Como escapar de um gigante com pernas de poste? Meus tapas atingiam a barriga do Uéslei
e foram recebidos como cócegas. Ele também me amarrou com barbante e me atirou ao
lado do João. Não se lembrou, no entanto, de me amordaçar.
- Foram esses dois - disse à patroa - que eu peguei lá no asilo, aos beijos. A velha é irmã
gêmea da outra.
- Não me interessa - a voz de Zoraide indicava TPM. - Quero saber é como eles vieram
parar aqui.
- Sei não... Devem ter vindo na caminhonete.
- Por causa da sua incompetência! Quantas vezes eu já lhe disse pra não entrar na garagem
sem conferir a carroceria?
Os hormônios da Zoraide fervilhavam. TPM, sem dúvida. E das bravas!
- Mas eu peguei o garoto - lembrou Uéslei.
- Grande coisa! - ela rosnou. - Se eu não tivesse chegado a tempo, a velha ia ligar para a
polícia. Enquanto isso, você se divertia com aquele programa imbecil e se entupia de
cerveja!
A tevê continuava ligada, mas Zoraide se apossou do controle remoto e ficou pulando de
canal em canal até estacionar num documentário sobre obesidade. As imagens de uma
operação de redução de estômago não tiraram o apetite da supervisora. Ela ordenou ao
motorista que ligasse para o restaurante Itália em Fatias e encomendasse uma pizza de um
giga com as bordas recheadas de catupiry. Metade calabresa, metade chocolate.
Uéslei arriscou um protesto tímido:
- De novo, patroa? A senhora devia variar um pouco. Esse negócio de almoçar pizza todos
os dias...
- É problema meu - ela completou. - Você não tem nada que dar palpite.
A mistura de fome com TPM fazia Zoraide caminhar de um lado pra outro, tropeçando nos
produtos espalhados pelo chão e perguntando por que tanta demora na entrega da pizza. Por
acaso eles estavam matando o porco pra fabricar a lingüiça?
Quando chegou o motoboy, Uéslei já havia preparado a mesa segundo as instruções da
Zoraide. Ela era obcecada por simetria e exigiu que o prato fosse colocado entre o garfo e a
faca.
Mas a neurose não parava por aí: o guardanapo tinha de ser dobrado em forma de triângulo
retângulo, com a hipotenusa paralela à borda da mesa; pra completar o ritual, a lata de
azeite, o tubo de ketchup e o vidro de mostarda foram dispostos por ordem de tamanho, do
maior para o menor, numa escadinha que terminava com um copo de refri no qual boiavam
duas pedras de gelo.
O motorista virou garçom, serviu um fatia de pizza à madame e desejou-lhe bom apetite!
Foi nesse instante que cochichei:
- E agora, João? Como é que a gente vai sair dessa?
A mordaça impedia a resposta, óbvio. De mãos atadas, arranquei com os dentes a fita-crepe
que cobria a boca do João.
- Valeu, Joana - ele me agradeceu com um selinho. - Você está bem?
- Ótima - menti. - Tirando o ronco do estômago...
- Também estou morrendo de fome. Você acha que sobra um pedaço de pizza pra gente?
Tentei disfarçar o pessimismo com um sorriso, mas apostava que Uéslei ficaria com toda a
sobra. Zoraide virou-se para o empregado:
Tinha mais alguém na carroceria?
- Claro que não - ele afirmou, sem muita certeza. - Era pra ter?
Zoraide tomou um gole de refri antes de se explicar:
- Logo depois que você saiu, um casal foi ao meu gabinete em busca de ajuda. Lembra
aquela aluna que desmaiou no banheiro ontem de manhã? Pois ela fugiu da escola. Os pais
não sabiam mais onde procurar e acharam que a maluca poderia estar escondida no meio
dos internos. Tem cabimento? Eu disse, que a nossa clínica não abriga adolescentes, mas a
mãe me entregou uma foto da filha e me pediu pra avisar se ela aparecesse.
