Acordei num leito de hospital, cercada de olhos úmidos e aflitos. Minha mãe quis saber
como eu me sentia, meu pai levantou a mão e me perguntou quantos dedos eu estava vendo,
meu irmão falou que parecia uma morta viva de uma filme de terror que ele tinha alugado.
Nada como receber o apoio familiar! Eu contava, ainda com a solidariedade de colegas e
professores, que se acotovelavam ao redor da minha cama e me sufocavam de atenção.
Confesso que pensei em desmaiar de novo, mas fiquei mais calma quando João me disse
que tudo ia acabar bem. Dali a pouco, apareceu o medico e mandou todo mundo sair da
enfermaria – só podiam ficar os parentes.
No meio da confusão, chamei minha mãe com um gesto e cochichei no ouvido ela
-Eu vi a vó Nina.
Não pareceu muito espantada:
-isso é normal, filha. Eu também sonho com ela quase toda noite.
-Sonho, coisa nenhuma! Minha avó esta viva. Foi internada num asilo.
Minha mãe achou que eu estava viajando e me tratou como criança louca:
-Depois a gente conversa, meu bem. Agora você vai ser examinada.
O medico era grisalho, mas não muito, apenas o suficiente pra inspirar confiança. Tinha os
músculos talhados em academia e, ao medir minha pressão, estofou os bíceps sob o jaleco.
Pediu que eu mostrasse a língua, me iluminou a garganta e os ouvidos, enfiou o termômetro
debaixo do meu braço e me apalpou o pescoço à procura de caroços. Por fim, me ajudou a
ficar de pé me perguntou se eu estava tonta. Não? Passamos, então, ao exame neurológico:
com a mão esquerda toquei a orelha direita e vice-versa, fiquei alguns segundos com os
braços abertos e, pra completar, caminhei em linha reta – tudo isso com os olhos fechados.
Terminei o exame no meio da enfermaria... bem na frente do leito de Danyelle! Pra minha
surpresa, ela também estava no hospital, tomando soro no braço magrelo e ouvindo
ameaças da mãe:
“Se você não comer direito, menina, eu corto a sua mesada!”mal esperei que a mulher
terminasse a bronca?
-Escuta Dany. Você falou com a minha... com aquela mulher que te socorreu/
Ela levou algum tempo pra processar a pergunta?
-Gente boa – respondeu, com a língua pesada. – A minha sorte é que ela estava no banheiro
quando comecei a vomitar. Ficou o tempo todo comigo, sem reclamar nem fazer careta,
depois em ajudou a lavar o rosto e ainda me ensinou uns exercícios de respiração.
Ao me ver caminhando de olhos fechados e conversando de olhos abertos, um menino
perguntou à mãe dele se eu era cega ouse estava fingindo. Tinha vindo ao hospital pra tirar
o gesso do braço e choramingava com medo de uma possível tragédia: e se o medico fosse
distraído e, junto com o gesso, lhe arrancasse o braço?
Outro garoto, bem mais velho, estava ali por causa de um beijo. Pelas gírias que trocava
com uma falsa ruiva, percebi que ele tinha engolido o piercing que ela carregava na língua. E havia, ainda, uma garota da minha idade, um pouco mais, que acompanhada apenas por
uma barriga que parecia prestes a explodir. Sentou-se num banco perto da porta e pediu
ajuda a um enfermeiro.
-por favor, moço. Acho que meu filho vai nascer.
A careta de dor não comoveu o sujeito?
-Que vai, vai, mas não agora. Pode tratar de ficar calminha e parar com esse piti.
Pegou a garota pelo braço e levou-a ate um leito vago. Cobrou caro pela carona?
-Vocês adolescentes, são engraçadas. Estão cansadas de saber que existe pílula, camisinha,
tabela, DIU, mas na hora de virar os olhos ninguém pensa no amanha. Depois ficam ai, com
essa cara de leite derramado...
Na hora de virar os olhos! Quem esse enfermeiro pensava que era pra falar daquele jeito?
Em vez de tanta truculência, por que não dava a garota um analgésico?
-Escuta aqui – levantei a voz, mas de repente desisti de brigar e tive uma idéia mais
interessante. – Você pode me emprestar a sua caneta?
