No habitat natural dos amantes

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Senti um calafrio de arrependimento ao riscar o acento agudo em avó. Quem me garante,
afinal de contas, que chegarei sã e salva aos 70? Se nessa idade eu já estivesse morta, a
minha frase teria um efeito fatal e me reduziria... a um cadáver! Fico pensando na cara do
Uéslei ao deparar com um esqueleto embaixo da cama! Como os autores póstumos não
sabem escrever, eu não poderia usar a literatura pra voltar à vida e passaria o resto da
eternidade... basta!
Pra afastar os pensamentos fúnebres, fechei os olhos, respirei fundo e tentei visualizar
paisagens bucólicas que me ajudassem a res¬tabelecer a autoconfiança. Essas técnicas de
relaxamento me deixaram um pouco mais leve, mas confesso que fiquei assustada ao sentir
o corpo puxado pra cima. Ou o espírito? Sempre imaginei que levaria horas pra
desembarcar no além, mas de repente parei de subir e fui colocada no chão.
Finalmente, me animei a abrir os olhos e descobri que não estava na porta do Paraíso! No
lugar de São Pedra, encontrei Uéslei e corri para os braços da vó Nina. Ficamos as duas
encolhidas na cabeceira da cama, sob a mira dos olhos vermelhos de um funcionário
boquiaberto e fedendo a bebida.
Ele apontou para a minha avó:
- Eu não sabia que a senhora tinha uma irmã gêmea!
Ela, é claro, não disse nada - e muito menos eu! Irritado com
o nosso silêncio, ele grunhiu um palavrão e saiu do quarto cambaleando.
Não dá pra confiar em papo de bêbado, mas mesmo assim abri a gaveta do criado e tirei lá
de dentro um espelho. Fui obrigada, então, a concordar com Uéslei: minha imagem e minha
avó dividiam o olhar sereno, o cabelo ralo, quase transparente, a confusão de rugas ao lado
da boca e dos olhos. Passei o dedo no queixo e notei que a espinha intrusa tinha
simplesmente sumido. Minha pele, em compensação, ganhara a textura de papel reciclado.
Se eu pudesse mergulhar numa banheira transbordando de creme hidratante... Mas o asilo
não tinha nem sabonete. E aquele não era o melhor momento de cuidar da pele - o que eu
precisava era salvar a pele, isso sim!
Uéslei deveria estar no gabinete fofocando com a supervisora, que não tardaria a entrar no quarto pra conferir a novidade. O que ela diria ao encontrar duas velhinhas tão parecidas,
uma vestida com camisola e outra com uniforme de colégio?
O único esconderijo disponível era o guarda-roupa, habitat natural dos amantes pegos em
flagrante. Antes de trancar a porta, vó Nina me fez uma recomendação:
- Dê um jeito de controlar essa alergia, hein! Se tiver vontade de espirrar, enfie o nariz na
roupa.
Agachada entre lençóis e cobertores, procurei não pensar nos ratos, baratas e cupins que,
com certeza, me faziam companhia. Bendito o escuro que me livrava de enxergar essa
fauna - e, de quebra, aguçava a minha audição! Não demorei a ouvir a voz da Zoraide.
- E então, Uéslei? - ela berrou, mal-humorada, sinal de que tinha sido derrotada pelo
computador. - Só estou vendo uma velha dormindo.
- A outra - ele miou - estava aqui ainda agorinha. Será que ela fugiu pela janela?
- Quem vai cair da janela é você, rapaz, . , se continuar bebendo em serviço!
- Mas eu juro! Ela se meteu embaixo da cama e depois...
- Vamos ao que interessa. Na hora d, o almoço, quero que você passe no meu gabinete. É
preciso levar o resto das doações da escola.
A ordem não foi discutida. Pelo tamanho do silêncio, imaginei que a dupla tinha se retirado
e fiquei esperando que minha avó me libertasse. Ela abriu a porta do guarda-roupa e me
estendeu o bloco e a caneta:
- Chega de encrenca! Escreva aí qualquer coisa pra voltar à adolescência.
