e deixar o resto pra conta da imaginação de quem visita o cemitério?
Segui para o quarto da vó Nina em busca de inspiração. Fiquei algum tempo diante da
porta. A veneziana fechada criava uma penumbra de filme de suspensa. Abri a janela e me
senti mais à vontade. O sol ocupou parte do assoalho e se refletiu no termômetro sobre a
mesinha de cabeceira. O mercúrio marcava 38°: a última febre da minha avó.
Puxei a gaveta com a ponta dos dedos e, entre pílulas, colírios e pastilhas, encontrei uma
foto do meu irmão com a língua de fora. Minha reação foi imediata: tirei as caixas de
remédio, uma por uma, na ilusão de deparar com alguma imagem da única neta da vó Nina.
Mas nada... Nem mesmo um retratinho 3 x 4! Reclamar com quem? Tratei de engolir o
ciúme e abri a porta do armário.
Estava examinando uns vestidos quando minha mãe entrou no quarto e me estendeu a mão:
- Cadê a minha frase?
Pedi um pouco mais de prazo, mas ela disse que não podia passar o resto da vida esperando
que a minha inspiração desse o ar de graça; já sabia onde encontrar as letras de bronze e ia
até a loja pra fazer a encomenda. Tinha acabado de chamar um táxi, portando eu dispunha
de poucos minutos pra criar uma frase inesquecível em homenagem à memória da minha
avó.
Sem saber por onde começar, só me restava apelar para a escrita automática. Este método
foi muito utilizado pelos escritores do movimento surrealista, no inicio do século passado, e
consistia em despejar no papel todas as idéias que caíssem na telha do inconsciente. Nada
de ficar encarando a folha em branco, mordendo a tampa da caneta ou coçando a cabeça à
procura da palavra ideal ou da frase redonda e bem torneada. O autor deveria se esforçar
pra libertar-se da autocensura e deixar a mão isenta de culpa pra arrancar do fundo da
intuição as histórias mais verdadeiras.
Tudo isso, na teoria, é muito bonito, mas quem disse que funciona na prática? Comigo, pelo
menos, não dá certo: a primeira versão dos meus textos me enche de desconfiança. Não me
refiro, evidentemente, as anotações neste diário, que não serão lidas por ninguém e muito
menos publicadas. Mas nas aulas de redação gasto mais tempo rabiscando meus próprios
hieróglifos e quase sempre sou a última a terminar.
Dessa vez, porém, eu não tinha escolha: ou adotava a técnica surrealista, ou não teria como
atender ao apelo da minha mãe. Enquanto ela bisbilhotava as gavetas e cabides do armário,
arranquei uma folha do bloco onde estava anotado o horário dos remédios da vó Nina.
Peguei uma canta e escrevi sem pensar:
Vó Nina está viva e
Forte no meu coração.
Mal pinguei o ponto final, senti a fisgada do perfeccionismo. Que coisas piegas, meu Deus!
Como fui capaz de escrever uma bobagem tão sem graça e previsível?
A melhor solução seria rasgar o papel em pedacinhos, mas não havia tempo a perder e me
contentei em cortar as palavras “vó” e “meu”; não tinha direito, afinal de contas, de
monopolizar a homenagem. O resultado – Nina está viva e forte no coração – ficou um
tanto capenga. Coração de quem? Experimentei “nosso coração”, “coração da família”,
“coração dos amigos”. As três locuções me pareceram infelizes e foram descartadas com
um rabisco. Fiz uma nova mudança e repeti a frase para testar o ritmo:
Nina está viva e forte
Dentro da gente
Foi quando tocou o interfone: seu Esteves avisando que havia um táxi parado em frente à
portaria. Minha mãe tomou o papel da minha mãe e nem se deu ao trabalho de ler. Saindo
do quarto, apontou para o armário e me informou que pretendia doar todas as roupas e
sapatos da vó Nina para uma instituição de caridade.
- É melhor fazer isso logo, senão esse quarto vira um museu. Se você quiser escolher
alguma coisa...
Depois que ficou doente, vó Nina quase não saía da cama. A maior parte do guarda-roupa
estava fora de moda, mas com essa onde retrô ainda dava pra ressuscitar algumas peças. O
que mais me atraiu a atenção foi um casaco de lã cheio de bolsos, que retirei da gaveta e
provei diante do espelho. Parecia feito pra mim! Desfilei pelo quarto de um lado pra outro
e, por fim, enfiei a mão no bolso.
Lá estava, além do meu retrato, a receita do caldo de feijão.
Danyelle vivia dizendo que o piercing, muito mais que um modismo, representa “um grito
de protesto contra o avanço da globalização selvagem e uma tentativa de fazer a revolução
social e política a partir da própria pele” . Não sei de onde tirou essa bobagem, mas duvido
que estivesse pensando em mudar o mundo quando chegava à escola anunciando que tinha
pendurado uma argolinha em local secreto. Não satisfeita, lançava desafios que faziam
borbulhar a testosterona dos garotos: quem descobrisse o tal esconderijo ganhava o direito
de beijar a argola.
As loterias aconteciam semanalmente e quase todas foram ganhas pelo Guto; graças a
telefonemas anônimos da própria Danyelle, ele ficava sabendo previamente do resultado.