O cara tirou a caneta de trás da orelha e me entregou com má vontade. A prancheta que
trazia sob o braço estava cheia, por isso pensei em lhe pedir uma folha. Mas acabei
escrevendo na mão:
A dor vai mudar de endereço, deixando a garota em paz e atacando o enfermeiro. Pra
aprender a respeitar as mulheres em geral, e as grávidas em particular, esse troglodita
vai sofrer... ate virar os olhos!
A garota sorriu e disse que o enfermeiro estava com a razão: a dor era mesmo psicológica e
tinha desaparecido. Ele se contorcia, com as mãos na barriga, sem saber explicar aquelas
contrações. Continuei escrevendo:
Além de provar a dor de uma grávida, ele vai assumir o medo do menino de braço
quebrado.
O enfermeiro virou as costas para o medico e fugiu pra não ser examinado. Ao ver o
menino dando uma risada, decidi acudir o casal que não sabia beijar direito. Minha mãe
estava toda rabiscada, mas espremi a letra pra escrever em cima da linha do amor:
o piercing sai do estomago dele e volta pra língua dela.
A falsa ruiva disse que tinha cometido um engano e esticou a língua pra mostrar uma jóia
de ouro. O garoto concluiu que talvez tivesse engolido um chiclete e deu um beijo na
namorada – apenas um prudente selinho.
Também ganhei um beijo do meu pai quando disse que queria ir pra casa. Minha mãe
pensou em me submeter a exames mais detalhados, quem sabe uma tomografia ou uma
ressonância magnética? O medico usou a autoridade grisalha pra lembrar que o ambiente
dos asilos costuma mexer com as emoções de qualquer um. Ainda mais de uma adolescente
que acabara de perder a avó. Recomendou que eu relaxasse e tirou do bolso um
cartãozinho. Qualquer coisa, era só ligar.
Quando cheguei em casa, a secretaria eletrônica encheu o meu ego de recados: os colegas
faziam mil perguntas sobre a minha suposta doença, diziam que estavam rezando por mim
e se ofereciam pra me passar a matéria se por acaso eu faltasse à aula. Não queria perder a
tarde pendurada no telefone, repetindo a mesmíssima história, por isso escolhi um porta-
voz pra contar a galera que me sentia muito bem, obrigada, no dia seguinte voltaria à escola
e abasteceria de detalhes a curiosidade geral. João atendeu no primeiro toque e mal me deixou dizer alô:
-E ai, como você está?
-Acabei de chegar em casa
-O que é que o médico disse?
-Ele acha que o meu mal é stress
-E foi por isso que você desmaiou? Não vai me dizer que aderiu a dieta da Dany...
Dany? Tive de morder a língua pra não perguntar desde de quando ele tinha intimidade pra
chamar Danyelle pelo apelido.
-Não, João, eu não tô de dieta. Desmaiei foi de susto, isso sim.
-Mas quem é que te assustou?
Não havia como dar voltas. Fui direto ao ponto:
-Minha avó!
João levou alguns segundos pra decidir se tinha ouvido direito.
-Também fiquei balançado, Joana, quando entrei na clinica. Você reparou na cara do Bené,
aquele velhinho simpático que tava contando a final da Copa do Mundo de 50? Ele me
lembrou demais o meu avô, que morreu no inicio do ano passado e era uma pessoa...
Não deixei que João terminasse:
- Estou dizendo que vi a vó Nina. Não me lembrei de ninguém. Eu vi.
Outro silêncio, ainda mais comprido. João percebeu que eu estava no limite e escolheu as
palavras a dedo:
-Pode ter sido... uma ilusão.
-Tá me chamando de mentirosa?
-Que é isso, mô? Só acho que você pode ter se confundido. Recém-nascido não é tudo
igual? Pois então. os velhos também se parecem...
Sempre adorei que João me tratasse por mô, mas pela primeira vez esse vocativo me soou
irritante, antiquado, sentimentalóide e piegas. Por quê não dizia amor? Precisava
transformar em monossílaba uma palavra que já é tão curta?
-Fique sabendo - rosnei - que eu nunca ia confundir a vó Nina.
conhecendo o poder da minha ficção, João não deixou de me perguntar:
- Você escreveu alguma frase pra trazer sua avó de volta à vida?
-Vontade não me faltou - admiti. - Mas vó Nina não queria ressuscitar. O último desejo dela
era ser cremada e ter as cinzas espalhadas numa roseira.
A lógica masculina não permitiu que João acreditasse em mim.
-Se você não escreveu nada, então como ela não pode ter ressuscitado. Quem sabe não era
uma parente da sua avó?
