Quebra II

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Curvou-se um pouco para colocar o aparelho em cima da mesa de centro aproveitando o momento para bagunçar o cabelo do filho e receber um resmungado "Pô! Não atrapalha não, mãe!" como resposta. Enzo estava ali a horas, sentado no tapete da sala todo concentrado nas imagens que lampejavam na tela de LCD.
Sentada no sofá, Lauren observava os movimentos rápidos e enérgicos do menino. Não entendia como o filho conseguia passar tanto tempo olhando para aquela confusão de pixels coloridos saltando e girando na televisão. Cinco minutos daquilo já era pra deixar qualquer um zonzo. Seu olhar trilhou para o celular novamente e coçou a nuca, inquieta. Aquela ligação foi muito estranha.
Levantou-se de súbito. "Enzo, vai arrumar suas coisas. Estamos de saída", disse enquanto alcançava o aparelho na mesa, colocando-o no bolso da calça e já caminhando para o seu quarto.
Sem tirar os olhos da tela, o menino esticou o pescoço pra reclamar, "Mas mãe, você disse que a Ari estava vindo!"
Enzo não diria isso a nenhum de seus pais, mas preferia quando era Ariana a ir buscá-lo porque ela sempre o levava para tomar sorvete. Ela sussurrava-lhe com uma piscadela, "Quer saber um segredo doce e gelado?" É esse era o código dos dois para a farra antes do jantar. Aí quando chegavam em casa já fartos da rua, Camila reclamava e brigava, mas no fim os dois sempre dobravam a fera latina. Cada um do seu jeito, claro.
Pena que Ariana não ia buscá-lo mais vezes, como era antes.
A cabeça de Lauren apareceu na porta de repente, "Olha pra cá. Olha pra mim Enzo" chamou num tom ríspido e o menino finalmente obedeceu, "Vai pegar suas coisas agora. A gente tá indo pra casa da sua avó".
Enzo franziu a testa. Ainda imperou de interrogar a mãe sobre o porque de ir pra casa da avó, sobre o carro dela na oficina, sobre a falta de carona de Vero, e o mais importante, como recuperaria sua fase no jogo, mas por fim grunhiu sua frustração. A mãe parecida sempre nervosa nesses tempos, melhor não irrita-la mais.
-x-
"Mas que inferno tá esse transito hoje, meu Deus!" Esbravejou, descontando toda sua frustração na buzina. Um senhor no carro ao lado lhe deu um olhar atravessado, o que fez Miley refazer a performance da buzina com ímpeto novo. Repetidas vezes.
Por muito bem, se fosse pra ficar presa no carro em pleno fim de domingo a caminho da casa de Ari, alguém ia ter que expiar esse pecado junto com ela.
Olhou para o lado e lá estava sua presa, ainda folheando aquela maldita revista sem um pingo de preocupação nesse mundo.
"Stella, meu anjo", disse com um sorriso que era só dentes, "larga", arrancou a revista das mãos da mulher, "Essa. Droga. De. Revista." E arremessou a bola de papéis amassados lá no vidro traseiro.
Stella nada disse, apenas lhe deu um olhar. Aquele que deixava a loira ainda mais fula da vida. Mas por fim, suspirou.
"Você não tá ajudando sabia?"
"E você está sendo difícil"
"Aii, Stella! Como você consegue ser assim ein?"
"Assim?" Stella franziu a testa, parecia genuinamente confusa.
Miley suspirou, sôfrega. "Sim, desse seu jeito aí. Essa sua calma toda as vezes me deixa louca!" Bateu com as mãos no volante para enfatizar o sentimento.
"Só às vezes?" Stella lhe deu aquele olhar de novo.
"Tá! É sempre, mesmo! Mas olha que me dá uma vontade de te sacudir viu? Dar uns tapas nessa sua cara pra ver se você acorda pra vida!" Miley brincou, rindo com gosto dessa vez. Sua irritação começava a ceder já que finalmente a massa infinita de veículos a sua frente decidiu fazer aquilo para o qual foi criada: se locomover.