Faz algum tempo, contudo, que ela não pendura mais nenhum novo piercing. É possível
que a mania tenha terminado porque não restam mais locais secretos na sua pele metálica.
Segundo as línguas mais afiadas, o fim das apostas também tem a ver com o desinteresse
do professor de História. Ele nunca participava das loterias, apesar de inúmeras dicas que
Dany escrevia no rodapé das provas.
Não sei se ela pretendia impressionar Apolo ou Guto quando cismou de modificar mais
uma vez o visual. Corriam boatos de que dessa vez adotaria um estilo mais agressivo,
cravando o piercing nas pálpebras, cobrindo o nariz com a tatuagem de um dragão ou
fazendo ponta nos dentes pra exibir um sorriso apenas de caninos. Mas ninguém poderia
imaginar que fizesse justamente ao contrário.
- Será que estou tão mudada? – Ela sorriu, diante da perplexidade dos colegas. – Tudo o
que fiz foi tirar os piercings, só isso. Aquele monte de argolas já estava me cansando.
Apolo aproximou-se da primeira fila e examinou a aluna bem de perto antes de dar uma
opinião:
- Gostei, garota. Você é muito bonita pra ficar com o rosto todo espetado.
Bonita ainda vá lá, mas muito? O elogio abriu uma ferida d inveja na auto-estima das garotas. Sou obrigada a confessar que também achei a declaração um exagero, mas no
fundo sabia que Dany não tinha chance de desbancar a Salete.
Apolo disse que é preciso coragem pra mudar e resolveu dar o exemplo. Em geral, entrava
na sala apressadinho, mandando abrir a apostila na página tal senão a gente corria o risco de
perder o trem-bala da História. Mas dessa vez foi diferente. Depois de circular entre as
carteiras em silencio, o professor encarou a turma e fez uma série de perguntas. Como tinha
surgido a internet? Em que período a aids se tornou uma epidemia? Desde quando se usa
filtro solar? Qual a primeira brasileira famosa a desfilar de biquíni pelas praias?
Era óbvio que já estava sabendo das abobrinhas da aula de Literatura, como aquela do
laptop na bagagem de “Pedro” Vaz de Caminha. Para um professor tão dedicado, deve ser
frustrante lecionar pra estudantes que ignoram o processo histórico e imaginam que o
Renascimento utilizava a mesma tecnologia da modernidade. Apolo repetiu o conselho de
Clarice:
- Vamos seguir o exemplo de Cabral e descobrir o Brasil?
Leninha entendeu que faríamos uma excursão a Porto Seguro e contou que tinha passado as
férias por lá, numa delicia de pousada com vista para o mar, café-da-manhã tropical e
desconto para adolescentes.
- Se você quiser, fessor, eu posso falar com o meu pai. Ele conhece o dono da pousada e, de
repente, descola uma diária mais barata. Será que vai a turma toda?
Muita gente confirmou presença, mas Apolo jogou água gelada na euforia coletiva:
- Que excursão? Não é preciso ir longe pra descobrir o nosso país.
Na opinião do professor de História, o umbigo do Brasil fica na Bahia, pois foi lá que
começou a se formar o embrião da cultura brasileira. Mas esse é um conceito tão vasto que
talvez seja melhor falar em culturas brasileiras. Ou será que o plural não é suficiente pra
conter toda a diversidade de manifestações sociais, políticas, artísticas, folclóricas,
lingüísticas, religiosas e culinárias que formam a nossa identidade?
Apolo disparava uma pergunta atrás da outra e cutucava a imaginação da turma:
- Se o Brasil fosse uma pessoa e fizesse um teste de DNA, quem vocês acham que seriam
os pais?
Quando os alunos responderam que somos filhos de índios, portugueses e negros, Apolo
concordou em parte e acrescentou que estes talvez sejam os nossos pais biológicos. Não
podemos nos esquecer, no entanto, dos pais adotivos e padrinhos que ajudaram a criar esta
nação: franceses, holandeses, espanhóis, italianos, alemães, japoneses, árabes, enfim, o
mundo inteiro corre em nossas veias. Muito antes de ser batizada, a globalização já estava
no sangue brasileiro.
- É correto dizer – provocou Apolo –que vivemos no pais do carnaval, do futebol e da
feijoada?
O próprio professor respondeu que não existe um único carnaval: as escolas de samba do
Rio são completamente diferentes dos trios elétricos de Salvador, que não têm nada a ver
com os blocos de frevo e maracatu de Recife e Olinda. E, além do carnaval, ou melhor, dos
carnavais, o Brasil participa de corpo e alma da lavagem das escadarias do Senhor do
Bonfim, na Bahia; das procissões da Semana Santa, em Ouro Preto, Mariana e outras
cidades históricas de Minas Gerais; da Festa do Divino em Pirenópolis, em Goiás; Do
Bumba-meu-boi, em São Luís do Maranhão; da disputa entre Caruaru, em Pernambuco, e
João Pessoa, na Paraíba, pra saber qual a festa junina mais quente do planeta; do confronto
entre os blocos Garantido e Caprichoso, em Parintins, no Amazonas; da Bienal de São
Paulo; da procissão do Círio de Nazaré, em Belém do Pará; do Dia do Romeiro, em Juazeiro do Norte, no Ceará; e de tantos e tantos outros festejos.
