Futuro à vista

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Precisava de um bom banho, lavar a cabeça com xampu e condicionador e trocar o vestido -
emprestado da Adalgisa - por uma roupa decente e compatível com o meu corpo de 13
anos. Não que eu pensasse em me produzir! O que eu queria, ao contrário, era vestir uma
camisola macia, tirar o telefone do gancho, trancar a porta do quarto, mergulhar debaixo
das cobertas e dormir um sono neutro. sem sonhos nem pesadelos, de preferência com a
cabeça apoiada no colo da vó Nina.
Minha mãe mal esperou o meu primeiro bocejo pra dizer que era hora de voltar pra casa. O
meu cansaço, porém, não chegava aos pés da saudade:
- Só volto pra casa - declarei - depois de passar na clínica. Meu pai limpou a garganta e
falou, com a mão no meu ombro:
- Você precisa relaxar, filha. Amanhã, a gente vai ao asilo pra ver os velhinhos.
- Mas que jeito de falar! - protestou minha mãe. - Aquilo é uma clínica, e não um asilo, para
pessoas da terceira idade, e não para velhos. Além do mais, nem todos são baixos ou
magros para serem chamados de velhinhos.
O ex-casal aproveitou este tema - o que era ou não politicamente correto - pra trocar farpas
e agulhadas. A discussão foi interrompida pela diretora da escola:
- Foi graças ao seu texto, Joana, que a polícia conseguiu desbaratar a quadrilha da Zoraide.
Você está de parabéns!
- Obrigada, dona Nélia. Mas quem teve a idéia de publicar a matéria?
Apoio deu um passo à frente e apontou pra Clarice:
- Agradeça à sua professora de Português. Ela acabou me convencendo de que, mesmo sem
provas, você tinha escrito um texto com... Como é mesmo aquele palavrão?
- Ve-ros-si-mi-lhan-ça - disse Clarice, segurando o riso.
- Isso aí. Procurei, então, um amigo jornalista, que ficou impressionado ao saber que a
autora era uma garota de apenas 13 anos... E que, além do mais, estava desaparecida.
Dei um beijo na Clarice e outro no Apolo. Enquanto ele me pedia desculpas por ter
duvidado de mim, dona Nélia virou-se para os alunos e fez uma sugestão:
- Que tal agendar, para a próxima semana, uma nova visita à clínica?
- Não posso esperar tanto tempo - eu disse - pra abraçar a vó Nina.
Todo mundo achava que minha avó estava morta e que eu, portanto, tinha perdido o juízo.
Só pude contar com o apoio do João:
- Eu vou com você, Joana. Dona Nina deve estar sentindo a sua falta.
Será que loucura pega? Era essa a pergunta que todos se faziam, trocando olhares e
cochichos. Minha mãe me segurou pelo braço como se quisesse me deter, mas meu pai
concluiu que era melhor a gente seguir para o asilo, ou melhor, para a clínica e esclarecer
de uma vez essa história.
O jornal circulava de mão em mão entre os internos, que olhavam com ciúme pra Adalgisa
porque só ela fora citada na minha matéria. Mas, no fundo, no fundo, todos pareciam
felizes e nos receberam com carinho. Tinham acabado de assistir pela tevê, em edição
extraordinária, à notícia da prisão da Zoraide e só então descobriram que a supervisora,
além de contrabandista, estava envolvida num seqüestro. A resposta que eu dera ao
repórter, reclamando de fome, provocou uma inesperada disputa: as mulheres queriam que
eu escolhesse qual delas faria o meu almoço.
Tinha encarado quase meio giga de pizza e não podia nem ouvir falar em comida. O corpo,
porém, está condicionado a reagir aos estímulos. Mesmo com o estômago cheio, fiquei com
água na boca quando foi anunciado o cardápio do dia:
- Caldo de feijão temperado! Hoje, sou eu quem vai cozinhar. Com a sua ajuda, Joana.
Da multidão que se reunira diante da casa da Zoraide, muitos colegas, professores e
vizinhos nos acompanharam até a clínica. Boa parte dessa galera tinha comparecido ao
velório da vó Nina, daí o espanto, o susto, o horror, quando ela entrou na sala de braços
abertos e se debruçou no meu ombro.
Meu irmão era fã de desenho animado e, talvez por isso, não se abalou com a novidade; se
havia heróis que viravam tochas de fogo, por que uma superavó não poderia escapar das
cinzas? Minha mãe, em compensação, não conseguiu esconder a surpresa:
Sabia que a filha dava vida às palavras, mas jamais sonhou que eu fosse capaz de reverter a
morte da vó Nina. Quanto ao meu pai, bem, ele não conhecia o poder da minha literatura e
levou um bom tempo pra içar o queixo caído:
- É o fantasma da minha sogra - desabafou, esquecendo-se de que estava separado.
Minha mãe deu-lhe um cutucão e um conselho:
- Fantasmas não existem, querido. Fique tranqüilo, que daqui a pouco eu explico tudo.