-Nem parente, nem sósia, nem clone - rebati com a voz alterada.
-Por que você não volta à clínica comigo? Eu vou lá hoje à tarde.
-Hum... Desculpa, mô, mas hoje não vai dar. O Apolo marcou de vir aqui em casa pra me
ensinar uns acordes. Você sabia que, na época da faculdade, ele tinha uma banda?
A tentativa de mudar de assunto azedou de vez meu humor:
-Então, João, boa aula! E, por favor, nunca mais me chame de mô.
Desliguei sem dizer mais nada e avisei à minha mãe que ia sair. Ela me lembrou a
recomendação do médico:
-Ele falou que você precisa relaxar.
-Eu só consigo relaxar andando.
-Espere aí. Aonde é que você vai?
O telefone tocou. Quando minha mãe atendeu, percebi que ela estava falando com o João e
aproveitei pra escapar dos dois.
Havia uma caminhonete estacionada na frente da clínica. Intrigada, me escondi atrás de um
poste e vi um grandalhão se aproximar do carro carregando uma caixa com o
aviso:CUIDADO, FRAGIL. ESTE LADO PARA CIMA. Não sei se por pressa ou
analfabetismo, o cara não tomou cuidado nem observou o lado certo. Resultado: a caixa
rasgou, esparramando uma bagunça na calçada. Por sorte, não havia nenhum vidro,
somente latas de óleo, leite em pó, sardinha, salsicha e doce de leite – os mesmo produtos
que eu tinha ajudado a embalar, na escola, pra que fossem doados a clínica.
Tive a sensação, por um momento, de testemunhar um assalto. Se o sujeito me visse atrás
do poste, seria bem capaz de me dar um tiro ou então de me seqüestrar, lucrando não
apenas com o produto do roubo, mas também com o pedido de resgate. Quanto é que vale a
minha vida? O pânico de ser descoberta me fez encolher a barriga e conter a respiração. A
curiosidade, porem, foi maior que o medo: espichando o pescoço, olhei para o homem de
alto a baixo e vi que usava um macacão com a logomarca do asilo.
Tudo bem, isso podia ser um disfarce, mas decidi ser otimista e apostei que estava diante de
um funcionário desastrado. Sai de trás do poste, disse alo e ofereci ajuda pra catar as latas.
O cara agradeceu com um sorriso e tratou de colocar na caminhonete os produtos que eu
agrupava, em pequenas pirâmides, sobre a calçada.
O trabalho em equipe me deixou à vontade pra bancar a repórter-detetive:
-Pra onde você vai levar tudo isso?
A supervisora da clínica se antecipou à resposta. De braços cruzados em frente ao portão,
Zoraide xingou o rapaz de irresponsável e, avisou, pela última vez, que se ele continuasse
assim seria dispensado por justa causa.
Olhou-me com as sobrancelhas suspensas:
-O que é que você quer?
Levantei-me, disse meu nome e me defendi atacando:
-Estive aqui hoje cedo, lembra? A nossa turma veio entrevistar os internos e – apontei para
a carroceria da caminhonete – trazendo esses mantimentos.
Pensei que Zoraide ficaria desconcertada, mas ela não se abalou:
-Não foi você que desmaiou no banheiro?
-Pois é. Mas já estou melhor.
-Venha cá, Joana. Vamos conversar na minha sala – virou-se para o funcionário. – E você,
o que esta esperando? Quero tudo no deposito.
O grandalhão não entendeu a ordem, que mais parecia uma contra-ordem:
-Deposito? – ele coçou a cabeça. – Mas a senhora não disse...
Zoraide não deixou que o infeliz terminasse:
-Leve o material para o lugar de sempre. E sem discussão, Uéslei.
Assim que entrei na sala de Zoraide, tive uma crise de espirros: seria uma alergia aos ácaros
ou ao mau gosto das cortinas de veludo? Instalada num trono barroco, a supervisora me
desejou saúde e me indicou uma cadeira tosca, quase um banquinho, do outro lado da mesa.
-Eu costumava botar os mantimentos – justificou-se Zoraide, tão logo parei de espirrar –
num quartinho que transformei em despensa, mas não deu certo. Os internos arrombavam a
porta a noite e comiam tudo de uma vez. No dia seguinte, como você pode imaginar, a
clínica virava um hospital especializado em tratar diarréia. Achei melhor, então, alugar um
deposito pra guardar as doações.
