"Ah, são vocês", disse com um sorriso pequeno quando parou cerca de uns quatro passos da mesa. Seu olhar alternava entre as duas mulheres, notando a estranha proximidade dos corpos e as expressões agravadas, "Tá... tudo bem por aqui?", a pergunta retórica deixou seus lábios hesitantes. E foi retórica e hesitante porque, definitivamente, algo fora do comum acontecia ali. Havia uma cadeira caída no chão para o lado da entrada principal, o ar no lugar estava consideravelmente mais denso e gelado do que de costume e, a julgar pela postura enrijecida de ambas as mulheres, Stella podia apostar sem quase sombra de dúvida que esse 'algo fora do comum' tinha a ver com aquela palidez no rosto de Camila e a leve vermelhidão no de Dua. A inglesa tinha as costas pressionadas contra a estante e olhava fixamente para o perfil da cubana, que por sua vez olhava vagamente na direção da porta que dava acesso a escada espiralada na área externa da casa, por onde Stella costumava entrar no arquivo. Dos poucos passos que a separava delas, os olhos treinados de Stella não deixaram de notar o contraste marcante entre as duas mulheres. Em como, naquele momento, elas espelhavam o exato oposto uma da outra, desde a tonalidade dos cabelos a da pele, do modo como se vestiam e as cores do tecido que as abraçavam. Atrás de Stella, na parede ampla e branca, a dança ora lenta, ora rápida das sombras com a baixa luz projetada pelo equipamento fazia com que as imagens piscassem e mitigassem numa dessincronia vertiginosa no painel. Os flashes esbranquiçados que se espalhavam dali para as demais paredes do ambiente lembravam luzes de faróis, mas o que mais chamou a atenção da fotógrafa foram esses mesmos faróis refletidos nos olhos delas, um par claro e friamente curioso, o outro escuro e silenciosamente assustado. Que desperdício não ter uma câmera em mãos naquele momento... E assim os segundos se passavam em que o único ruído ouvido era o zumbido elétrico da central de ar que se confundia com o chiado do antigo projetor. O silêncio se espaçava desconfortavelmente no ambiente, mas Stella decidiu que era melhor não questioná-las mais e retomou seus passos quietos até a mesa, onde despejou com cuidado o conteúdo de uma caixa que carregava. Enquanto separava e organizava metodicamente os negativos e algumas peças em cima da superfície polida, a mulher as fitou de canto de olho uma ou outra vez, até que percebeu uma troca de olhares intensa entre as duas mulheres. Foi só quando Camila quebrou o contato silencioso e começou a andar na sua direção que Stella baixou o olhar discretamente e voltou ao seu trabalho. Já tinha seus próprios reveses sentimentais para enumerar e não estava a fim de adicionar mais dois a lista. Ou melhor, três. Porque embora o terceiro elo dessa corrente não estivesse ali para contar, sua presença se fazia audível no tom de voz de Camila quando ela falou. "É, hum... Stella?", ouviu-a chamar numa voz pouco estável, "Já que está aqui...", nessa, ela levantou o olhar dos dedos de Camila que tamborilavam nervosos na borda oposta da mesa, "Gostaria que você me desse sua opinião sobre uma ideia que tive pra exposição. Quer dizer... se não estiver muito ocupada agora".
Stella sorriu um pouco, meneando a cabeça. "Ah, não. Depois eu arrumo essa bagunça, é coisa da Miley...", seu olhar desviou por um instante para a inglesa que permanecia de pé perto da estante, quase inexpressiva, seus olhos negros agora fitando o chão a frente dela, "Do que se trata?", perguntou solícita, voltando sua atenção para a cubana. Camila retribuiu com um sorriso meio embaraçado e um aceno curto de cabeça, então caminhou com certa pressa até um armário seccionado que ficava numa parte mais reservada do arquivo, fixado no canto da parede em que ficava o painel. Depois que girou seu segredo na tranca da porta e a destravou, ela retirou um tubo longo preto e um notebook do compartimento antes de fechá-lo, e então seguiu de volta para o centro do cômodo, onde Stella a esperava com uma placidez na expressão que era enervante. Suspirou irrequieta quando percebeu Dua intentando uma saída discreta pela porta dos fundos, até que sua voz enrouquecida ecoou alto no silêncio hermético do lugar, fazendo a inglesa parar já com uma mão na maçaneta. "Esse é o... assunto que eu queria tratar com você, Dua". A morena girou devagar nos calcanhares, seus olhos negros levantando aborrecidos do chão para enquadrar os de Camila na distância dos poucos metros que as separavam. Auxiliada por Stella, a mulher começou a desenrolar algumas folhas grandes de um papel branco e grosso, espalhando-as cuidadosamente sobre a mesa. Pareciam ser plantas ou mapas pelo tamanho, mas assim que Dua capturou um relance de uma das folhas percebeu de imediato a semelhança com o traço da cubana. Estreitando os olhos, fez seu caminho de volta até a mesa larga, onde Camila e Stella agora se debruçavam sobre os papéis e falavam baixo entre si. Alguns dos modelos exibiam imagens impecavelmente retratadas em grafite, nas mais variadas tonalidades, enquanto outros exibiam formas bem definidas e paletas coloridas, o traçado em uns deles se assemelhando aos contornos dos cenários e alas da Galeria. Camila ergueu o olhar por um instante, a