- Ainda não, vó. Só assim, na terceira idade, eu posso circular livremente pelo asilo fora do
horário de visita.
- Na terceira idade - advertiu -, ninguém usa uniforme de colégio.
Vó Nina tirou do guarda-roupa um vestido que pertencia a Adalgisa. O modelito lembrava
um saco de batatas cortado nas extremidades. Eu estava tão apressada que enfiei a cabeça
na cava da manga e, por um instante, pensei que fosse sufocar.
Suei pra sair daquele labirinto. Ao botar a cabeça pra fora do vestido, olhei para a porta do
quarto e dei de cara com Adalgisa:
- Você me desculpe - me apressei em dizer - por ter pegado o seu vestido...
Ela não reparou na minha roupa nem viu minha vó entrar no armário. Abriu a blusa onde
escondia o gato de pelúcia:
-Veja só o que eu achei atrás da lixeira do quintal. Aliás, quem achou foi a sua neta. Ela
ainda não passou por aqui?
Minha neta? Adalgisa, pelo visto, tinha me confundido com vó Nina. Eu estava perto do
guarda-roupa e ouvi uma risada lá dentro.
- Não tenho pontaria - disse Adalgisa - pra enfiar a linha na
agulha. Será que a senhora põe no lugar o rabo do meu gato?
Costurar não é a minha praia, mas gosto de trabalhos manu¬ais e aprendi com a vó Nina a
pregar botão, fazer bainha e executar pequenos reparos. Tudo isso é muito fácil, quase
automático, quando se tem a visão de adolescente. Eu tinha me esquecido, no entanto, de
que a partir dos 40 a maioria das pessoas sofre uma diminuição da capacidade de enxergar
de perto por causa da presbiopia, mais conhecida como vista cansada.
A minha, aos 70, parecia exausta! Sentada à beira da cama da vó Nina, botei o gato no colo
e constatei que o bichano estava meio embaçado. E não apenas ele: agulha e linha se
misturavam num único e indecifrável borrão.
Nesse instante, compreendi o que Adalgisa quis dizer com a expres¬são "olhos de
gelatina". Mas ela ainda enxergava melhor que eu:
A linha caiu na colcha, dona Nina. A senhora está segurando o rabo do gato, e isso nunca
vai entrar no buraco da agulha.
O riso contido de Adalgisa me fez perder a esportiva:
- Em vez de ficar aí parada, me azucrinando, por que você não dá um tempo?
Ela saiu depressinha do meu lado, deitou-se na cama e enfiou-se sob as cobertas.
Por que se diz que as agulhas têm buraco? O que eu via na minha frente era um orifício
microscópico! Pra dizer a verdade, eu não via nada, mas tateei até localizar a linha e tentei
em vão enfiá-la na agulha.
Já estava prestes a atirar o gato pela janela quando ouvi uma voz conhecida:
- Acho que você precisa de óculos. Se quiser, posso emprestar os meus.
Ao erguer os olhos, dei de cara com Henrique. Ele falou com a mão no meu queixo:
- Bem que a Joana me disse! Eu jurava que a sua neta estava debochando de mim!
Mais um que não sabia distinguir avó e neta. Eu tinha de des¬fazer o mal-entendido:
- Espere aí. Eu não sou quem você está pensando.
- Pra mim, Nina, você é a mesma. É como se eu tivesse 20 anos e estivesse tocando violão
debaixo da sua janela.
- Não é isso - insisti. - O que estou querendo dizer...
Ele não me escutou:
- Aquela serenata me tirou o sono. Passei a noite tentando me convencer de que estava
agindo como um idiota, que não existe amor à primeira vista, que o Plínio tinha me
chamado para tocar violão, não para ficar olhando para a namorada dele. Mas essa lógica
não funcionou. Você e o Plínio ainda não estavam namorando, não oficialmente, portanto
eu tinha todo o direito, ou melhor, tinha o dever de me comportar como um idiota
romântico.