A aula já estava no fim quando Apolo decidiu torturar os estômagos famintos dos alunos
com a enumeração das obras-primas da nossa culinária. Mesmo admitindo que a feijoada é
o prato brasileiro mais famoso, ele garantiu que nenhum paladar que se preze pode ficar
indiferente ao churrasco gaúcho, ao barreado paranaense, ao frango com quiabo mineiro, à
moqueca capixaba, ao vatapá baiano, ao arroz com pequi goiano, ao pato no tucupi
paraense ou á tapioca manauara. A turma não conhecia pessoalmente todas aquelas delícias
(ás quais eu acrescentei o caldo de feijão temperado da vó Nina), mas a maioria ficou com
água na boca.
Antes que começássemos a babar, Apolo disse que seria maravilhoso conhecer de perto a
diversidade cultural brasileira, viajando por todos os recantos do Brasil pra participar de
festas, provar os cardápios regionais, ouvir os diferentes sotaques e expressões, visitar
museus, teatros, igrejas, monumentos, praças, parques e jardins.
- Mas isso, quem sabe, fica para as férias. Em vez de fazer a excursão que a Leninha tinha
sugerido, convido vocês a descobrir o Brasil sem sair da cidade.
A proposta causou burburinho. Apolo estalou os dedos pra obter silêncio e se explicar:
- Uma boa maneira de conhecer um pais é ouvir o homem comum e resgatar as suas
aventuras anônimas. Só assim dá pra saber como a cultura, em suas múltiplas expressões,
afeta o dia-a-dia de cada um.
Pausa para Apolo ajeitar o cabelo e fazer uma pergunta delicada:
- Quem de vocês ainda tem avó ou avô vivo?
Senti os olhos embaçados, mas consegui segurar o choro. Entre os felizardos que
levantaram o braço, não eram muitos o que visitavam regularmente os avós. Alguns
preferiram o conforto de um convívio à distância: se o papo ficasse chato, bastava desligar
o telefone ou sair da internet. Outros, como Guto, não queriam conversa:
- Bem que eu gostava de falar com o meu avô. Mas, de uns tempos pra cá, ele ficou meio
biruta e vive me confundindo com o meu pai.
- Biruta ou não, seu avô deve ter uma porção de histórias na ponta da língua – disse Apolo.
– E são essas historias que vocês vão registrar quando a gente visitar os internos de uma
clinica da terceira idade.
Marcelo traduziu o espanto da turma:
- Pega leve, professor. Será que não existe um lugar mais agitados pra gente descobrir o
Brasil?
Apolo ignorou a pergunta:
- Cada aluno vai entrevistar um dos moradores da clínica e depois fazer uma redação.
Procurem saber em que cidade nasceu o entrevistado, do que gostava de brincar, com quem
se casou, onde trabalhou, o que queria ser quando crescesse e o que acabou sendo.
Imaginem que vocês são repórteres e estão colhendo dados para uma matéria sobre as
mudanças do país nas ultimas décadas. É bom levar lápis e papel e ir anotando o
depoimento. Ou, se for o caso, um gravados portátil. Mas cuidado: tem gente que fica muda
diante de um gravador.
Pra vencer a resistência dos mais resmungões, Apolo deixou bem claro que a tal
reportagem valia nota.
A pensão deixada por vô Plínio não era lá grande coisa, por isso vó Nina teve de se virar
pra sustentar a casa e começou a fazer doces e salgados pra fora. Vendia, a principio, para
os alunos e professores da escola onde minha mãe estudava, mas os elogios viraram
propaganda e multiplicaram a freguesia. Pra atender às encomendas, foi necessário contratar ajudantes, comprar um fogão de seis bocas e diversificar o cardápio. Mas nada se
comparava ao caldo de feijão temperado.
Como vó Nina morava no primeiro andar, o aroma chegava facilmente à calçada. Os
moradores de rua ficavam sentados no meio-fio, tapeando a fome com o nariz e acabavam
ganhando uma tigela de caldo. Comida boa e de graça? A notícia se espalhou pela cidade e,
em pouco tempo, uma multidão de mendigos, ops, de carentes descobriu o endereço do
prédio.
As filas começavam nos degraus da portaria, estendiam-se muito além da esquina e quase
sempre terminava em briga. A distribuição de senhas não resolveu o problema. Além dos
engraçadinhos que tentavam passar na frente, a golpes de cotoveladas, havia intrusos com
emprego e residência que se disfarçavam de carentes – chinelos, boné e óculos escuros – só
pra desfrutar do tempero da vó Nina.
Uma dessas figuras era a síndica do prédio. Ela atravessava a rua a semana de regime,
disputando queda-de-braço contra o ponteiro da balança, mas no sábado sentia o perfume
do caldo e quase mergulhava na panela. A ânsia de emagrecer (ou, pelo menos, de parar de
engordar) provocou uma crise de autoritarismo. Numa reunião extraordinária entre os
condôminos, a dona alegou que a rua estava virando um antro de vagabundos e propôs a
adoção de uma nova cláusula no regulamento do prédio: fica terminantemente proibida, a
partir desta data, a prática filantrópica nas imediações da portaria.