Meus pais, pelo visto, não chegaram a entrar na clínica. Isso significa que eles não se
encontraram com a vó Nina.
- Que olho mais arregalado! - disse Uéslei, examinando a foto que Zoraide lhe entregou. -
Cara de maluca de hospício!
Motivo não me faltava pra ceder ao desespero, mas o comentário de Uéslei me deu vontade
de rir. A graça terminou, no entanto, quando Zoraide fez a pergunta que eu temia:
- Como é que a gente vai se livrar desses dois?
Tão logo a patroa levantou-se da mesa, Uéslei avançou num pedaço de pizza e respondeu
com a boca cheia:
- Isso é fácil. Eu conheço aí um mano que pode resolver essa parada.
- Mas que mano? Eu não quero confusão pro meu lado!
- Serviço de primeira - Uéslei lambeu os dedos. - O cara é profissional.
- Olha lá, hein! Na semana passada, eu li no jornal que a polícia tinha achado um cemitério
clandestino. Qualquer corpo, hoje em dia, pode ser identificado com um simples exame de
DNA.
Uéslei abocanhou outra fatia de pizza e puxou a mussarela com os dentes. Falou como se
estivesse mascando chiclete:
- Enterro dá muito trabalho. É muito mais fácil botar fogo no infeliz e depois usar as cinzas
como adubo.
Será que o último pedido da vó Nina seria atendido com as minhas cinzas?
João procurou me acalmar:
- Isso é teatro, Joana. Eles só estão falando assim pra deixar a gente assustado.
Eu queria muito acreditar nessas palavras, mas a minha intuição é realista e via uma dupla
de assassinos planejando a execução diante das próprias vítimas.
Zoraide tinha de voltar à clínica, mas antes de sair de casa fez mil e uma recomendações a
Uéslei: que não tornasse a beber cerveja, não abrisse a porta pra ninguém, prestasse atenção
no garoto e na velha e não deixasse que eles, quer dizer, que a gente ficasse sem comida.
Uéslei respondeu "sim, senhora" e levou Zoraide até o portão. Livre da patroa, abriu mais
uma garrafa de cerveja e sentou-se à cabeceira da mesa como se fosse o dono da casa.
Eu não estava com cabeça pra assistir à tevê, mas não queria ficar pensando na hipótese de
ser morta e queimada, ou, quem sabe, queimada viva, por isso tentei me distrair com o
documentário sobre obesidade.
Terminada a cirurgia de redução de estômago, a câmera saiu de dentro da barriga da
paciente e deu um close na apresentadora, uma gordinha que leu com água na boca a lista
de alimentos proibidos pra quem deseja seguir uma dieta saudável.
Os médicos entrevistados falaram de alguns distúrbios alimentares, como anorexia e
bulimia, e mostraram garotas que pareciam saídas de campos de concentração. A força das
imagens varreu o resto do meu ciúme:
- Tomara que a Dany esteja vendo este documentário. É assim que ela vai ficar se continuar comendo vento.
O papo sobre dietas não foi bem digerido por João. Ele protestou com um berro:
- Eu estou com foooooooooome!
Uéslei saiu da mesa com um triângulo de pizza pendurado nos dedos:
- Ué, garoto! Cadê a sua mordaça?
- Tirei com a língua - respondeu João. - Eu estou com fome. - Você já disse.
- Então? Me dá uma fatia.
- Sem chance... Esta aqui, ó, é a última. A mais gostosa de todas!
Eu não estava em posição de fazer ameaças, mas mesmo assim procurei intimidar Uéslei:
- A sua patroa mandou dividir a pizza com a gente. Se você comer tudo sozinho...
Ele não me deixou terminar:
- Escuta aqui, dona. A Zoraide não mandou dividir porcaria nenhuma. A ordem foi pra não
deixar vocês sem comida.
Após engolir o último pedaço, Uéslei foi até a cozinha e trouxe biscoitos cream cracker.