Num canto da sala, havia duas caixas abertas: uma com roupas e outra com sandálias e sapatos. A maior parte das peças tinha saído do guarda roupa da minha avó – inclusive o
mocassim de couro que Zoraide calçava, sem o menor constrangimento, balançando os pés
por baixo da mesa.
Tive de fazer muito esforço pra não deixar o sangue entrar em ebulição. Motivo não me
faltava pra chamar a mulher de ladra e perguntar se ela não sentia vergonha de tomar a
roupa e a comida dos internos. Mas, pensando bem, de que me adiantava armar um
barraco? Precisava falar com a minha avó e dependia de autorização pra entrar na clínica.
-Estou aqui, doutora, pra terminar o meu trabalho de escola.
-Pode me chamar de Zoraide – ela disse vaidosa pelo diploma pendurado na parede.
-Sabe a Adalgisa? Foi com ela que eu conversei. Mas também queria falar com a outra, que
dorme no mesmo quarto e foi muito citada na entrevista.
-Cuidado com essa mulher!
Fiquei curiosa:
-Qual das duas?
-Adalgisa, ora! Uma louca! Quando vocês foram embora, ela arranjou uma gritaria e tentou
me atacar com isto – ergueu pelo rabo o gato de pelúcia – Ficou tão descontrolada que
tivemos que lhe dar um sedativo. Acho que hoje não tem forças nem pra abrir os olhos.
Quanto mais a boca!
-Tudo bem – eu disse. –Queria mesmo era falar com a colega dela.
Zoraide balançou a cabeça:
-No seu lugar, eu escolheria outra pessoa.
-Por quê? Ela também esta dormindo?
-Não é isso. Acontece que a fulana não quer saber de conversa.
Banquei a tonta:
-Como é mesmo o nome dela?
-Nem imagino. Faz poucos dias que chegou à clínica e até hoje não me disse um oi. Veio
sozinha, com a roupa do corpo, não trazia documento. Aposto que esta esclerosada e fugiu
de casa, isso acontece muito. Talvez o melhor seja ligar para a polícia.
-Quem sabe comigo ela se abre?
Zoraide apontou o relógio na parede:
-O problema é que não está no horário de visita.
Olhei para o mocassim da minha avó.
-Por favor, doutora. Preciso me dar bem nesse trabalho.
-Duvido que a fulana vá falar – ela disse, afastando os pés pra baixo da cadeira. – Mas já
que você insiste...
Atravessei o corredor sob um coral de roncos e me perguntei como alguém consegue
dormir no meio de uma sesta tão escandalosa. Seria verdade que Zoraide aumentava a dose
dos remédios pra deixar os internos hibernando? Naquele momento, eu não tinha cabeça
pra pensar nesse assunto. Ou em qualquer outro.
Raciocinando com o coração, entrei no ultimo quarto do corredor em câmera lenta,
arrastando as pernas como uma astronauta sujeita aos efeitos da baixa gravidade. Sabia que
encontraria Adalgisa dormindo com a cabeça jogada no colchão, porque não podia contar
com o travesseiro felino. Mas como prever o comportamento da minha avó?
Dona Nina estava sentada na cama, olhando distraída pela janela, e me pareceu sorrir
quando Zoraide anunciou: “Visita para a senhora!”.
Se não fosse a presença da supervisora, eu teria abandonado o meu andar de astronauta e
cruzado o quarto como um foguete pra me atirar nos braços da vó Nina. Fui forçada, porém, a me apresentar com voz firme e enfatizar que tinha muito prazer em conhece-la.
-Hoje de manha, entrevistei a Adalgisa – eu disse, segurando as mãos da minha avó. – Ela
me falou tão bem de você... da senhora.
Vó Nina olhava fixo pra mim. Mas não deu sinal de que me ouvia. Não desanimei:
-Como é que a senhora veio parar aqui?
Nenhuma resposta. Tentei outro caminho:
-Bonito este vestido. Quem te deu?
O vestido que tinha usado no velório! E também o mesmo colar de perolas, alem de um
resto de esmalte nas unhas. Nova tentativa:
-Por que a senhora não volta pra casa, vó?
Chamar os internos de “vovô” e “vovó” era um habito comum entre os visitantes da clínica,
por isso a supervisora não desconfiou de que eu e aquela senhora impassível tínhamos o
mesmo sangue.