De que jeito contar àquele homem que ele estava se declarando para a mulher errada? Era
impossível interromper Henrique:
- No dia seguinte, fui à floricultura e escolhi, uma por uma, as rosas mais vermelhas. A
balconista me perguntou: "É para entregar?" Eu disse: "Pode deixar, que eu mesmo levo".
Mas, quando o buquê ficou pronto, a coragem tinha evaporado. E se você não gostasse de
rosas? Ou me mandasse sumir da sua vida? Ou nem quisesse me receber? Pedi à moça que
fizesse a entrega e, por timidez, nem assinei o cartão.
Adalgisa continuava deitada, mas de repente virou-se para a parede. Tão estranho aquele
sono súbito em plena hora do almoço! Henrique balançou a cabeça:
- Essa timidez acabou me levando a abandonar o país. Viver de música no Brasil nunca foi
fácil, ainda mais durante o período da ditadura militar. O exílio era a única saída para
muitos artistas e inte¬lectuais, mas eu confesso que não fugi apenas por causa da política.
O que me fez ir embora, Nina, foi a notícia de que você e. Plínio estavam namorando.
Como se dizia no nosso tempo, namorando firme!
Parece que a conversa estava incomodando Adalgisa. Ela tapou a cabeça com as cobertas,
mas nem por isso Henrique se calou:
- O resto você já sabe. Contei tudo nas cartas que te mandei quando soube da morte do
Plínio.
O rangido de uma porta quebrou o silêncio - a porta do guarda¬-roupa. Minha avó saiu lá
de dentro perguntando:
- Carta? Que carta? Do que é que vocês estão falando?
A primeira reação de Henrique foi tirar os óculos - como se a imagem estivesse duplicada
por um defeito de fabricação das lentes. Tinha um olho na minha avó e outro em mim. Na dúvida, dirigiu-se às duas:
- Qual de vocês é a Nina?
Minha avó levantou o braço. Henrique apontou pra mim:
- E essa aí?
- Uma parente - ela disse. - E o senhor?
Ele riu de nervoso.
- Meu nome é Henrique, você não se lembra? Nas cartas...
- Lamento - cortou vó Nina. - Mas não recebi nenhuma carta. Não sei qual dos dois estava
mais confuso. Henrique tirou um envelope do bolso:
- Como não? Olhe aqui a sua resposta.
Vó Nina tirou o papel do envelope e se aproximou da janela. Se isto fosse um filme, e não
um diário, a câmera mostraria os olhos úmidos da minha avó percorrendo as letras pra lá e
pra cá, ao som do Choro para Nina. Mas a cena foi bem real e teve outra trilha sonora: o
choro abafado que vinha de baixo do lençol da Adalgisa.
- Esta letra não é minha - declarou vó Nina, ao terminar a lei¬tura. - Eu posso não ser
escritora, como a minha neta, mas jamais cometeria tantos erros.
Tonto por causa da revelação, Henrique se apoiou na parede: - Quer dizer que alguém
mandou as cartas em seu nome?
- E ainda copiou a minha assinatura - informou vó Nina. – Uma falsificação grosseira! Meu
nome não tem acento no i.
Nunca vi minha avó tão nervosa. Ela se aproximou da cama da Adalgisa e arrancou o
lençol com um puxão.
- Então foi pra isso - sacudiu a carta - que eu te ensinei a escrever?
Adalgisa tentou escapar do quarto, mas vó Nina a deteve pelo braço:
- Onde você pensa que vai?
- Fazer xixi.
- Por que não me mostrou esta carta?
- É sério, hein! Eu vou fazer na calça.
Fiquei com dó de ver a outra se contorcendo com as mãos entre as pernas:
- É melhor deixar a Adalgisa ir ao banheiro.
Vó Nina não se comoveu:
- Só depois que ela me responder.
Adalgisa não tinha saída e acabou se entregando:
- Quando fui morar na sua casa, dona Nina, eu não sabia ler nem escrever. Mas a senhora
teve paciência e me ensinou a juntar as letras. De manhã cedo, eu buscava a
correspondência na portaria do prédio e entrava na sala lendo em voz alta os envelopes. Pra
mostrar que eu tinha aprendido, entende?
