Dizem que as três e meia da manhã é a hora em que os maus espíritos saem dos portões do inferno e circulam na terra sem que percebamos. Haviam vários demônios meus a solta agora, e um deles não saia da minha cabeça.
Sam voltou para a poltrona, ouvi quando chamou meu nome baixinho, mas fingi que dormia. Não consegui pregar olho. As lembranças daquele dia ainda estavam frescas. A dor que eu senti quando confirmaram o que eu já sabia. Minha mãe sempre dizia "a mão de que bate esquece, mas a cara de quem apanha não". Tanto tempo se passou e eu ainda me sinto presa ao passado. É como se alguém segurasse meu coração e o apertasse com toda força, mas o que realmente dói é que você nunca imaginou que fosse a pessoa que você menos espera que fizesse isso, realmente o fizera.
- Não finja que está dormindo.
-Com você martelando nesse computador me espantaria alguém nesse andar conseguir dormir.
- Voltamos a estaca da hostilidade?
- Não quis ser rude. Desculpe.
- Tudo bem, não ligo pra pessoas rudes.
-É porque se identifica com elas.
-Talvez seja isso. Já pensou em ser psicóloga?
-Sim.
-Sério?
Esse tipo de pergunta sempre rendia. Eu gostava demais da psique humana, se encontrasse alguém que compartilhasse dos mesmos interesses que eu poderia passar horas conversando. Me virei pra ele com a mão apoiada na cabeça.
-Sim, mas na verdade, meu sonho era ser psiquiatra.
-E por que não é?
-Porque não tinha dinheiro pra pagar uma faculdade de medicina. Alias nem um cursinho pra conseguir bolsa em uma. Mas eu encaro isso mais como hobby mesmo.
- Explique.
-Eu gosto de ler, pesquisar, assistir coisas sobre distúrbios mentais, sabe?
-Legal. A personagem no seu livro tem Boderline né?
-Exato. - Falei surpreendida. - Sabe o que significa?
-Personalidade limítrofe. A pessoa vive em polos de emoções, tem comportamentos compulsivos, agem no calor do momento.
- Diria que acabou de me descrever.
-Quem sabe não foi proposital.
-Acha que nessas poucas horas que estivemos juntos saiba algo mim que não tenha saído da minha boca?
-Añ, acho.
-Por exemplo...?
-Você tem jeito de que gosta de cozinhar ouvindo jazz e tomando vinho, gosta mais de documentários do que longas, e prefere o termo "longa metragem" a "filme". Também aposto que tem uma tatuagem na costela, e provavelmente deve ser uma citação de livro ou música.
-Prestou muita atenção no meu corpo.
- Vi que tem algo escrito, mas não ao ponto de conseguir ler.
- "One Breath at Time". Do livro "O Ar Que Ele Respira".
- Seu Preferido?
-Um Dos.
Ele sorriu, mas desvios os olhos para o chão.
-E quanto ao resto?
-Quem não gosta de cozinhar ao som de jazz acompanhado de vinho?
-Não são muitas as pessoas que fazem isso;
-Não são muitas as que ouvem jazz. Só porque sou, digamos, incomum, deve ter arriscado o lance do longa metragem, estranhamente está certo, eu não tenho muita paciência pra filmes também.
-E quanto ao amor?
-É necessário essa resposta?
-Se estamos sendo honestos, sim.
-Eu não me apaixono. Por ninguém. Posso começar a gostar mas perco o interesse rápido.
-Nunca se apaixonou?
Sentei-me. Ele ia insistir nesse assunto. Não ia culpa-lo, a curiosidade é uma espécie de Karma adiantado, faz com que você queira saber de coisas que podem te ferrar depois, te deixa responsável pelas verdades de outras pessoas. Nesse caso, ele levaria uma parte de mim pra sempre. Talvez isso aliviaria meu coração.
- Tudo bem, não vamos insistir nesse assunto.
-Já sei. Tem uma garrafa aí?
-Onde quer chegar?
- Vamos resolver isso da forma mais madura possível. Verdade ou Desafio. Vai me fazer uma pergunta e eu serei obrigada a dizer a verdade, ou cumprir um desafio.
- É surpreendente, sabia?
- Aham baby.
-Certo, mas só tem nós dois aqui.
- Você vai ser meu Norte. Se cair com a tampa virada pra Leste, você pergunta. Oeste, eu pergunto.
-Você pensou em tudo, planejava jogar comigo desde o início da noite?
-Vamos começar.
Girei a garrafa. Eu perguntaria primeiro.
-Verdade ou desafio?
- Verdade.
- Ainda é apaixonado pela sua ex?
-Não.
-Como tem certeza?
- Uma pergunta por vez.
- Certo.
Tampa para Oeste.
- Novamente. Verdade ou desafio?
-Desafio.
-Uau, vejamos. Eu te desafio a passar um trote.
- Realmente tá levando a sério essa coisa de adolescente em. - Ele pegou o telefone. Não faço ideia pra quem estava ligando. Na verdade eu nem acreditaria que ele ia fazer o trote mesmo.
-Estamos só aquecendo.
-Certo. Se me processarem eu juro...
-Xiiu! Tá chamando.
- "Alô" "Olá senhor. É do chiqueiro?" "O que? Não" "Então por que tem um porco falando?" "Vá a merda seu infeliz, de madrugada e eu recebo isso, idiota, desgraç.."
-Meu deus isso foi ridículo, Sam.
-Sempre achei trote algo desnecessário, sou inexperiente nisso. Minha vez. Verdade ou desa...
-Verdade
-Já se apaixonou alguma vez na vida?
-Sim. Minha vez agora.
-Leste.
-Verdade.
- Quanto tempo ficaram juntos?
-Nunca ficamos.
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Our Night
RomanceAmy é uma jovem moça que está saindo com um homem mais velho, porém com desejos um tanto quanto incomuns para ela. Na noite em que saem juntos ela acaba encontrando alguém que a faz enxergar sua vida com outros olhos.