Largou a lata no chão, bem na minha frente. - Ei, rapaz - eu disse. - Você não está se
esquecendo de nada? - É verdade - ele voltou à geladeira e abriu outra cerveja. João soprou
a franja e recomeçou a gritar:
- Ela está falando do biscoito. Não dá pra comer com as mãos
amarradas nas costas!
- Problema seu, moleque. E acho bom você baixar a crista, senão eu tapo a sua boca com o
meu cinto. Quero ver se tem força na língua pra se livrar de uma mordaça de couro...
Uéslei se jogou na poltrona e batucou no controle remoto da tevê até encontrar o canal que
buscava: duas mulheres seminuas, uma loura e outra morena, trocavam unhadas e puxões
de cabelos num ringue cheio de espuma.
Como é que alguém pode se divertir com um programa desse nível?
Pedi a João que se controlasse e fiquei de olho na tevê. Assim que soou o gongo, as
lutadoras sentaram-se em cantos opostos do ringue pra ouvir as instruções dos respectivos
treinadores.
Foi durante esse intervalo que implorei:
- Por favor, Uéslei, me solta um pouquinho. Eu só quero pegar
uns biscoitos...
Ele me olhou com desconfiança, mas felizmente chegou à con¬clusão de que eu era uma
velhinha inofensiva. Arrancou o barbante das minhas mãos e voltou a pregar os olhos na
tevê.
Enquanto Uéslei torcia para a loura esmurrando os braços da poltrona, eu me alimentava e
ao mesmo tempo dava comida na boca de João. Não é nada fácil tratar de um adolescente
faminto; se eu não ficasse esperta, ele era bem capaz de me morder os dedos. O garoto
comia com tanta pressa que quase ficou entalado. Pedi licença pra buscar um copo d' água
na cozinha, mas o grandalhão não queria me perder de vista:
- Na mesa da sala, tem um pouco de refri. Dá pra você e pro seu amiguinho.
- Biscoito seco me provoca azia - reclamei. - Será que eu posso passar ketchup?
Uéslei deve ter achado que o meu estômago estava gagá, mas limitou-se a uma careta de
nojo e voltou a se concentrar na luta. João bebeu um pouco de refri e comentou que biscoito
e ketchup não nasceram um para o outro.
- E quem disse - sussurrei - que ketchup só serve pra comer?
Sacudi o tubo, abri a tampa e comecei a escrever no tapete. Dessa vez, pra ganhar tempo,
resolvi seguir o conselho de Drummond: escrever é cortar palavras. Pra que perder tempo com uma frase comprida como A polícia vai chegar agora e nos salvar desses bandidos, se
posso dizer o mesmo com A polícia vai nos salvar?
O ketchup estava no fim. Por mais que eu espremesse o tubo, a tinta terminou logo depois
do verbo. O resultado - A polícia vai - não significava nada. Vai fazer o quê? Em que lugar?
Pensei em buscar o vidro de mostarda, mas nesse instante a luta terminou - com a vitória,
por nocaute, da morena. Uéslei levantou-se da poltrona xingando e ficou ainda mais furioso
ao ver o tapete manchado:
- Mas o que é isso, dona? Olha só que meleca!
- É que eu não estou enxergando bem...
- A senhora tem idéia de quanto custa um tapete persa?
- Não se preocupe. Eu sou especialista em tirar manchas. Só preciso de um pouco de
detergente.
Minha intenção era ir até a cozinha e vasculhar a despensa, à procura de algum produto de
limpeza que me permitisse completar a frase. Mas Uéslei me mandou ficar quieta e tornou a
me amarrar as mãos. Passou um bom tempo esfregando o tapete; sem conseguir remover a
mancha, decidiu tapá-la arrastando a poltrona.