A essa altura, vó Nina contava com o apoio de uma equipe de colaboradores que cuidavam
de todos os detalhes: da compra dos ingredientes à fiscalização das filas.
Mas como fazer essa estrutura funcionar sem um local fixo pra distribuir o caldo de feijão?
Quem trouxe a solução foi o responsável pela igreja do bairro. Ao saber da implicância da
síndica, padre Lázaro disse que aquele projeto não podia morrer e saiu distribuindo as
refeições nos becos e praças onde dormiam os moradores de rua.
De modo geral, eles adoraram a idéia, mas não é possível agradar a todos. Adalgisa foi uma
que não gostou da novidade e, apesar de chuva, passou a noite fazendo vigília do prédio da
minha avó. Era alta, graúda, desengonçada e trazia na boca uma cicatriz que formava com
os lábios uma cruz. O sorriso leve, quase ingênuo, amenizava a falta de alguns dentes.
Tinha a mania de piscar alternadamente, um olho de cada vez, e não fixava os olhos fundos
em ninguém. Vivia sozinha, sem família nem amigo, carregando a tiracolo um gato de
pelúcia que lhe servia de travesseiro.
Padre Lázaro procurou Adalgisa e perguntou-lhe por que não se conformava em receber
refeições num dos locais de entrega, como todo mundo. Do alto dos seus quase dois metros,
ela disse que não era um cordeirinho pra seguir rebanho, só iria embora depois de jantar e
não tinha medo do diabo. Minha avó achou melhor levá-la pra casa e deu-lhe um prato de
caldo. Adalgisa jantou, repetiu, comeu a sobremesa e, por fim, pediu pra ir ao banheiro.
Acabou dormindo dentro da banheira, com a cabeça apoiada no gato de pelúcia e as pernas
compridas pra fora da borda.
Dar abrigo a uma estranha pode ser perigoso, mas vó Nina ignorou a prudência e apostou
na intuição. Como botar na rua uma coitada que não tinha pra onde ir, ainda mais á noite e
debaixo de chuva? Não apenas acolheu a inesperada hóspede, como arranjou-lhe um
cobertor e substituiu o gato por um travesseiro de verdade; no dia seguinte, aí sim, poderia
despedi-la sem remorso.
Mas de manhã não havia ninguém na banheira. Chegando á cozinha, minha avó encontrou
o café pronto, a mesa posta e nenhum prato na pia. Adalgisa estava à beira do tanque
tentando clarear as meias da mãe, que nessa época tinha a minha idade e – assim como eu – adorava tirar os sapatos pra patinar no assoalho. Vó Nina provou um gole de café: suave e
doce como ela gostava... Cadê coragem de mandar a mulher embora? Precisava mesmo
arranjar uma empregada e, ainda que sem referência, ofereceu-lhe a vaga.
Foi então que Adalgisa entrou na historia da minha família. Não que fosse boa cozinheira:
só o que sabia, na verdade, era fazer café – e olhe lá: costumava exagerar na quantidade de
açúcar, assim como carregava no sal quando se metia a preparar o almoço. Também não
podia ser classificada como a melhor faxineira do mundo; tinha altura pra alcançar as
prateleiras de cima, mas deixava o pó se acumular na estante da sala por pura preguiça de
esticar o braço. Vó Nina não reclamava do serviço; em vez de bancar a patroa, decidiu
tratá-la como filha. Ensinou-lhe a ler, escrever, escovar os dentes, usar absorvente, cortar o
bife, andar de bicicleta e falar olhando nos olhos.
Minha mãe se lembra de Adalgisa com carinho e conta e conta que ela sempre comia uma
fatia e encomenda quando fazia entrega na casa das freguesas, gostava de abrir as
correspondências pra mostrar que já sabia ler, morria de ciúmes da minha avó e um dia
sumiu sem mais, nem menos, nem adeus, nem bilhete, nem pista, nem nada.
Padre Lázaro tinha adoração pela minha avó e fez questão de celebrar a missa do sétimo dia
de “uma alma que veio ao mundo pra tornar a vida mais saborosa”. Salivando de saudade,
relembro a luminosidade do arroz, a irreverência das massas, a delicadeza das carnes, a
alegria das gelatinas e das compotas que nasciam das mãos abençoadas da vó Nina.
Declarou que ela transformava a refeição mais singela numa santa ceia e tentou descrever o
caldo de feijão servido “aos nossos irmãos sem-teto”.
Enquanto padre Lázaro procurava um adjetivo á altura do tempero do caldo, olhei para o
outro lado da igreja e vi o senhor de cabelos compridos que, no dia do velório, disse que
gostaria de ser meu avô. Ele me acenou com a mão esquerda, onde havia um Z tatuado, e
logo em seguida foi embora. Será que estava cansado do falatório do padre? Ou teria saído
pra comer alguma coisa?
Escolho a última opção. Aquela conversa sobre carnes e massas tinha atiçado o apetite dos
fiéis – eu, pelo menos, fiquei com água na boca. Ao fim da missa, meu pai perguntou a
minha mãe que tal se a gente fosse a um restaurante... como nos velhos tempos. Ela alegou
que tinha de corrigir umas provas e recusou o convite de cabeça baixa, fingindo consultar o
relógio de pulso, mas por trás dessa desculpa civilizada havia mágoa, humilhação e revolta
por ter visto o ex-marido almoçando com a secretária numa pizzaria do centro da cidade.