Depois de abraçar minha mãe, vó Nina encheu de beijos as bochechas do Xandi e
apresentou o neto a um senhor de cabeça branca, cabelos na altura dos ombros e um Z
tatuado na mão esquerda.
- Quem é esse cara? - perguntou meu irmão, sem um pingo de desconfiômetro.
Vó Nina começou bem:
- Este aqui é um...
Não sei como pretendia completar a frase. Um amigo secreto? Um admirador platônico?
Um ex-futuro namorado? De repente, percebeu que estava num beco sem saída... e tudo por
causa do artigo indefinido! Decidiu, então, mudar a resposta:
- Este aqui é o Henrique!
Salete piscou pra vó Nina. Estava muito emocionada e falou,
segurando a minha mão esquerda:
- Obrigada, Joana, por ter salvado o meu filho. Ele me disse que o tiro pegou de raspão,
mas não acredito nessa história. Você escreveu alguma coisa, não foi?
Fiquei sem graça de responder na frente de todo mundo. A essa altura, as pessoas já haviam
compreendido que não estavam diante de um fenômeno sobrenatural e formaram uma longa
fila pra cumprimentar minha avó. O professor de Ciências levantou a hipótese de que ela
fora vítima de catalepsia e explicou que esta é uma doença rara, caracterizada por rigidez
dos músculos e paralisação dos movimentos voluntários: o paciente sabe o que se passa ao
redor, mas não consegue se expressar e parece realmente morto. De acordo comoutra
versão, menos científica, quem estava dentro do caixão era uma parente da vó Nina; tudo
não passara, talvez, de um mal-entendido... Ou uma brincadeira de mau gosto?
Também havia os que não achavam nenhuma explicação razoável, preferindo celebrar o
mistério e deixar a lógica pra mais tarde.
Por falar em mistério, vó Nina avisou que ia ensinar a receita do caldo de feijão temperado
e rascunhou uma lista de ingredientes. Fui fazer a compra no mercado da esquina, na
companhia de algumas colegas, e notei a falta de Danyelle. Leninha me deu a notícia:
- Ih, Joana, você nem imagina... Ela não quer comer, só fala de dieta e está mais magra que
um esqueleto. Ontem à noite, foi parar no hospital.
Chegando ao mercado, pedi ao gerente uma caneta e escrevi no fim da lista de compras:
Dany também precisa de um futuro... e com urgência!
De volta à clínica, levei as sacolas até a cozinha e deparei com uma platéia mista: os
homens também queríam aprender o segredo do famoso caldo da vó Nina. Ela espalhou o
feijão sobre uma mesa comprida, disse que contava com a ajuda de todos e começou a
cantarolar uma cantiga de roda. O grupo sentou-se pra catar os grãos, mas parece que tinha
entendido errado:
- Eu quero ajuda - esclareceu minha avó - pra cantar. A música, minha gente, é o principal
ingrediente de qualquer prato. Se as cozinheiras não cantarem, o arroz gruda na panela, a
batatinha não fica crocante e o bife vira sola de sapato.
Não pude deixar de confessar o meu recente fracasso culinário:
- Um dia desses, eu me atrevi a cometer um caldo de feijão. Foi um mico!
- Das duas, uma - explicou vó Nina. - Ou você se esqueceu de cantar, ou escolheu a música
errada.
Os tímidos repetiram a velha desculpa de que eram desafinados, mas aos poucos a cozinha
se transformou num palco de cantores de banheiro. Ao som de antigos sucessos, vó Nina
preparou o tempero e as carnes e jogou por cima o feijão batido.
De repente, lembrei que, dentre tantos amadores, havia um músico profissional. Fiz-lhe
uma sugestão no ouvido:
- Por que você não vai buscar o sax e toca aquela música que compôs para a minha avó?
- Talvez mais tarde - disse Henrique. - Não sou maluco de sair daqui justamente na hora do
banquete.
Levar o caldeirão fumegante até o refeitório seria uma tarefa arriscada: se alguém
derramasse o caldo, teria de enfrentar não somente queimaduras, mas um provável
linchamento. Pra evitar acidentes, a maioria preferiu ficar na cozinha. O tamanho da mesa
não era problema. Quem se importava de comer de pé?
O aroma do feijão calou o coro, mas ninguém conseguiu fazer silêncio. O que mais se ouvia
durante o almoço eram uivos de lobos famintos. Ao provar o caldo, os mais animados
fechavam os olhos, esticavam o pescoço para uma lua imaginária e diziam
huuuuuuuuuuuuum antes de mergulhar o focinho no prato. Houve, também, muitos
aplausos - e não apenas por causa do caldo!
Lá pelas tantas, entrou na cozinha uma mulher com uma pasta, apresentou-se como
Secretária do Bem-Estar Social do município e disse que estava ali pra escolher um novo
supervisor para a clínica. Achava que a instituição deveria ser dirigida por alguém que
conhecesse na pele os problemas da terceira idade e gostaria de saber quem teria disposição
e competência pra assumir o papel.