-Não adianta – disse Zoraide. –Ela não se lembra de nada.
Fingi resignação com um suspiro.
-Tem razão, doutora. Acho melhor eu ir embora.
Na despedida, dei um abraço apertado na minha avó e aproveitei pra cochichar-lhe que eu
era inocente. Não me lembrava de ter escrito nenhum texto em que ela aparecesse como
personagem, portanto não sabia explicar por que estava viva ou como renascera das cinzas.
Vó Nina continuou calada, mas esfregou os olhos úmidos. Zoraide não se comoveu: aquilo
não passava de um cisco.
Apesar do silencio da vó Nina, sai da clínica com a alma light e louca pra fazer as pazes
com o João. Ele não podia ser condenado só porque duvidou de mim: qualquer garoto
ficaria espantado ao ouvir a namorada contar que a avó dela, morta e cremada, tinha
ressuscitado e estava morando no asilo municipal da cidade. Ser chamada de mô, além do
mais, não é nenhuma catástrofe. Como pude permitir que uma sílaba acabasse com o meu
humor? Deixei o orgulho de lado e decidi procurar João.
Pensei que ele estaria tocando violão no quarto, que fica na parte de cima do sobrado, mas
o único som que chegava à rua vinha do secador de cabelos: o salão da Salete funciona no
térreo e, pra variar, estava lotado.
Ao me ver na calçada, Salete pediu licença a uma freguesa e veio falar comigo. Disse que o
filho levava jeito pra musica e estava aprendendo violão com Apolo, mas sua aula tinha
terminado mais cedo por causa de um jogo na escola. Por fim, comentou que eu parecia
aflita e deu uma olhada na palma da minha mão.
-Estranho – ela diagnosticou, com a testa franzida. –Tem um pedaço da linha do destino
que está praticamente apagado.
Nunca fui muito ligada em quiromancia e outras artes transcendentais, mas confesso que
me incomodou aquela previsão sombria:
-Isso significa... que vou... morrer?
Salete riu das minhas reticências:
-Deixe de ser dramática, Joana. A linha some por um milímetro, mas logo reaparece mais
forte e marcante, veja só!
-Mas por que meu destino faz essa pausa?
-É impossível que você saia da sua realidade pra viver outro papel. Como um período de
férias, entende?
Sair da minha realidade pra viver outro papel! Por que a linguagem esotérica utiliza essas
metáforas impenetráveis? Salete piscou pra mim:
Você andou brigando com o Júnior, não foi?
Acostumada a chamar Júnior de João, levei algum tempo pra perceber que ela falava do
filho. Fiquei curiosa:
-Isso também esta na minha mão?
-Não – ela foi sincera. - Nos seus olhos.
Gostaria de contar a Salete que minha avó estava viva, mas não tive tempo de dizer mais
nada. Minha sogrinha foi chamada por uma funcionaria e me pediu pra voltar outra hora
porque tinha de dar atenção às freguesas.
Entrei no ginásio da escola no final do primeiro tempo. Danyelle me viu de longe e me
acenou do meio da arquibancada. Fui me sentar perto dela e logo fiquei a par das fofocas: o
jogo fazia parte do torneio intercolegial, estávamos perdendo por 4 a 0, o juiz tinha
ameaçado o técnico da nossa equipe de expulsão se ele não parasse de reclamar.
-Estou te achando um pouco pálida – eu disse. –Você, por acaso, já almoçou?
-Mas é claro – ela riu, mostrando uma caixa de chicletes quase vazia.
-E desde quando- falei serio – chiclete é almoço?
O apito do juiz deu inicio ao intervalo. Sai andando no meio da galera, cheguei bem perto
da quadra e vi João soprando a franja.
Todo o time estava cabisbaixo. Sem coragem de encarar a torcida, os jogadores se reuniram
atrás do gol pra ouvir as instruções e o desabafo do técnico.
Quem comanda a nossa equipe é o Aquiles, professor de Educação Física. Durante as aulas,
ele vive dizendo que o importante é competir, mas como técnico não hesitou em mostrar os
dentes e esbravejar contra a apatia e a falta de amor-próprio de um bando de garotos que
chutavam a maricota como se ela fosse uma qualquer.