Minha mãe garante que não tem ciúme do meu pai e acha natural que ele se divirta e seja
feliz pra sempre. Esse argumento só funciona, contudo, no confortável terreno do discurso.
Por mais amigável que seja uma separação, flagrar o ex-marido com outra não é colírio pra
nenhuma mulher – sobretudo se essa outra tem 20 anos a menos e pode se dar ao luxo de
dispensar sutiã e maquiagem.
Talvez eu devesse chamar minha mãe num canto da igreja e dizer que ninguém deve ser
crucificado por causa de um lanche com a secretária, mas concluí que uma missa de sétimo
dia não era a ocasião mais apropriada pra esse tipo de papo-cabeça. Por outro lado, estava
morrendo de saudade do meu pai e tratei de arranjar um jeito de ficar perto dele:
- Pra que ir a um restaurante? A gente podia lanchar lá em casa.
Minha mãe me mostrou os dentes e me trucidou com um olhar de fácil tradução: a última
coisa que queria na vida era perder a noite de sábado cozinhando para o ex-marido.
Apressei-me em informar que eu mesma iria para o fogão e acrescentei que faria em
homenagem à memória da vó Nina.
Houve uma epidemia de pigarros quando anunciei o cardápio: caldo de feijão!
Meu pai posou a mão no meu ombro e me advertiu de que ninguém tem o poder de repetir
uma obra prima. Como eu seria capaz, por exemplo, de alcançar o mistério daquele
tempero?
- É simples – eu disse. – Vó Nina me deixou a receita como herança.
Minha intenção não era apenas homenagear minha avó; pra falar a verdade, eu também
pretendia impressionar o João e resolvi chamá-lo para o lanche. Ele disse que não tinha
vocação pra cobaia, mas não hesitou em aceitar o convite. Depois de muita insistência, meu
pai conseguiu convencer minha mãe a entrar no carro; foi meu irmão, porém que se sentou
ao lado do motorista. Ela achou melhor ficar no banco de trás, entre João e mim, de onde
podia observar as reações do ex-marido pelo espelho retrovisor.
Passamos num supermercado pra comprar os ingredientes e de lá seguimos pra casa. Minha
mãe se ofereceu pra me dar uma força, mas ela não tem muita intimidade com as panelas e
seria bem mais útil longe da cozinha. Por que não fazia sala para o meu pai? Eu já me dava
por satisfeita de contar com o meu suporte técnico-afetivo do João, que me ajudou a catar,
lavar, cozinhar, bater no liquidificador e refogar o feijão.
Em seguida, acrescentei as carnes – lingüiça em rodelas, paio desfiado - e temperei a
mistura com cebola, alho, sal, cheiro-verde e louro, obedecendo rigorosamente ás medidas
constantes da receita.
Minha mãe aceitou minha sugestão e foi conversar com o meu pai. Mas que conversa? O
diálogo resumia-se a uma troca de impressões sobre o calor fora de época, a falta de chuvas
e as bruscas mudanças de temperatura. Era lamentável: depois de tantos anos vivendo
juntos, eles precisavam da ajuda da meteorologia para se livrar do silencio. O estoque de
monossílabas já estava se esgotando no memento em que meu irmão apareceu na sala com
um quebra-cabeça e despejou todas as mil peças no chão.
Existe passatempo mais torturante que montar quebra-cabeça com o estômago vazio? Os
dois sentaram-se no chão pra brincar com o caçula, mas a fome foi mais forte que a
paciência e estragou a brincadeira. Antes que meu pai comesse as peças, desliguei o fogo e
pedi a João que levasse a panela para a mesa.
O aroma estava divino e, modéstia à parte, não ficava nada a dever á obra-prima da minha
avó. Xandi chegou a dizer que já podia me casar, mas mudou de idéia na primeira
colherada:
- Eu é que não queria ser seu marido – falou olhando para o João. – Essa sopa não tem
gosto de nada!
Aleguei que o caldo não era sopa e mandei que o engraçadinho deixasse de implicância
mas ele não foi o único a condenar o meu tempero – ou, pensando bem, a falta de tempero.
Apesar da fome, meu pai não conseguiu reprimir uma careta de decepção. Minha mãe me
disse que toda receita tem lá suas manhas e me perguntou se, por acaso, eu não tinha me
esquecido de nenhum ingrediente.
- Vai ver – concluiu meu irmão – que a vó Nina usava feijões mágicos. Como na história
que a professora leu pra gente um dia desses.
João detesta comida quente e até então não se arriscaria a enfrentar o caldo. A família
esperava, com a sádica ansiedade, que o coitado também torcesse o nariz, mas ele jurou que
estava uma delícia e quase me convenceu de que o elogio era sincero. É pena que tenha
levantado o braço quando o Xandi ligou para uma lanchonete e perguntou quem queria um
cheeseburger.