Parou um instante pra tomar fôlego e enxugou os olhos no lençol.
- Até que um dia chegou um envelope... enviado por um tal de Henrique. Cá entre nós,
sempre fui cismada com o H. Por que a gente tem de desenha uma letra que, sozinha, não
tem som de nada? Outra coisa: o envelope era gordo e pesado, todo colorido de selos e
carimbado com umas palavras que eu não conseguia ler. Fiquei um tempão na dúvida, sem
saber se entregava ou se abria, e resolvi dar uma olhadinha. A carta era de um músico que
vivia em outro país e queria levar a senhora pra morar com ele.
Henrique levantou as mãos:
- Que história é essa, dona? O que eu disse foi justamente o contrário: se a Nina quisesse,
eu largaria a carreira no exterior e voltaria voando para o Brasil.
Adalgisa não mudou de tom:
- Isso era o que estava no papel. Mas quem garante que, com aquela conversa mole, você
não ia convencer a dona Nina a viajar? Uma mulher apaixonada é capaz de tudo!
A resposta de Henrique morreu na garganta. Vó Nina tomou a palavra:
- E se eu quisesse viajar? Você não tinha nada que se meter na minha vida!
A vontade de fazer xixi reduzia a voz de Adalgisa a um sopro:
- Tive medo de ficar sozinha. Foi por isso que escrevi pra ele fingindo que era a senhora e
dizendo que não queria casar de novo. Logo depois, chegou outra carta, que eu respondi do
mesmo jeito. Aí eu pensei: esse cara não vai desistir. Antes que a verdade aparecesse, juntei
as minhas trouxas e sumi no mundo.
Não é à toa que chamam o destino de irônico: por medo de ser abandonada, Adalgisa
abandonou o lar onde era tratada como filha. Ela falou com os dedos na boca:
- O que a senhora vai fazer comigo?
- Não sei - disse minha avó. - Acho que tenho o direito de te estrangular.
- Mas antes eu posso ir ao banheiro?
Depois que Adalgisa escapuliu do quarto, vó Nina virou-se para Henrique:
- Então foi você quem me mandou aquelas rosas?
Henrique confirmou com a cabeça. Pra provar que não estava blefando, tirou do bolso uma
caneta e escreveu a palavra coração no envelope. Vó Nina reconheceu o cê-cedilha pelo
qual tinha se encan¬tado e disse que nunca poderia imaginar...
O resto não deu pra ouvir. Achei melhor sair do quarto e deixar os dois enfim sós.
Ao botar os pés no corredor, descobri que Henrique não era o único a ignorar o horário de
visita. Eu caminhava em direção ao refei¬tório, tentando me camuflar entre os internos,
quando passei por um garoto com idade pra ser meu neto.
João apontou pra mim:
- Joana... Dalva?
Procurei andar mais depressa, mas ele parou na minha frente:
- Não adianta negar. Eu sei que é. você.
- Eu tive de me disfarçar - expliquei - pra circular à vontade pela clínica.
- A gente precisa conversar.
Soltei um suspiro de resignação:
- O que é que você quer com uma velha? No seu lugar, eu iria atrás da Dany. Ela é loura,
adolescente e tem corpo de manequim!
- Deixe de ser boba, Joana. Eu só ajudei a Danyelle porque ela estava desmaiando.
- E tinha de pegar a garota no colo?
João não perdeu o bom humor:
- Quer saber? Você está falando como uma velha rabugenta!
Poderia ficar ofendida, mas achei que ele estava certo e soprei-lhe a franja pra selar a paz.
- Me dê um tempo, João, que eu já volto. Vou buscar uma caneta e escrever uma frase pra
voltar a ser uma garota.
- Não precisa - ele disse. - Você é bonita de qualquer jeito.
- Que é isso, João? Eu já me olhei no espelho. Estou cheia de rugas, não enxergo direito,
minha pele é uma lixa...