Nunca tive paciência pra acompanhar futebol, mas me delicio quando locutores de radio
inventam apelidos para a bola e quase engolem o microfone pra contar que o camisa 10
recebeu o lançamento com açúcar, deu um chapéu no zagueiro e mirou no ultimo andar do
gol adversário, acertando a maricota tão perto do ângulo que a coruja levantou vôo do
travessão que lhe servia de poleiro. Acho que as belas jogadas dependem do modo como
são narradas: o verdadeiro futebol-arte esta no talento de driblar as palavras.
Eu estava debruçada no alambrado e percebi que Aquiles não resistia a uma boa metáfora.
Depois de espinafrar o time, ele mudou de tom e pediu a cada um que cortejasse a maricota
como se ela fosse uma dama especial, a mulher mais bonita do mundo, a ultima
representante do sexo feminino sobre a superfície da Terra.
-Cortejar – explicou Aquiles diante das caras de interrogação – é o mesmo que flertar,
paquerar, amar, investir, conspirar, jogar charme, enfim, preparar o meio-de-campo pra
conquistar o coração de uma garota. Por que vocês acham que alguns artilheiros beijam a
maricota antes de cobrar um pênalti?
João deslizava os dedos pela costura da bola, mais interrompeu a caricia ao me ver à beira
da quadra e veio conversar comigo. Só tivemos tempo, porém, de trocar três ou quatro
palavras. Sem mais nem menos, ele me largou falando sozinha e correu em direção à
torcida pra socorrer Danyelle!
Sim, ela havia sofrido mais um desmaio e estava caída na arquibancada.
Sei que Dany atravessa uma fase difícil e precisa de apoio dos colegas. Mas será que não
havia nenhum outro herói pra carregá-la no colo ate a enfermaria? Tinha de ser justamente
o meu namorado?
Aproveitando-se do anonimato, um engraçadinho disse que desmaio se cura com respiração
boca a boca. Danyelle conseguiu abrir os olhos e, apesar da fraqueza, enroscou os braços no Você andou brigando com o Júnior, não foi?
Acostumada a chamar Júnior de João, levei algum tempo pra perceber que ela falava do
filho. Fiquei curiosa:
-Isso também esta na minha mão?
-Não – ela foi sincera. - Nos seus olhos.
Gostaria de contar a Salete que minha avó estava viva, mas não tive tempo de dizer mais
nada. Minha sogrinha foi chamada por uma funcionaria e me pediu pra voltar outra hora
porque tinha de dar atenção às freguesas.
Entrei no ginásio da escola no final do primeiro tempo. Danyelle me viu de longe e me
acenou do meio da arquibancada. Fui me sentar perto dela e logo fiquei a par das fofocas: o
jogo fazia parte do torneio intercolegial, estávamos perdendo por 4 a 0, o juiz tinha
ameaçado o técnico da nossa equipe de expulsão se ele não parasse de reclamar.
-Estou te achando um pouco pálida – eu disse. –Você, por acaso, já almoçou?
-Mas é claro – ela riu, mostrando uma caixa de chicletes quase vazia.
-E desde quando- falei serio – chiclete é almoço?
O apito do juiz deu inicio ao intervalo. Sai andando no meio da galera, cheguei bem perto
da quadra e vi João soprando a franja.
Todo o time estava cabisbaixo. Sem coragem de encarar a torcida, os jogadores se reuniram
atrás do gol pra ouvir as instruções e o desabafo do técnico.
Quem comanda a nossa equipe é o Aquiles, professor de Educação Física. Durante as aulas,
ele vive dizendo que o importante é competir, mas como técnico não hesitou em mostrar os
dentes e esbravejar contra a apatia e a falta de amor-próprio de um bando de garotos que
chutavam a maricota como se ela fosse uma qualquer.
Nunca tive paciência pra acompanhar futebol, mas me delicio quando locutores de radio
inventam apelidos para a bola e quase engolem o microfone pra contar que o camisa 10
recebeu o lançamento com açúcar, deu um chapéu no zagueiro e mirou no ultimo andar do
gol adversário, acertando a maricota tão perto do ângulo que a coruja levantou vôo do
travessão que lhe servia de poleiro. Acho que as belas jogadas dependem do modo como
são narradas: o verdadeiro futebol-arte esta no talento de driblar as palavras.
Eu estava debruçada no alambrado e percebi que Aquiles não resistia a uma boa metáfora.
Depois de espinafrar o time, ele mudou de tom e pediu a cada um que cortejasse a maricota
como se ela fosse uma dama especial, a mulher mais bonita do mundo, a ultima
representante do sexo feminino sobre a superfície da Terra.