No dia seguinte, logo após o almoço, minha mãe apareceu na minha frente abraçada a um pote de madeira. Era como se carregasse uma relíquia sagrada, um mapa do tesouro, uma
descoberta arqueológica capaz de revolucionar a história da arte. Não foi difícil adivinhar o
conteúdo da urna.
- Estou indo ao cemitério – informou. – Vou ver se lá tem alguma roseira pra jogar as
cinzas da sua avó.
Encarrelhada de cumprir o último desejo da vó Nina, deixei de lado uma antologia de
poetas modernistas e segui até o quarto pra trocar de roupa. Minha mãe me assustou quando
voltei à sala e afirmei que estava pronta.
- Você vai – ela me examinou de cima a baixo – assim?
Dei uma geral na minha blusa e não encontrei nenhum desfeito: não estava suja, nem
desabotoada, nem do avesso. Demorei uns bons segundos pra perceber o motivo da
pergunta: o problema, pelo visto, era a minha saia – curta e vermelha demais para o padrão
de qualidade da minha mãe:
- Não fica bem você ir ao cemitério de minissaia, ainda mais pra cumprir um ritual solene
como espalhar as cinzas da sua avó. A memória dos nossos entes queridos merece um
mínimo de respeito.
Com que direito minha mãe me acusava de neta desnaturada? Achei que deveria responder
a altura e sugeri que procurasse um oculista: a minha saia batia dois dedos acima do joelho,
no máximo três, e tecnicamente não poderia ser considerada míni. Falei que o comprimento
da roupa ou a cor do tecido não tem nada a ver com a falta de respeito. Vestir luto, cá entre
nós, era um costume do século passado. Ou retrasado?
-Ninguém precisa se fantasiar de graúna-concluí- para mostrar que ama os entes queridos.
Essa expressão, aliás, está fora de moda e não deveria ser repetida por uma professora
universitária.
Pensei que minha mãe fosse me perguntar quem era eu pra lhe dar conselhos sobre
comportamento e linguagem. Era assim que costumava agir quando não tinha mais
argumentos: assumindo o papel de mulher madura que não se deixa abalar pelas oscilações
hormonais da adolescência. Naquele dia porém, mudou de tática, apelando para a
chantagem emocional:
-Precisa me tratar assim? A minha própria filha! Eu só estava falando para o seu bem,
Joana. Por que você insiste em ser do contra?
Na hora de entrar no carro, fui obrigada a botar no colo a urna com a cinzas da minha avó.
Minha mãe percebeu o meu desconforto e parou de me perturbar com suas queixas e
resmungos. Mas, quando chegamos ao cemitério, assisti a outro ataque de nervos:
-Olhe só o que eles fizeram- rosnou minha mão. -Bando de incompetentes!
Eles, no caso, eram os responsáveis pelas letras de bronze escritas no túmulo. Além do
nome completo da vó Nina, havia uma estrela ao lado da data de nascimento e uma cruz
junto ao dia da morte. O que mais estaria faltando.
-A sua frase, Joana! Cadê a frase que você escreveu em homenagem a sua avó?
Vários familiares estavam enterrados ali, inclusive meu avô Plínio, e as respectivas
inscrições ocupavam quase todo o túmulo. Eu ia dizer que não havia espaço para o epitáfio
da vó Nina, mas a metralhadora da minha mãe já havia mudado de alvo. Ela teve um piti
quando olhou ao redor e não viu uma só roseira:
-E agora? Onde é que a gente vai jogar as cinzas?
Aleguei que aquilo não era problema. Ciente do meu poder de transformar literatura em
realidade, minha mãe adivinhou a minha intenção, tirou da bolsa uma caneta e um
guardanapo de papel e me ditou o seguinte: Uma roseira vai brotar no túmulo da nossa família.
Foi nesse instante que ergui os olhos e vi um senhor de cabelos longos cruzando o portão
do cemitério com um buquê de rosas vermelhas. Meu coração bateu forte: eu não podia
perder a chance de entrar em contato com aquele misterioso personagem e descobrir por
que ele tinha afirmado, no velório da vó Nina, que queria ser meu avô.
Mas como desvendar este segredo sem uma boa dose de privacidade? Pra poder conversar
com o sujeito em paz, ignorei o ditado da minha mãe e escrevi outra frase:
Reunião urgente na faculdade. Todos os professores convocados.
O celular tocou em seguida: a diretora da faculdade avisou que faria uma reunião em meia
hora e não queria saber de ausência, nem mesmo com atestado médico. Minha mãe não
tinha tempo para me dar uma carona e me pediu que levasse a urna para casa; num outro
dia com mais calma, a gente voltaria ao cemitério para espalhar as cinzas de vó Nina.
Não havia muitas árvores ao redor para quem pretendia bancar a espiã. Escondida atrás de
um cipreste magrelo, observei minha mãe se afastar com pressa e passar ao lado do homem
com o buquê de rosas vermelhas. Ele parou para dizer alô, mas acho que ela não ouviu.
O cemitério municipal tinha sido construído sobre um morro, por isso o cara levou um
tempo para alcançar o tumulo da minha família. Chegou lá em cima ofegante e, enquanto
recuperava o fôlego ficou alisando as letras de bronze do nome da minha avó. Depositou as
flores com os olhos baixos, como se pretendesse fazer uma prece, mas de repente tirou do
bolso uma gaita e começou a soprar.