Ainda tinha de falar na flacidez do pescoço e na dificuldade de caminhar sozinha, mas
deixei as reclamações de lado quando João me abraçou. O rosto dele se aproximou do meu
e aos poucos foi perdendo o foco até ficar completamente embaçado. Fechei os olhos e, na
minha idade, ganhei um beijo de cinema!
Boa parte dos internos já havia entrado no refeitório; o corredor estava quase vazio.
Maldito quase! Abrindo os olhos, avistei Uéslei e tive de agüentar uma bronca:
- Era só o que faltava! A dona Zoraide vai gostar de saber que eu vi essa velha beijando um
moleque...
Enquanto o dedo-duro do Uéslei seguia até o gabinete, João e eu corremos para o refeitório
e descobrimos uma janela que dava para o jardim. Tudo o que tínhamos a fazer era pular na
grama, mas quando olhei lá pra baixo vi o mundo girando no redemoinho da vertigem. Não
que a janela fosse muito alta: um metro e meio, talvez nem isso! Mas não podia mais contar
com o meu corpo de adolescente. Eu me sentia à beira de um precipício e não estava
disposta a praticar body-jumping.
Henrique procurou me tranqüilizar:
- Vamos lá, Joana. Eu te ajudo. A gente pula de mão dada.
- Quero escrever uma frase - choraminguei - pra ter 13 anos de novo.
O medo só foi embora - ao menos por um instante - quando ouvi os berros da supervisora.
Subi no parapeito com a ajuda do João e saltei de olhos fechados.
Por sorte, caí num canteiro de hortênsias e continuei deitada, na mesma posição, conferindo
os ossos pra saber se não faltava algum pedaço.
No gabinete, logo acima do jardim, Zoraide não perdia a oportunidade de humilhar o
motorista:
- Quer dizer que um garoto invadiu o asilo e deu um beijo na boca de uma velha? Só
mesmo você, Uéslei! Isso se chama delirium tremens, sabia? A bebida está derretendo o seu
cérebro.
Uéslei começou a gaguejar, mas Zoraide mandou que ele calasse a boca.
- Depois do almoço, começa o horário de visita - ela disse. - É melhor você levar essas
caixas antes que apareça algum bisbilhoteiro.
João e eu nos escondemos atrás de um arbusto e vimos Uéslei carregar a caminhonete
estacionada do outro lado da rua. Dali a pouco, ele sentou-se ao volante e tentou dar a
partida. O motor se comportava como um dragão, rugindo e soltando fumaça, mas na
última hora apagava. Eu não podia desperdiçar aquela chance:
- A gente tem de entrar na caminhonete, João. É o único jeito de descobrir o endereço do
depósito.
João não entendeu uma palavra: do que é que eu estava falando? Eu disse que não havia
tempo pra explicações; queria apenas que confiasse em mim. Ele me chamou de "sua velha
maluca", mas atravessou a rua de mão dada comigo. Protegidos pela fumaça que saía das
ventas do dragão, pulamos na carroceria no instante em que o motor resolveu funcionar.
A lentidão do trânsito transformou Uéslei num psicopata. Ele cortava os carros pelos dois
lados, ignorava o sinal vermelho e invadia a contramão sem a menor cerimônia. Pegar
carona nessas condições não é muito divertido - sobretudo se você não tem seguro de vida e
está viajando clandestina na carroceria de uma caminhonete caindo aos pedaços, no meio
de caixas de papelão que ficam dançando de um lado pra outro.
Depois de rogar a Santa Joana d' Arc, minha querida quase xará, que me ajudasse a sair
viva daquela lata-velha, contei a João como vó Nina voltara a viver e por que se mudara
para a clínica. Ele ficou mais impressionado, no entanto, ao saber que as doações
destinadas aos internos eram levadas para um depósito e em seguida comercializadas por
uma quadrilha chefiada pela supervisora.
- Onde é que a gente vai se esconder - perguntou João - na hora de descer da caminhonete?
Sou obrigada a admitir que não tinha pensado nesse detalhe... e nem tive mais tempo de pensar!