-Cortejar – explicou Aquiles diante das caras de interrogação – é o mesmo que flertar,
paquerar, amar, investir, conspirar, jogar charme, enfim, preparar o meio-de-campo pra
conquistar o coração de uma garota. Por que vocês acham que alguns artilheiros beijam a
maricota antes de cobrar um pênalti?
João deslizava os dedos pela costura da bola, mais interrompeu a caricia ao me ver à beira
da quadra e veio conversar comigo. Só tivemos tempo, porém, de trocar três ou quatro
palavras. Sem mais nem menos, ele me largou falando sozinha e correu em direção à
torcida pra socorrer Danyelle!
Sim, ela havia sofrido mais um desmaio e estava caída na arquibancada.
Sei que Dany atravessa uma fase difícil e precisa de apoio dos colegas. Mas será que não
havia nenhum outro herói pra carregá-la no colo ate a enfermaria? Tinha de ser justamente
o meu namorado?
Aproveitando-se do anonimato, um engraçadinho disse que desmaio se cura com respiração
boca a boca. Danyelle conseguiu abrir os olhos e, apesar da fraqueza, enroscou os braços no pescoço de João. A galera começou a gritar “Beija! Beija”, mas não aceitei a provocação e
sai do ginásio sem olhar pra trás.
Não sabia pra onde ir e deixei que meus pés escolhessem o caminho. Eles seguiram por
ruas desconhecidas, como se estivessem confusos ou perdidos, mas não demorei a me
localizar. De repente, senti o cheiro de vela e de flor e passei na frente de um shopping
especializado em funerárias. Avistei, logo depois, a ponta de um cipreste e cheguei ao
Cemitério Municipal.
Os mortos ocupam um quarteirão inteiro e ficam protegidos por um muro alto, cheio de
trincas, por onde é possível assistir aos enterros sem ter de entrar no cemitério. Caminhando
ao longo da calçada, enfiei o rosto numa dessas trincas e vi um homem de cabeça branca. A
distancia me impedia de enxergar o rosto, mas decidi apostar na intuição e atravessei o
portão de ferro onde se lê, em letras quase apagadas e grafia antiga, SOMOS TODOS
IGUAES.
A intuição não me decepcionou: debruçado no tumulo, Henrique tentava afugentar um
calango que passeava sobre o nome da vó Nina. Ouvi o canto triste de um bem-te-vi e me
animei a perguntar:
-Cadê a sua gaita? Gostei tanto do Choro para Nina...
-Joguei as cinzas lá dentro, lembra? Agora fico com dó de soprar.
-Você devia ter trazido outro instrumento. O sax, por exemplo.
Henrique tapou o riso com a mão tatuada. Não havia ninguém por perto, mas ele não voltou
a falar antes de olhar para os lados?
-Os funcionários do cemitério não gostam de musica. Na primeira vez que toquei a gaita,
eles ficaram me olhando como se eu fosse maluco. Imagine o que aconteceria se aparecesse
com um sax. Acho que terminaria meus dias fazendo concertos no hospício.
Talvez os funcionários estivessem com razão: só mesmo um louco iria ao cemitério pra
tocar choro diante de um tumulo. Um cara desses, meu deus, não merece sofrer! Eu
precisava contar que vó Nina estava viva, mas temia que Henrique tivesse um troço e fui
avançando aos poucos:
-veja os olhos da minha avó – apontei para a moldura da imagem pregada na cabeceira do
tumulo. – Nem dá pra acreditar que ela morreu...
-Eu queria tanto uma lembrança – disse Henrique. – Pra falar a verdade, estava pensando
em fazer copias dessa foto.
-Eu posso te emprestar o meu álbum...
-Nossa, Joana! Nem sei o que dizer.
-Você não viu nada. Tenho uma surpresa que, essa sim, vai matar a saudade.
Henrique ficou pensativo e, por fim, estalou os dedos?
-Já sei. Um filme! Hoje em dia, com essas câmeras portáteis, qualquer um pode filmar a
família e os amigos.
Não dava mais pra adiar a verdade:
-Filme não mata saudade de ninguém... e se eu dissesse que a minha avó está viva?