Foi uma tortura passar a tarde com o nariz espremido contra o tapete (persa ou não, que me
importa?) e as mãos amarradas às costas. Mas nada pior que a tortura mental. Depois de ver
uma dupla de anãs lutando contra uma ex-jogadora de basquete, Uéslei desligou a tevê e
tirou O celular do bolso. Não disse alô nem se identificou: apenas avisou a um tal de Baby
que tinha "uma encomenda urgente, uma velha e um garoto, os dois magrinhos, pouco
trabalho e pouca cinza".
João me olhou em pânico: não dava pra continuar apostando que aquilo era só teatro. Uéslei
falava manso, mas de repente mudou de tom: "Você pirou? Onde é que eu vou arranjar essa
grana?" Estava tratando, sem dúvida, do preço da nossa execução. Parecia ofendido e
ameaçou desligar, mas logo, logo se animou de novo. Teria ganho um desconto? Admitiu,
por fim, que o plano era perfeito e prometeu conversar com a patroa.
Zoraide chegou à tardinha e contou que recebera um telefonema da mãe do João: Salete
também estava à procura do filho e queria saber se, por acaso, ele não tinha aparecido na
clínica.
- Coitada! - Uéslei prendeu o riso. - Essa pobre mãe desesperada precisa receber notícias do
filhinho.
- Você bebeu de novo - disse Zoraide. - Eu vou botar um cadeado na geladeira!
Uéslei falou pausadamente pra mostrar que estava sóbrio:
- Já dei um toque pro Baby, o mano que vai fazer o serviço. Só falta acertar uns detalhes...
- O preço - adivinhou Zoraide. - Quanto é que ele quer?
Não tive como saber o valor, sussurrado no ouvido da Zoraide.
- Que roubo! - ela fez um gesto largo em direção à sala. - Nem se eu vendesse essa tralha à
vista!
- É por isso que eu disse, patroa: a mãe do garoto precisa ser avisada. Ela deve estar tão
aflita que vai pagar qualquer resgate. Uma parte é nossa, quer dizer, sua. E a outra fica com
o Baby.
Então, era esse o plano: o assassino das Vítimas seria pago com o dinheiro do resgate!
O elogio da Zoraide teve sabor de deboche:
- É, Uéslei. Você não é tão estúpido quanto parece...
- Bondade da senhora - ele agradeceu, sem coragem de informar
que a idéia era do Baby.
Só tem um problema: quem é que vai negociar o resgate? A mãe do garoto conhece a
minha voz. E você, bem, você trabalha comigo e poderia me envolver.
A solução estava na ponta da língua:
- O preço do Baby pode ser salgado, mas é ele quem faz todo o serviço: negocia o resgate,
apanha o dinheiro, apaga a vítima, prepara o churrasco e espalha as cinzas.
O kit é completo!
Zoraide pensou um pouco antes de tomar a decisão:
- Tudo bem, pode chamar o Baby. Mas primeiro ligue para a Itália em Fatias.
- Ah, não! - choramingou Uéslei. - Eu não agüento mais comer pizza.
- Depressa, que eu estou com fome. Metade calabresa, metade chocolate. E com as bordas
de catupiry.
O motoboy tinha acabado de fazer a entrega quando Baby chegou à casa da Zoraide. Cheiro
de pizza de chocolate vira a cabeça de qualquer mortal, mas o homem alegou que à noite
faria outro serviço e não gostava de atirar com a barriga cheia.
Homem? Apesar da voz grossa e das olheiras, Baby tinha a aparência de um garoto que
ainda não entrou na adolescência: o rosto livre de espinhas, nenhuma sombra de penugem
no queixo e muito menos debaixo do nariz. A roupa acentuava o ar infantil: bermuda no
meio da canela, camiseta engolindo os cotovelos, boné com aba virada pra trás e tênis de
grife sem cadarços nem meias.
Baby não tinha idade nem pra ser trombadinha, quanto mais seqüestrador! Mas confesso
que fiquei em pânico quando ele me encarou. Como explicar o que havia no olhos do
homem, digo, do menino que iria me matar? Não vi ódio, nem tristeza, nem ganância, nem
medo.