Pensei que Bené e Honório fossem lançar candidaturas próprias, mas ambos olharam na
direção da minha avó. Ela estava à beira do fogão, ajudando a servir o caldo, e ficou sem
fala ao ver que era alvo de todos os dedos e colheres.
A Secretária foi direto ao assunto:
A senhora acha que dá conta de dirigir a clínica?
Vó Nina alegou que ia voltar a morar com a família, que nunca tinha trabalhado como
administradora, que com certeza havia outros internos mais qualificados. Os argumentos
não convenceram a Secretária. Ela pediu pra experimentar o caldo e também soltou um
uivo de loba.
- Pra cozinhar assim - disse à minha avó -, é preciso talento, dedicação, inteligência,
sensibilidade e mão firme. Esses são os ingredientes que todo líder deve ter.
Fazia apenas alguns dias que vó Nina estava internada, mas ela já conhecia de cor os
principais problemas da clínica. Terminado o almoço, percorreu os quartos com a
Secretária pra mostrar as goteiras no teto, o mofo nas paredes, os tacos soltos do assoalho e
as camas comidas por cupim. A mulher ia anotando tudo numa agenda e prometeu que faria
o possível pra conseguir a liberação de verba para uma reforma emergencial.
Falando como supervisora, minha avó perguntou se essa verba não poderia ser esticada pra
atender a antigas reivindicações dos internos, como um corrimão ao longo do corredor, piso
antiderrapante nos banheiros, ventiladores de teto nos quartos e, se não fosse pedir demais,
uma televisão nova, com tela grande e controle remoto. Ah, sim, e um aparelho de DVD,
afinal há mais coisas entre o céu e terra além de novela e futebol!
As duas foram para a sala e sentaram-se no sofá, rodeadas pelos internos, que de cinco em
cinco minutos interrompiam a conversa pra apresentar uma nova reivindicação. Quando as
pálpebras começaram a pesar, eu me recostei no colo da vó Nina e realizei o desejo de
dormir um sono neutro, sem sonhos nem pesadelos.
Não tenho hábito de fazer a sesta, mas essa durou a tarde inteira; já era quase noite quando
abri os olhos e vi que ainda estava no colo da vó Nina. Sentada na mesma posição, ela me
alisava o cabelo e tentava domar um fiapo teimoso que não parava atrás da minha orelha.
Olhei ao redor: quanta gente! A maioria dos meus colegas e professores permanecia na
clínica, esperando a hora do jantar pra tomar a sobra do caldo. Ninguém parecia mais
faminto, porém, que uma loura coberta de piercing que nesse instante apareceu na sala.
- Caldo de feijão? - ela adivinhou, respirando fundo. - Eu quero um prato bem cheio!
Danyelle estava muito magra, mas esbanjava energia. E, pelo visto, não se preocupava mais
com dieta.
- Que bom ver você, garota! - pulei do sofá pra abraçá-la. - Se você está com fome,
procurou o lugar certo.
As colegas não deram sossego a Danyelle:
- Você ficou mesmo curada?
- Precisa de terapia?
- Por que voltou a usar piercing?
- Ainda sonha com a carreira de modelo?
Danyelle garantiu que se sentia livre da anorexia, mas estava
pensando em procurar um psicólogo pra evitar recaída. Tinha saído do hospital na hora do
almoço e seguido direto para o shopping, onde comeu um cheeseburger com refri e sem
culpa, depois entrou num studio de piercing e enfeitou o rosto com pinos e argolas. Não
queria mais saber de se tornar modelo, mas na fila do cinema conheceu um cara que era
repórter e, por coincidência, estava escrevendo uma matéria sobre o comportamento da
adolescência.
- E sabem o que aconteceu? - fez um bocado de suspense. - Fui convidada pra ser capa da
próxima edição da revista!
Enquanto Danyelle distribuía autógrafos, vó Nina veio me dizer que estava preocupada. E
se o caldo não desse pra todo mundo? Ela me avisou que ia à cozinha pra botar mais água
no feijão, mas deteve-se ao ouvir uns acordes que pareciam vir da rua.
Aos poucos, o som foi crescendo e se tornando cada vez mais nítido: dava pra identificar
um violão, talvez mais, e um instrumento de sopro. Quanto à letra, só lá-lá-lá, que afinal é o
refrão de todas as músicas.
Vó Nina e eu percorremos a sala e fomos seguidas por minha mãe, Salete, Danyelle,
Leninha, Clarice, dona N élia, Adalgisa e todas as internas da clínica. Debruçadas na janela,
vimos um grupo de seresteiros na calçada e descobrimos que havia dois violões, um do
João e outro do Apolo, o instrumento de sopro era o sax do Henrique, meu pai tocava -
quem diria! - um pandeiro, Bené e Honório completavam a percussão com as
indispensáveis caixinhas de fósforos.
- Esta canção - eu disse à minha avó quando reconheci o Choro para Nina - foi feita
especialmente pra você.
Era noite de lua cheia, a brisa suave arrepiava a nuca e não passou um só carro na rua na
hora da serenata. O que mais eu poderia escrever?

Poderosa 2 - Sergio KleinOnde histórias criam vida. Descubra agora