Meu nariz de Buldogue, às vezes de Poodle

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Roselaine Hahn


Um dia antes dos grandes olhos glaciais mergulharem na viagem de retorno à casa do Todo-Poderoso, ela entregou-me uma carta e pediu para eu procurar o meu pai. Sim, eu tenho pai. Agora. Agora eu sei que ele não morreu na guerra, nem foi comprar cigarros e tampouco pouco abduzido por um extraterrestre.

Ela tinha a rotina de deixar-me bilhetinhos de controle, antes de sair para o trabalho, feito lista de supermercado, num caderno quadriculado: "lava a louça, seca a louça, recolhe a roupa, tem nega maluca no armário, não fica à tarde toda no computador". Eu não entendia bulhufas do que estava escrito, tipo a fonte script MT Bold, tamanho 10, e mesmo se entendesse, não faria a menor diferença.

Na carta, o diacho da letra embaralhada parecia arame farpado enrolado, culpa da presença da senhora dona morte, que não arredava o pé da cabeceira da cama do hospital. Consegui decifrar, com uma lupa, a concessão do perdão ao meu pai e o pedido de cuidados à minha pessoa. Não sei por que fez isso, se tinha certeza de que Deus a salvaria. Acho que as pessoas à beira da morte perdem a arrogância, que deve ser o mesmo que perder todas as certezas.

A sua irmã sabia. Ela pediu segredo. Era para me proteger. Eu não queria ser protegida. A tia contou-me que ele chamou minha mãe de vadia e disse que o filho não era dele, quando ela o procurou cheia de enjoos. Ela falou que os homens agem assim porque não querem assumir compromissos e nem pagar pensão. Também afirmou que a doença da irmã era porque ela viveu cheia de raiva e mágoas, que as doenças nos países baixos das mulheres têm a ver com a maldade dos homens, e que as doenças do emocional apodrecem o corpo. Tudo baboseiras que ela leu nos livros de autocura.

Num ataque de fúria estraçalhei a nega maluca em picotadas na faca de serra. A tia tomou de mim as chaves do apartamento. Era desejo de minha mãe de que eu morasse com ela na sua ausência. Ninguém perguntou o que eu desejava. Eu não queria acordar todos os dias com um sorriso festivo esgaçando as cortinas e irritantes saudações melosas ao novo dia. Ela quer vender o apartamento, tem procuração, vai guardar tudinho para o meu futuro, como a irmã pediu. Sei. Outra prova de que as certezas de mãezinha estavam falidas, como o seu ovário.

Sentei no fundo do ônibus esperando um pescoço envergar a cara antipática pra mim. Não deu outra. Uma moça com cabelos de Barbie, sentada na terceira poltrona à frente, olhou pra trás e me encarou com o queixo nas alturas; estiquei as fuças pra ela de um jeito debiloide com o meu nariz de buldogue. Bem, quando eu tomo o remedinho, o nariz é de poodle.

Dois rapazes cheios de frufrus entraram no ônibus fedido a repolho cozido, com umas calças muito justas de cantor sertanejo. Franzi o nariz de buldogue. Meninos normais não são assim animados. O remedinho ainda não fez efeito. A mãe dizia que são aberrações da natureza, e que se eles se entregassem a Deus, seriam curados.

Não foi difícil chegar até a revendedora de veículos, havia um painel enorme de publicidade em frente à rodoviária. Não pedi ajuda, segui o meu faro, agora de poodle. Não gosto de pedir orientação quando me perco, é melhor continuar perdida a pedir ajuda a um adulto.

Não havia ninguém na porta da loja segurando cartaz com os dizeres "bom dia minha filha, seja bem-vinda". Sei que a gentileza não me faria melhor, assim como não o fazem os estúpidos "bom dia" do WhatsApp, mas porra, me sentiria acolhida.

Entrei na loja com o pé direito, o que tanto faz, tanto fez. O atendente me acompanhou até o seu patrão, no momento em que me viu alongou o queixo com a mão feito um sábio. Bem, sábio com certeza, não deveria ser. Apontou a uma porta, tomou a dianteira, - voltou atrás, deixou-me entrar primeiro, espremeu a testa suada com os dedos peludos. Deve ser o escritório. Três máquinas de cartões de crédito no balcão. Deve-se ganhar muito dinheiro por aqui. Sentei. Ele também, do outro lado da mesa, pronto para me sabatinar, como fazem os orientadores educacionais do instituto certinho imaculado coração de Maria. Batuquei os tocos de unha na calça jeans, fissurada nos posters dos automóveis bala grudado nas paredes das salas dos vendedores. Deve-se vender muito por aqui.

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