Em resumo, nada! Nem mesmo indiferença. Era como se os olhos fossem de vidro!
Em vez de falar diretamente com João, Baby usou Uéslei como intérprete:
- Qual o nome do garoto?
Uéslei repetiu a pergunta, mas João recusou-se a responde. Baby tirou do bolso da bermuda
uma espécie de faca mecânica; ao pressionar um botão, a lâmina brotou de dentro do cabo.
O silêncio, àquela altura, seria suicídio.
- Júnior – eu disse. – Ele é conhecido como Júnior.
Baby virou-se outra vez para Uéslei:
- E o nome do pai?
Quem respondeu foi Zoraide:
- Acho que ele não tem pai.
- Tenho sim! – João protestou. – Só que ele não mora com a minha mãe.
- Ela se chama Salete – continuou Zoraide – e é dona do melhor salão de beleza da cidade.
Deve ter dinheiro de sobra pra pagar o regaste.
Os olhos de vidro se voltaram pra mim:
- E a velha? É avó do garoto?
Uéslei não resistiu à fofoca:
- Acho que são namorados... Vi os dois dando um beijo na boca, você acredita?
Baby não fez comentários. Apenas mais uma pergunta:
- Qual o telefone do Salão?
A informação estava disponível nas páginas amarelas do catálogo telefônico, por isso João
recitou o número pra acabar de uma vez com aquele tormento. Zoraide mostrou a mesinha
onde ficava o telefone, mas Baby preferiu usar o próprio celular. Mandou, por fim, que eu
fosse amordaçada. E o Júnior? – perguntou Uéslei, enquanto tapava minha boca com fita-crepe.
- Só a velha – disse Baby.
Pressionando o botão da faca, ele fez a lâmina sumir dentro do cabo. Agachou-se ao lado de
João.
- Vou deixar você falar com a sua mãe, moleque. Mas presta atenção. Você vai dizer:
‘’Mamãe, me socorre. ’’ Nem mais uma palavra. Se tentar alguma graça, eu aperto o botão
da faca e faço um piercing no pescoço da sua namoradinha, entendeu bem?
João sacudiu a cabeça. Baby ordenou:
- Então repete! Vamos ver se você aprendeu.
- Mãe – soprou João
- Mamãe – Baby corrigiu. – Eu quero ouvir ‘’mamãe’’.
- Mamãe, me socorre.
- Mais emoção, garoto. É a última vez que você vai falar com alguém da família!
Depois de obrigar João a repassar o texto várias vezes, Baby encostou o cabo da faca no
meu pescoço e telefonou para o salão:
- Salete? Um momentinho, só. Tem uma pessoa que quer falar com você.
Botou o celular na orelha do João, que ficou engasgado e começou a chorar. Assim que o
garoto pediu socorro, Baby mandou Uéslei amordaça-lo e deu início a negociação:
- Quer ver o seu filho de volta? Então, Salete, vai ter de pagar. E eu só espero até amanhã.
Se o dinheiro não aparecer, o Júnior e a namoradinha dele vão ser felizes pra sempre no
inferno.
Seguiu até a cozinha para poder conversar à vontade – ou para aumentar o valor do resgate
e lucrar mais do que tinha combinado com Zoraide? Dali a pouco, voltou à sala e anunciou
que a Salete tinha mordido a isca.
- Por enquanto, eles ficam aqui – apontou na nossa direção. – Tenho umas contas pra
acertar agora à noite, mas venho buscar os dois ainda hoje.
A caminha da porta, tropeçou numa caixa e tirou lá de dentro um walkman. Foi a primeira e
única vez que eu vi algum brilho nos olhos de Baby. Ele botou os fones no ouvido e ganhou
um brinquedo de presente.
Zoraide afirmou que tinha horror de pizza fria, mas mesmo assim sentou-se à cabeceira da
mesa e comeu quase sem mastigar. Percebendo a ansiedade da patroa, Uéslei foi até o
quarto e voltou com um comprimido na palma da mão.