O carro reduziu a velocidade e parou diante de uma mansão de dois andares. Uéslei deve
ter apertado o botão do controle remoto, pois o portão eletrônico da garagem começou a se
abrir lentamente. Havia tempo de sobra pra escapar da carroceria - se eu não tivesse ficado
tão nervosa e prendido o pé debaixo de uma caixa. De nada adiantou pedir a João que
fugisse sem mim e procurasse ajuda; ele se negou a me largar na companhia de um
bandido. Quando conseguiu libertar o meu pé, já estávamos dentro da garagem.
Uéslei desceu da caminhonete, tirou do bolso um molho de chaves e desapareceu por uma
escada. Percebi que ele tinha subido pra abrir uma porta e, mais que depressa, saltei da
carroceria com a ajuda do João. Agachados atrás de uma trincheira de pneus, vimos o
grandalhão retornar à garagem, botar as caixas no ombro e levá-las para o andar de cima.
Achei que ele voltaria imediatamente para a clínica, deixando-nos à vontade pra espionar a
mansão e perseguir as possíveis provas das falcatruas da Zoraide. Acontece que o cara não
tornou a descer. João e eu esperamos uns bons quinze minutos antes de sair de trás dos
pneus e, pisando em ovos imaginários, subimos os treze degraus da escada que dava acesso
à entrada de serviço.
o meu Sherlock Holmes merecia um beijo após essa demons¬tração de inteligência e
perspicácia, mas o romantismo foi quebrado pelas gargalhadas do Uéslei. Ele estava do
outro lado da sala, de frente para a tevê e de costas para a porta da cozinha. Tinha numa das
mãos um copo de cerveja e, na outra, o controle remoto.
O motivo do riso era um desses programas de pegadinhas que escolhem as vítimas no meio
da rua e confundem humilhação com humor. Aproveitando a distração de Uéslei, sugeri
chamar a polícia e apontei para a mesinha onde ficava o telefone.
Eu mesma pretendia ligar, mas João passou na minha frente, fez ziguezague entre as caixas
e digitou os algarismos que poderiam ser a nossa salvação.
Poderiam! Enquanto esperava a ligação se completar, ele teve a infeliz idéia de enrolar o fio
no dedo e acabou derrubando o telefone.
Uéslei saltou da poltrona e alcançou facilmente o garoto, amarrando-o com um pedaço de
barbante de uma das caixas de papelão. Eu tinha recuado até a cozinha e, escondida atrás da
geladeira, vi João ganhar um soco na boca quando gritou por socorro. Amordaçado com
fita-crepe, foi levado aos empurrões até a sala e derrubado perto da tevê.
- Agora você fica aí - disse Uéslei, acomodando-se outra vez na poltrona - que eu quero
terminar de ver o meu programa. Daqui a pouco, eu ligo para a patroa. Você não imagina
como ela adora visita!
Eu não podia me dar ao luxo de continuar refugiada atrás da geladeira. Apesar da
tremedeira nas pernas, fui até a mesinha do telefone e tirei o aparelho do chão. Ignorava o
nome daquela rua, mas tinha uma noção de onde estava e poderia explicar à polícia como
chegar à casa da Zoraide. O único problema é que eu não sabia o número. Ligar para o
serviço de auxílio à lista? Desse, eu também não me lembrava. Se ao menos pudesse
consultar um catálogo! Mastudo o que havia na mesinha era um bloco de recados e uma
caneta, portanto não seria possível...
Espere aí! Bloco e caneta? Do que mais eu precisava pra pedir ajuda?
Bastava juntar algumas palavras - A polícia vai chegar agora e nos salvar desses bandidos
- pra escapar daquele pesadelo e botar a quadrilha da Zoraide atrás das grades.
Infelizmente, só tive tempo de escrever o sujeito da frase. Antes que eu chegasse ao
predicado, a dona da casa abriu a porta da sala.

Poderosa 2 - Sergio KleinOnde histórias criam vida. Descubra agora