Foram passando pela via acompanhando o fluxo lento dos carros, jogando conversa fora uma com a outra no entremeio, uma passada de mão mais ousada aqui e acolá... Até que, quase trinta minutos depois, avistaram umas luzes distintas uns cem metros à frente delas, e logo em seguida um burburinho e o som distante das sirenes se fez presente.
"Parece que foi feio", Stella a olhou apreensiva por um instante, antes de voltar sua atenção para a confusão de pessoas, viaturas e ambulâncias que se formava na pista.
"É, estão fazendo um desvio" murmurou Miley, os olhos mais atentos ao tráfego agora.
O sol já havia descido no horizonte e o céu estava pingado de púrpura e anil quando Miley manobrou o carro para o lado oposto da via, segundo para o desvio provisório feito pela polícia. Foi então que uma sensação repentina fez subir um arrepio pela sua nuca e a loira trilhou o olhar uma última vez para a cena caótica que se passava do outro lado da pista.
Sentiu seu corpo falar no mesmo instante.
Com a brusca desaceleração, Stella instantaneamente por as duas mãos no painel do carro, o olhar assustado questionando a namorada. Mas Stella tinha o rosto voltado para o vidro da janela, suas mãos pálidas num aperto visceral no volante.
Dos lábios da loira saiu apenas um sussurro trêmulo.
"Ariana..."
-x-
Acordou de seu sono turbulento com o toque insistente da campainha. Por um momento, sentiu como se ainda estivesse dormindo, como se aquilo tudo não tivesse passado de mais de um de seus pesadelos.
Mas, enfim, despertara para a realidade fria e escura que era a ausência de Ariana no quarto, em seus braços. Mas espera. A campainha. Ariana havia retornado? Um suspiro pesaroso... não Ariana tinha levado suas chaves. Talvez fosse uma das meninas, ou as duas provavelmente. Depois que Ariana fechou aquela porta, tudo o que Camila fez foi zanzar de um lado para o outro do quarto, a sós com o tumulto de seus pensamentos. Seu martírio interno durou por quase uma hora, então pensou em ligar para  Ariana várias vezes, mas desistia no instante em que teclava o primeiro número. O telefone de casa era mais enfeite do que utilidade já quer mal o usavam. O jeito era usar o seu celular que apesar de Ariana ter praticamente rachado a tela toda, ainda funcionava.
Havia caído no sono depois de tanto chorar. Não queria lembrar. Mas Deus, como sua cabeça girava, latejava, doia e mais essa maldita campainha que não parava de tocar.
Levantou-se e sentou na beira da cama, passando as mãos no rosto e nos cabelos antes de conferir o estado de suas roupas. Estavam amarrotadas, mas pelo menos não repetiria o espetáculo mais cedo.
Desceu as escadas e foi acendendo as luzes pelo caminho, suas pupilas se ajustando a gradual mudança no ambiente.
Quando passava pela antessala do estúdio seus passos diminuíram. E foi então que uma visão, um lampejo do passado a arrebatou de si por alguns momentos.
Ali estava ela, concentrada no seu mundo enquanto dedilhava alguma melodia no violão, linda como sempre.
Camila deixou seu olhar passear por aquele espaço, guardando cada detalhe na memória mais uma vez até que seus olhos fitaram um objeto distinto.
Caminhou devagar até a bancada onde também repousavam o notebook e alguns livros, e então estendeu a mão para toca-lo. Mas hesitou. Alguma coisa, força ou sei lá, parecia paralisar seus dedos naquele instante.
Sua consciência? Talvez.
O ruído persistente e agudo a forçou fora de seu mundo paralelo, e com um último olhar para esse objeto, Camila virou as costas e retomou sua trajetória.
Segurou a maçaneta, abriu a porta, e pela segunda vez naquele dia as palavras, o ar, o chão, tudo lhe fugiu.
Na sua frente, aqueles olhos marejados se ergueram para encontrar os seus castanhos assombrados.
E depois de alguns segundos que literalmente duraram uma eternidade, falou.
"Posso entrar?"

PerchanceWhere stories live. Discover now