- Não quero calmante – ela disse, atirando o comprimido pela janela. – Só consigo relaxar
com pizza.
Uéslei deu-lhe outra fatia e um conselho:
- Não precisa ficar nervosa. O Baby cuida de tudo.
- Eu tenho as minhas dúvidas. Como é que alguém, com aquela cara...
- De bebê – reconheceu Uéslei. – Mas ele atira como gente grande.
- Quantos anos? Dez? Doze? Quinze?
- Isso ninguém sabe. Acho que tem mais.
- Mesmo assim, ainda é um menino. Será capaz de organizar um seqüestro sozinho?
- Se a senhora visse a quantidade de marmanjos que obedecem às ordens do Baby...
Ninguém mexe com ele na comunidade. Eu sei por que moro lá perto.
A mordaça não me deixava conversar com João, mas tentei dizer-lhe com os olhos que
estávamos lidando com marginais de pior espécie e precisávamos fazer alguma coisa pra
escapar do bando do Baby. Quem garantia que seríamos levados para um cativeiro mais confortável?
Quando comecei a gemer, Uéslei me arrancou a fita-crepe da boca com um puxão
impiedoso. Era como se estivesse me depilando sem cera.
- Quero fazer xixi - anunciei, com os lábios em brasa.
João gemeu ainda mais alto e descobriu o quanto dói uma depilação.
- Também estou apertado - ele disse, tão logo se livrou da mordaça.
O pedido foi atendido em parte: Zoraide não nos livrou do barbante. João alegou que seria
impossível fazer xixi com as mãos presas às costas, mas Uéslei mandou que ele parasse de
reclamar e empurrou-o até o lavabo. A porta, porém, permaneceu aberta; por determinação
da patroa, o grandalhão montou guarda do lado de fora.
Pra mim, foi bem mais difícil ficar de pé e caminhar. Passar a tarde deitada no chão entorta
os ossos de qualquer um, principalmente se o esqueleto já completou 70 anos: as juntas
estavam dormentes, a câimbra empedrava os pés e as pernas não me obedeciam. Não
encontrei outra saída senão me apoiar no braço de Uéslei.
O atrevido insistia em me vigiar até mesmo dentro do lavabo, mas eu me enchi de pudor e
declarei que não queria platéia. Zoraide permitiu que eu fechasse a porta, desde que não
passasse a tranca. A solução não me agradou:
- E se ele cismar de me ver sem roupa?
- Era só o que me faltava! - disse Uéslei. - Se ainda fosse uma garota...
- Fique sabendo, rapaz, que eu tenho 13 anos.
Indiferente às gargalhadas, entrei no lavabo e fechei a porta. Não achei tão complicado
baixar a calcinha e urinar com as mãos presas às costas. Ainda sentada no vaso, curvei o
tronco até tocar o chão e passei os braços por baixo das pernas. O exercício foi cansativo,
mas me deixou animada: com as mãos na frente do corpo, eu poderia agir com mais
autonomia. Não estava ali, afinal de contas, somente pra aliviar a bexiga.
Abri o armário da pia e vasculhei as gavetas, uma por uma, na esperança de topar com um
lápis de sobrancelhas, um toco de batom, um vidro de esmalte, enfim, qualquer coisa pra
escrever no espelho. Mas não havia um só cosmético. O estoque de remédios, em
compensação, daria pra abastecer um hospital: uma gaveta pra xaropes, outra pra pílulas e
pastilhas, outra pra cremes e pomadas e assim por diante. Peguei um spray pra garganta e
fiz um teste na pia: o líquido era roxo e gosmento, ideal para uma boa pichação.
É pena que não tive tempo de desenhar nenhuma letra. Uéslei perguntou qual a razão de
tanta demora e, sem esperar pela resposta, abriu a porta e foi entrando.
Irritada com a invasão, ergui a lata de spray e disparei um jato que acertou em cheio os
olhos do gigante. Aquela gosma fedorenta devia arder um bocado, porque ele teve de tatear
os azulejos pra alcançar a pia.