A canção era triste e , mesmo sem letra, parecia falar de paixão. Quando ele parou de tocar,
eu não sabia se chorava ou se aplaudia. Optei por sair de trás do cipreste e me aproximei
para puxar conversa:
-Tava ali atrás, quietinha, escutando. Não queria interromper.
-Olá, Joana Dalva!- ele não parecia aborrecido. - Você gostou?
Não pude disfarçar o espanto.
-Como é que você sabe o meu nome?
-Primeiro a sua opinião. Sinceridade, hein?
-Gostei, sim. Meio triste, mas bonita.
-Fiz essa canção na noite em que conheci a sua avó. Chama-se Choro para a Nina.
-Quer dizer que você é compositor?
-Comecei tocando violão para conquistar o coração das garotas em noites de serenata. Só
depois de conhecer sua avó é que passei a curtir gaita, a flauta, o sax e outros instrumentos
de sopro. Acho que são os mais indicados para quem precisa desabafar.
-Vó Nina não me falou dessa música.
-Nem podia. Ela nunca ouviu.
Eu não estava entendendo nada:
-Mas você acabou de dizer que conheceu a minha vó.
Só vi de longe-ele suspirou. Eu estava em frente a casa dela, tocando violão com um grupo
de amigos e também com seu avô. Ele era muito desafinado e me pediu ajuda para fazer
uma serenata. Fiquei tão encantado com a Nina que cheguei a errar uns acordes.
Opa! Aquele história eu já conhecia. Mas queria saber com certeza que estava falando com
o personagem certo:
-Você, por acaso é o Henrique?
-Agora sou eu que me pergunto: como é que você sabe o meu nome?
-Minha avó dizia que vô Plínio tinha um ouvido péssimo, mas queria porque queria fazer
uma serenata pra ela e se reuniu com um grupo de músicos liderados por um tal de Henrique.
-E o que mais ela contou?
-No dia seguinte à serenata, vô Nina recebeu um buquê de rosas vermelhas e um cartão
com um poema. Ela era muito ligada nesse lance de grafologia e usava a letra para escolher
ou descartar os canditados... Como é mesmo que se falava antigamente?
-Pretendentes- disse Henrique, tolerante com a minha ignorância.
-isso mesmo. Meu avô era um desses pretendentes e mandou as rosas com uns versos. Todo
poema de amor tem a palavra coração, até aí nenhuma novidade, mas minha avó se
encantou pelo cedilha do cê e decidiu dar uma chance ao dono daquela letra.
Henrique me olhou sem piscas:
-olhe só que ironia! Quem mandou as flores fui eu.
Por essa, eu não esperava. Se a letra do cartão não era do vô Plínio, então quer dizer que a
minha avó... escolheu o pretendente errado?!
-Eu era um rapaz muito tímido-prossegui Henrique, e usava o violão como uma espécie de
escudo. Tão tímido que não tive coragem de assinar o cartão. Pouco tempo depois, soube
que Plínio estava noivo e ia se casar com Nina.
-E você- Pensei em voz alta - Guardou essa paixão no bolso?
-Naquela época, eu já ganhava a vida como musico e recebi uma proposta para me
apresentar no exterior. Dizem que o tempo cura tudo, até amores impossíveis, então resolvi
provar o remédio. Morei em muitos paises, toquei com artistas maravilhosos e conheci uma
porção de mulheres. Mas todas tinham o mesmo defeito, elas não eram a Nina.
Eu estava aflita para saber o fim da história e dei um salto no tempo:
-Minha avó ainda era nova quando ficou viúva. Você podia ter ido atrás dela.
-Fazia mais de um ano que seu avô tinha morrido quando eu soube da noticia. Minha
vontade era pegar o primeiro avião, mas eu estava no meio de uma turnê e não podia dar as
costas ao pessoal da banda. Então, escrevi uma longa carta para Nina contando que tinha
lhe mandado aquelas flores, que o poema do cartão era de minha autoria, que estava
disposto a abandonar carreira internacional e voltar ao Brasil para que a gente casasse.
Tentei encurtar o suspense:
-E aí?
-A minha carta tinha tantas páginas que estofou o envelope. A resposta, em compensação,
foi um bilhete escrito as pressas. Em meia dúzia de linhas, Nina disse que ainda amava
Plínio e não pretendia se casar de novo, muito menos com um violeiro desconhecido e
insistente.
-Vai me desculpar, Henrique. Duvido que minha avó fosse capaz...
-Também fiquei chocado e fiz uma nova tentativa. Mas a resposta foi parecida e terminava
com um pedido: se eu gostasse dela de verdade, nunca mais voltasse a lhe escrever.
Pedir desculpas pela minha avó? Achei que isso soaria ridículo e me limitei a baixar a
cabeça pra ouvir o ultimo capítulo:
-Voltei ao Brasil algumas vezes, mas nunca me atrevi a procurar a Nina. Medo de levar
outro fora, entende? Quando finalmente criei coragem, já era tarde demais. Sua avó tinha
adoecido e não reconhecia mais ninguém.
Dessa vez, não dava pra dizer ops e ser politicamente correta: aquele homem da terceira
idade era um velho sem nenhum eufemismo. Ele passou a mãe no rosto, deixando à mostra
a tatuagem da mão. Não a me contive:
-O que significa esse Z?
