M V Belo
Chego à livraria. Cinco da tarde. O escroto do meu chefe me liberou mais cedo, só pra poder ficar sozinho com a Rutinha. Pervertido.
Aqui é meu refúgio. Consigo passar horas e horas aqui, esqueço-me de todos os problemas, e todas as pessoas, principalmente... Bem, principalmente todo mundo.
Hoje quero olhar os livros sobre linguagem corporal. Acho que preciso tomar um novo rumo. Mas, cá entre nós, eu vou é olhar todas as estantes. Folhear as edições mais bonitas, arrumar os livros que estão bagunçados. E olhar. Porque um bom leitor sempre está olhando, não é mesmo?
Fui para a prateleira de autoajuda. Escrito em letras garrafais. AUTOAJUDA. Olhando para mim, da prateleira do meio, uma mulher muito sorridente cheia de sacolas na mão. Título do livro: "12 dicas imperdíveis para enriquecer sem suar.". Pensei no escritor, em casa, recebendo dinheiro por isso. Sem suar.
Peguei uma lombada interessante: 7 passos para identificar um mentiroso. Quando vou retirando o livro, sinto uma presença atrás, como uma barata andando por dentro de uma porta de madeira, você não consegue vê-la, e às vezes nem a escuta, mas sabe que a danada está lá dentro, esperando você sair para dar as caras. Lembra-se do Gregor?
- Oi - digo.
- Oi - a moça responde. De cabelos sem muita graça, entre um castanho escuro e um castanho claro, mascando chiclete e com um par de fones do tamanho de dois cogumelos gigantes. Preciso jogar Super Mario. À noite, talvez. Sorriu e tirou os fones dos ouvidos, deixando eles grudados no pescoço. - Eu acho que esse livro aí não vai funcionar.
- Por que você acha isso?
- Ora porque, todos nós gostamos de pessoas mentirosas. O mundo seria um caos se não existisse mentira.
Ela tem um cheiro bom. Lembra minha mãe. Devem até ter o mesmo nome. No mínimo o mesmo pescoço.
- Eu nunca menti, digo, cruzando os dedos e beijando-os.
Ela ri, mas sem graça. Convenção social apenas.
De repente vira num giro de 180 graus, leve, perfeito. Seus cabelos rodam junto com seu corpo. Ela corre e abraça um homem. Provavelmente da mesma idade dela. Irmão, será? Se beijam. Não, namorados.
Ouço o homem perguntar: "Quem é esse cara ali", olhando-me por cima dos ombros, largos. Ela dá de ombros, me olhando por cima dos seus ombros, seus fones balançando, subindo e descendo.
Recoloco o livro na estante, nem lembrava mais dele em minhas mãos. Parece insignificante e inapropriado agora. E agora, que livro olhar?
Decido não olhar mais nessa estante. Repulsa. Melhor rodar na livraria a esmo, mas evitando o casal. São tantos livros. Será que alguém conseguiria ler todos eles? Talvez, se viajasse para o passado, e usasse o tempo para ler. Será? Acho que enlouqueceria depois de ler tantos livros. Muita informação.
Baixo a vista e vejo um livrinho no chão. Quase encoberto pelo expositor da entrada. Me abaixo para pegá-lo. Na capa um casal na cama, ambos lendo livros, de óculos. Narigudos. Título: 5 regras de ouro para casais felizes. E, o melhor, baratinho. Dois reais e meio. Vou levar. Corro para o caixa. Ninguém ali, apenas uma atendente olhando seu celular. Ou seja, ninguém ali. Pago com minhas últimas moedas, e saio.
O céu está escuro. Olho a nota fiscal. Nela diz serem dezoito horas. Mas parece ser mais tarde. Madrugada. O trânsito continua caótico. Ainda bem que ando a pé. Sem engarrafamentos. Sem multas. "No Stress" era o slogan da moça da livraria... Ops, calma, da camisa da moça que encontrei na livraria. Isso. Sem Estresse.
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Ecos 9
Short StoryNessa edição da Ecos, você pode junto com cada um dos autores percorrer a mesma estrada que um um dia foi trilhada por um aldeão em sua jornada de sua cidadezinha do interior deixando sua pequena loja para cuidar de uma maior na cidade grande, compa...