Como eu previa Henrique não acreditou:
-Eu acusaria você de plagio, minha querida. A mitologia grega conta que havia uma ave
enorme, do tamanho de uma águia, que vivia cerca de 500 anos e era conhecida como
fênix. Ao sentir que estava morrendo, a fênix fazia um ninho com ervas aromáticas que o
Sol esquentava ate pegar fogo. Então, ela se atirava nas chamas e virava um punhado de
cinzas, de onde surgia uma ave novinha em folha, um clone da primeira, e vivia feliz para
sempre, ou, pelo menos, por mais de 500anos...
Muitos autores sentem urticária só de ouvir a palavra plagio. Mas o que me incomodou,
naquele instante, foi a ironia do Henrique.
-Isso não é mitologia – eu disse. – Não sei como explicar como aconteceu, mas a verdade é
que a vó Nina não esta morta. Duvida? É só ir ate o asilo municipal...
-Brincadeira tem hora – ele me cortou. – A memória da sua avó merece mais respeito.
Henrique me deu as costas e foi embora do cemitério. Ignoro quanto tempo fiquei plantada
na frente do tumulo, ouvindo o refrão monótono do bem-te-vi e olhando para a foto da vó
Nina... Até compreender, finalmente, por que ela havia ressuscitado.
O engraçado é que a resposta estava bem na minha frente; mais exatamente, no epitáfio da
minha avó. O texto original – Nina está viva e forte dentro da gente – tinha sofrido uma
pequena mudança. Os nomes dos outros mortos ocupavam quase todo o tumulo, de modo
que só coube uma parte da frase:
NINA ESTÁ VIVA E FORTE
A revisão não tinha a minha licença, mas sou obrigada a admitir que não há uma única
palavra alheia: a frase é de minha autoria e por isso virou realidade.
Quando eu disse à minha mãe, lá no hospital, que vó Nina estava numa clínica, minhas
palavras não foram levadas a sério. Tal reação, pensando bem, fazia parte do contexto: eu
acabara de acordar de um desmaio e poderia estar confundindo o mundo real com a
fantasia. Ao fim do dia, no entanto, a minha credibilidade continuava em baixa. Cheguei
em casa contando as novidades, mas ao falar do epitáfio fui censurada:
-Acho melhor – disse minha mãe – deixar a sua avó descansar em paz.
-Quem disse que ela está descansando?
-Lá vem você com essa história...
-Não é história, não. Hoje a tarde, passei no cemitério e li o epitáfio.
-E aí, ficou bom? Eles cobraram tão caro!
-Cortaram um pedaço da frase.
-Faltou espaço no tumulo, daí eu mandei cortar. Por quê, algum problema?
-Não, nenhum. Só que o novo epitáfio, Vó Nina está viva e forte, ganhou um sentindo
concreto. Tanto assim que ela ressuscitou.
Estávamos no sofá da sala, assistindo ao noticiário local. Pela primeira vez, minha mãe
tirou os olhos da tevê:
-Quer dizer que a sua avó renasceu das cinzas por causa de uma frase? Alias, um pedaço de
frase.
-Você sabe mãe, que as minhas palavras...
-Sei, sei – ela desconversou. – Escute Joana, que tal deixar esse papo pra outra hora? É que
eu tive um dia meio difícil...
-Eu também, mãe. Mas a gente precisa tirar a vó Nina do asilo.
Ela voltou a olhar para a tevê e fez psiu pra ouvir uma noticia sobre o movimento grevista
nas universidades. Parece que não ficou muito satisfeita com o índice de reajuste proposto
pelo governo. E descarregou a frustração em cima de mim?
-Ponha na cabeça, de uma vez por todas, que ninguém renasce das cinzas. Só mesmo na
mitologia. Os gregos contavam que uma ave...
-Conheço a lenda da fênix – eu disse. – Mas não estou falando de ficção. Antes de ir ao
cemitério, dei um pulo na clínica e conversei com a vó Nina. Na verdade, só eu falei. Acho
que ela não me reconheceu.
Minha mãe se levantou do sofá:
Chega Joana Dalva! Se você insistir nesse assunto, vou ser obrigada a te levar a um
psicólogo.
Aquilo era o quê, uma ameaça? Tamanha a falta de psicologia me fez abandonar a
discussão e a sala.
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Poderosa 2 - Sergio Klein
Teen FictionEssa história não é minha , apenas a estou publicando aqui no Watts porque não a encontrei , espero que gostem 😘😙 Tudo o que ela escreve com a mão esquerda se transforma em realidade. Dar vida às palavras torna Joana Dalva uma pessoa especial...