Henrique levantou a mão, virando a letra de lado:
-Isto é um N, Joana.
Pra disfarçar os lábios trêmulos, botou a gaita na boca e tocou mais um pedacinho de Choro
pra Nina. Por fim, apontou para a moldura oval pregada à cabeceira do tumulo, que
mostrava uma imagem antiga da minha avó.
-Se você não se importar, eu gostaria de continuar vindo aqui, de vez em quando, para
trazer umas rosas vermelhas e tocar um choro para ela...
-Foi minha mãe- esclareci- quem mandou pendurar essa foto. Mas vó Nina não esta
enterrada aí.
Abri a tampa da urna com cuidado e joguei uma pitada na mão do Henrique. Ele ficou tão
emocionado que nem conseguiu me agradecer. Juntou as cinzas com a ponta dos dedos e
guardou nos furinhos da gaita.
Depois da reunião convocada pela diretora da faculdade, minha mãe foi buscar Xandi na
escola e teve de enfrentar um engarrafamento que lhe tirou o humor pelo resto da semana.
Entrou em casa com a sua pior cara de TPM e foi direto para o chuveiro, alegando que
precisava de uma ducha para relaxar o corpo e a alma.
Meu irmão largou a mochila em cima do sofá, jogou os tênia para cima e invadiu a cozinha
com a delicadeza de um garoto das cavernas. Apesar de levar uma merenda reforçada,
costuma chegar da escola desatinado de fome e fazer uma vitamina misturando tudo o que
vê pela frente: leite com refri, mel com ketchup, chocolate em pó e farinha de aveia com o
resto da farofa do almoço. O resultado é uma pasta grossa que quase pifa o liquidificador –
sem falar, é claro, nos danos para o intestino. Mas não é sempre que Xandi consegue
engolir esse coquetel explosivo, Naquela tarde, por exemplo, ele não passou do primeiro
gole.
Eu estava no sofá da sala, tentando assistir um filme na tevê, no momento em que foram
acionadas as turbinas do liquidificador. Há barulho no mundo mais irritante? Nem motor de
dentista mexe tanto com os meus nervos. Fechei a porta da cozinha e aumentei o volume da
tevê, mas continuei com a impressão de estar vendo um filme do tempo do cinema mudo.
Pra meu desespero, o zumbido do liquidificador deu lugar a um acesso de tosse. Xandi
demorou a ficar quieto, mas o silêncio repentino me trouxe mais aflição do que alivio. E se
o meu irmão estivesse engasgado? Na duvida, fui até a cozinha e encontrei o garoto
respirando normalmente. Eu é que perdi o ar quando olhei para a mesa e vi que ele tinha
aberto a urna da minha avó.
Esse chocolate – ele disse – está estragado. Foi você que comprou?
Chocolate? Aquilo só podia ser um pesadelo.
-Você está insinuando... que usou esse pote para fazer vitamina?
- Só botei umas duas ou três colheres, mas achei o gosto uma droga.
Fui até mesa para fechar a urna – e descobri que estava vazia. Mal tive voz para perguntar:
-Cadê o resto?
Xandi respondeu com naturalidade:
- Joguei na pia, ora. Quem é que vai comer chocolate estragado?
Foi aí que o mundo desabou. Quando dei por mim, estava sacudindo o pescoço do meu
irmão e berrando que só um canibal idiota poderia confundir cinzas com chocolate e beber
a própria avó na vitamina. Ele não deve saber o que significa canibal, mas não gostou de
ser chamado de idiota e me agrediu com alguns palavrões que nem eu sei soletrar.
-Quero ver – rosnei – quando eu contar para a mamãe o que você fez.
Não foi preciso. De braços cruzados na porta da cozinha, ela acompanhava a discussão com
o cabelo arrepiado - só não sei se por causa do banho ou da raiva. Pensei que fosse praticar
um canibalismo sem metáforas, devorando Xandi vivo e cru, mas ela se limitou a lhe dizer
que não falasse palavrão. Virou-se para mim:
- Por que você não guardou a urna num lugar seguro?
Ao chegar do cemitério, fui à cozinha para tomar um suco e acabei esquecendo a urna em
cima da mesa. Tentei contar isso a minha mãe, mas ela não me deixou terminar e jogou
toda a culpa no meu colo:
- Se você não fosse tão desligada, Joana Dalva, as cinzas não teriam se perdido. E agora, o
que é que sobrou de sua avó?
Apelei para a minha literatura.
- Eu posso fazer uma frase...
- Já estou cansada dessa sua mania de escrever certo por linhas tortas – ela gritou. – Quem
você pensa que é para querer consertar o mundo?
Xandi sorriu, vitorioso, como se fosse o filho único. Saí da cozinha, me tranquei no quarto
e afundei o rosto no travesseiro.
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Poderosa 2 - Sergio Klein
Teen FictionEssa história não é minha , apenas a estou publicando aqui no Watts porque não a encontrei , espero que gostem 😘😙 Tudo o que ela escreve com a mão esquerda se transforma em realidade. Dar vida às palavras torna Joana Dalva uma pessoa especial...