Impacto Supremo

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Elicio Santos do Nascimento


À mesa. A menina observa a mistura das conversas, embalada pelo retinir dos garfos e copos e mastigações e assopros. O pai e a mãe comentam, entre dentes, a burrice dos tais "ambestalista", como de praxe os denominam. O avô se mete berrando maldições, aos mesmos endereçados: "Peste de gente burra, sô! " "Brigar com quem dá sustento pra nós! "... A garotinha lembra, com medo, a parte final do sonho que teve há pouco. Na verdade, um pesadelo que ainda não teve coragem de desfiar para a mãe, a quem jamais negou as confidências infantis.

Atira-se repreensões, temores, farelos de pão, saliva ao ar hostil, cujo alvo é o grupo ligado à natureza (tido como inimigo pelos trabalhadores) que ameaça fechar a mineradora, fonte de renda para o lar, cujos membros dependem dos serviços braçais.

Findo o diálogo nervoso, a família se despede. Um a um se dirige ao ofício, ensacar e abastecer caminhões. A garotinha fica algum tempo na frente da casa em construção, meio barraco e meio casa de tijolos, ainda com o reboco à mostra. Corre. Puxa a saia da mãe que, de costas a ela, esfrega os talheres que abarrotam a pia.

"Que foi, menina? ", diz sem atenção.

"Mãe, eu tive um sonho ruim e"...

"Tá, filha... tá bom".

"Mas, mãe! "

"Despois cê me fala, tá bom? Agora a mãe tá ocupada".

A pequena desiste. Entende que não acreditarão nela. Qual adulto daria entusiasmo ao sonho de uma fedelha de nove anos?

Corre a manhã. A mesa do café, antes desmontada, é refeita pela mãe que leva as panelas do fogão às vasilhas especializadas. O bocado das refeições e bate-papos é o mesmo, na mesa comprida e forrada com a velha toalha de flores, diligentemente lavada pela dona da casa. As reuniões digestivas costumavam fluir embaladas por triviais ensejos, ora sobre futebol ora novelas ou fuxicos acerca dos fatos recentes da vizinhança. Mas, há dias, o tema mudou-se para a permanência ou não dos empregos e a ação em suspense nas almas dos maiores prejudicados, a comunidade nativa, entre quilômetros de riquezas florestais e a indiferença, na grande cidade fronteiriça.

A pequena observa o esforço da mãe, como quem acha no futuro uma grande perda de tempo. Permanece entre as bonecas e os jogos de montar. Vê em cada esboço da genitora e do ambiente, repetições. Contudo, não quer mais fugir ou evitar o inevitável, acomoda-se à espera.

Um a um acomoda-se à sala para almoçar. Reinstala-se a comunhão barulhenta de alimentos. A menina prolonga-se na brincadeira. Rejeita unir-se aos outros, fato inédito. A mãe estranha, haja vista que a garota sempre amou a comida e o comer entre os parentes, seja para o desígnio comum ou para absorver as falas dos adultos e imitá-los em segredo, quando dada às travessuras fantasiosas misturadas à realidade apreendida. Mas tudo bem. A dona de casa entrega a filha às manias da idade.

No meio de uma imprecação atropelada sobre a mineradora, melhor, sobre os adversários dela, a menina se ergue. Caminha até a frente do casebre onde nasceu e constituiu-se. Mira as árvores ao redor e derredor, cujas copas parecem tocar o céu límpido de uma área quase intocada pelo progresso humano, não fosse a visão da grande barragem cercada de construções em forma de pequenos prédios, ao longe, bem próxima ao horizonte que demarca o limiar à estrada empoeirada cujo destino é a metrópole, chegada à menina só de escutar. Nada incomum. O único embaraço vem do lar, a mesma confusão vocal. O peito cândido acredita na mentira do prenúncio, suspira aliviado. A pequena agradece. Volve-se à entrada familiar, como se a certeza do último sonho se dissipasse. Entra. Roga à mãe um prato fundo, cheio de feijão e carne, suas porções favoritas. Algumas colheradas...

Estrondo!

A mesa e o chão e o teto sacodem ao ponto de jogar a comida aos ares e os comedores à lona. Cada um para um lado, enquanto a menina voa pela janela.

Estatela-se consciente...

A única testemunha (do mesmo sangue) que contempla a imposição da gigantesca massa cinzenta.

Absoluta.

Como um rolo compressor sobre qualquer forma de vida, morta...

Ou prestes a morrer.

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