- Estou cego! - gritou, enfiando o rosto embaixo da torneira. - E tudo por causa dessa velha!
Esta velha tentou fugir pelo labirinto de caixas espalhadas pela sala, mas parece ter se
esquecido de que não estava mais na adolescência. Uéslei não demorou a se livrar da
cegueira. Saiu correndo atrás de mim e me agarrou pelos cabelos, jogando-me por cima do
ombro como se transportasse uma caixa de muamba.
Não quero nem pensar no que tinha em mente quando disse que eu iria me arrepender. A
ameaça despertou o heroísmo de João, que driblou a vigilância de Zoraide e pulou nas
costas do bandido. A intenção era boa; o resultado, nem tanto. Rolamos os três pelo chão,
um por cima do outro, numa sucessão de cambalhotas que criou um nó de braços e pernas e
terminou com uma pancada na parede.
A tentativa de fuga foi duramente reprimida: além de nos deixar sem jantar, Zoraide
ordenou a Uéslei que nos levasse para o quarto de empregada.
O cubículo, visto por dentro, lembrava uma solitária - e não apenas por causa do tamanho.
O teto baixo, a lâmpada fraca e as manchas de mofo na parede criavam um ambiente
sinistro e aumentavam a sensação de claustrofobia. A falta de ar, porém, não era um
sintoma psicológico: a janela não passava de um minúsculo basculante, que dava para os
fundos da cozinha e não recebia um mísero raio de sol.
Queixo apoiado nesse basculante, ouvi o ruído de um celular e senti um aperto no peito.
Uéslei atendeu cheio de intimidades: "Olá, mano! O que é que
você manda?"
Achei que Baby já estava a caminho e tremi ao pensar que seríamos transferidos para um
cativeiro lá no fim do mundo, provavelmente com os olhos vendados e uma arma na
cabeça. Mas, como dizem por aí, não se deve sofrer por antecipação. Uéslei encerrou a
ligação com um "até amanhã" e relatou à patroa a novidade: Baby tinha se metido numa
briga de gangues e só daria as caras na manhã seguinte.
Cama estreita e colchão duro não tiram o sono de ninguém. Mas como dormir com culpa?
Eu carregava uma bigorna na consciência por ter envolvido João naquela história. Não
podia simplesmente botar a cabeça no travesseiro e lutar contra a insônia contando
carneirinhos.
- A gente está aqui - suspirei - por minha causa. Adianta pedir desculpa?
- Só se você também me desculpar.
- Que é isso, João? Fui eu que convenci você a entrar na carroceria da caminhonete.
- Só fomos pegos porque sou um completo desastrado. Se eu não tivesse me enrolado no fio
do telefone, a essa hora a quadrilha estava presa.
- Mas eu não devia ter bancado a nervosinha, jogando spray no olho do Uéslei. Graças ao
meu ataque de nervos, a gente vai passar a madrugada espremido nesta lata de sardinha.
- Caixa de fósforos - ele disse. - Lata de sardinha é uma metáfora grande demais pra este
quarto.
Não era hora nem local pra fazer piada, mas não resisti ao humor proibido e dei risada até
chegar às lágrimas. Eu mesma não sabia, no final das contas, se estava rindo ou chorando.
Mas qual a diferença?
Sentia-me mais relaxada e, por insistência de João, deitei-me na cama pra tentar dormir. Ele
roeu o barbante que lhe prendia os punhos e em seguida me desamarrou. Deitou-se no chão
a meu lado e ficou alisando meus cabelos brancos.

VOCÊ ESTÁ LENDO
Poderosa 2 - Sergio Klein
Ficção AdolescenteEssa história não é minha , apenas a estou publicando aqui no Watts porque não a encontrei , espero que gostem 😘😙 Tudo o que ela escreve com a mão esquerda se transforma em realidade. Dar vida às palavras torna Joana Dalva uma pessoa especial...