testa franzida no que aparentava ser concentração, então acenou para que Dua se sentasse numa outra cadeira ao lado dela, antes de voltar sua atenção para o computador. A inglesa arqueou uma sobrancelha numa pergunta silenciosa, mas, como não obteve resposta, sua curiosidade venceu sua impaciência e Dua consentiu o pedido mudo da outra mulher. Quando sentou, cruzou as pernas tediosamente, assim como os braços sob o 'V' tentador do seu decote, antes de trilhar seu olhar cético para a tela inicial do notebook. Ali, Camila abriu um ícone nomeado 'Sinestesia' e então uma demonstração de slides em vídeo começou a rodar no LCD a sua frente. "Bom, esse é o primeiro esboço de Sinestesia...", informou-as num tom compenetrado, antes de subir para sua altura. Enquanto Stella se juntou a Dua e sentou, ambas agora assistindo a demonstração sem pestanejar, Camila se manteve em pé entre elas, meio passo atrás dos recostos das cadeiras. Sentia uma tensão quase paralisante pesando-lhe nos ombros e o que de calma conseguia expressar no rosto era mantido às duras penas. Ansiosos, seus olhos trilhavam da tela do computador para o topo da cabeça de Dua mais vezes do que seria considerado normal, enquanto seus dedos se apertavam em punhos cerrados que mantinha cruzados pelo peito. Era como se aquela sombra de medos e dúvidas que havia se dissipado durante a noite que passara com Ariana ameaçasse pairar sobre sua consciência novamente. Mas o pior de tudo foram os flashes daquele sonho, o que desde o acidente não havia mais se repetido, mas que lampejavam no espelho de sua mente agora, causando-lhe uma sensação crescente de náusea. Teve que fechar os olhos por uns segundos, enquanto tentava controlar sua respiração. Embora tivesse disfarçado, Camila ainda não conseguia processar direito o que tinha acontecido ali. E se Stella não tivesse chegado? Teria se afastado? Por que não o evitou antes que acontecesse, quando tinha Dua sob seu domínio? E aquele tom malicioso com que a inglesa mencionou a mensagem que havia enviado na tarde anterior, enquanto Ariana passava o tempo com as amigas no alpendre lá fora? E os olhares estranhos, o rastro de portas destrancadas, a insinuação sobre a tal noite com a Ari dois meses atrás? Sim, estava claro agora que aquela cena na cozinha foi só mais um ato nessa trama dantesca na qual a inglesa a estava enredando. O problema é que Camila já não sabia com certeza onde estava atuando e onde não, nem por que ou quando isso começou, se conseguiria levar essa situação até o fim. Tudo o que Dua fazia, cada som que emitia, cada bater de cílios, tudo parecia ser proposital e ao mesmo tempo não. Não conseguia mais compreender as intenções da ingoesa depois do que ela fez momentos antes. E quanto a si? Já começava a duvidar dos seus próprios motivos também... Será que, em algum momento anterior ao acidente, Ariana havia por algum motivo confidenciado a Dua o que aconteceu entre ela e a ex-esposa? Será que ela já sabia de algo naquela tarde quando chegou sem aviso e flagrou o beijo que Lauren lhe forçou? E o que se passou depois da carona que a inglesa ofereceu a ela, na noite daquele mesmo dia no hospital? Não, Lauren estava com a Verônica, afinal. E não queria nem pensar na possibilidade de ele estar envolvido com Dua de alguma forma. Temia sequer imaginar o que os dois provavelmente conversaram, se é que ao menos conversaram... Temia ainda mais o fato de que, por mais insano que tivesse sido aquele momento com a inglesa, no fundo não tivesse sido tão inesperado assim. Sentiu alguma coisa ali, sim, e sabia que grande parte disso era Ariana. Aquela Ariana que virou seu mundo de ponta cabeça anos atrás, foi a que Camila viu diante dos seus olhos ali, naqueles lábios vermelhos de perdição. O que a consumiu foi o brilho dos olhos amendoados que trouxe mais colorido a sua vida desde aquele primeiro encontro, e que aos poucos foi desvendando seus grises e breus, descortinando os cantos mais sombrios de sua mente outrora atravancada naquela vida de 'mulher Amélia', sempre devotada ao lar, marido e filho, sempre esquecida de si. Mas essa era outra história, uma parte dela que era feita de memórias tépidas e felizes também, mas que agora eram lampejos lívidos de um passado que sentia já tão distante. No momento presente só queria saber para onde, em nome de Deus, onde, naquele ínfimo e absurdo instante no tempo, foi parar toda aquela raiva e desprezo que sentia por Dua. Porque, no fundo, sua mente sabia que não era sua Ariana ali, mas apenas um pálido reflexo dela. Não tinha como comparar, mas, mesmo assim, seu corpo não reagiu da maneira que deveria. E dessa vez a dúvida sobre o motivo daquela viagem de Ariana, quase vinte meses atrás, não lhe assombrava. Camila não estava inebriada pelo álcool ali, ou pela ansiedade impotente de ver um filho acamado. É, talvez Dua tivesse mesmo um feitiço naquele negro dos olhos dela... Ou talvez não. Talvez nada disso explicasse esse algo diferente que sentiu.
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Perchance
RomanceDesde a oficialização da união há dois anos, Camila e Ariana cultivam uma relação cada dia mais cheia de amor e cumplicidade. Mas nem tudo é o que parece. • adaptação de uma fanfic clarina •