Prelúdio

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Era cedo e ainda chovia quando Camila deixou a atmosfera morna e silenciosa do quarto para o ritmo constante e profundo da respiração de Ariana. Desceu as escadas na mesma passada demorada do sol que se escondia no horizonte acinzentado lá fora, os pés como se pisassem num tapete de nuvens em vez de madeira sólida, mas ainda os tinha no chão o suficiente para se lembrar de levar o guarda-chuva e colocar um roupão dessa vez. Mesmo que agora a precipitação fosse mais aquela neblina esbranquiçada típica dessa época do ano, ainda soprava fina e gelada pelos verdes  amarelados do jardim orvalhado. Seus passos a levaram por entre as poças no gramado, pelos corredores de cercas vivas até a estufa das flores. Apesar da estação, algumas espécies ainda floresciam graças aos cuidados constantes de um sábio jardineiro. Camila sorriu para o pequeno emaranhado de pétalas azuladas e vermelhas que aninhava entre seus dedos, então fez seu caminho de volta ainda sorrindo para as memórias felizes e tépidas que brincavam na chuva suave e na luz fria ao seu redor, saltando entre os muros verdes e as poças turvas do jardim. Uma delas saltava mais alto que as outras, a promessa que fizera a sua companheira horas atrás, e mais uma vez se encontrou absorta e encantada pelo significado que a noite passada teve para ambas. Nos intermináveis dias em que o abismo da dúvida se alargava, aquela dolorosa indiferença apenas crescia entre elas depois de cada noite desperdiçada sob os lençóis. Agora, diante de tudo o que passaram, sentia que essa noite foi uma reaproximação não apenas física, mas, e acima de qualquer intenção carnal, foi a reconquista emocional que tanto precisavam. A redescoberta de uma ligação muito mais profunda e inquebrável entre elas, uma que tinha sabor de novidade e futuro, e que marcou o reencontro de suas almas. Lembrou-se, e essa reminiscência lhe trouxe certa trepidação, de que mesmo naquele momento de completa entrega Ariana ainda parecia resistir, como se de algum modo estivesse ciente, sensível àquela chama escura que ardeu dentro do seu peito sua vida inteira. Camila sabia contra o que ela lutava, por ocasiões e momentos até sentiu aquela força misteriosa tentando consumi-la, e por isso também não cedera completamente aos seus instintos ali. Na verdade, noite passada lhe trouxera a confirmação daquilo que já suspeitava. Havia notado as marcas daquele conflito interno de Ariana no corpo dela, tentado ignorar a opacidade cansada que tingia o amendoado nos seus olhos agora, porque sabia que ela mais fingia que sentia estar tudo no lugar, que lutava em silêncio contra o fato de as peças não estarem mais nos seus encaixes perfeitos, ainda mais agora depois do grave trauma que sofreu e das sequelas que habitavam seu físico e sua mente. Ariana chegou mesmo a afirmar entre murmúrios que ainda não tinha a memória exata do dia do acidente e, isso, Camila tinha certeza, era o que mais perturbava sua companheira. Era certo que ainda precisavam conversar sobre o tempo deixado em suspenso entre elas desde muito antes daquela tarde sombria de domingo, mas o que mais queria nesse momento era ver Ari bem, completamente recuperada. Foi então que seus pensamentos foram interrompidos pelo súbito eco de um latido alto, que foi seguido por um grito ainda mais assustado e estridente e entremeado por resmungos de uma jura pros céus. Camila balançou a cabeça e riu um pouco, já na área alpendrada da casa. Assim que adentrou na sala, apressou os passos na direção das escadas, mas então outro ruído repentino a fez parar logo no segundo degrau. Esticou-se um pouco sobre o corrimão para ver se Sônia já estava pela cozinha, mas o ambiente parecia vazio. Quem ligaria tão cedo para o fixo da casa? Com um suspiro receoso, resolveu atender. "Alô?" "Bom dia, é da residência da senhora Ariana Grande?" Reconheceu aquele tom afobado de imediato, mas quis confirmar mesmo assim. "É, sim. Com quem falo?" "Ana, hum... Senhora Camila?" "A própria", afirmou, tentando abafar uma risada. Ariana tinha acabado de ser transferida do quarto da UTI naquele dia e, apesar da situação não ter sido nem um pouco cômica, Camila nunca ia esquecer a cara que uma das enfermeiras fez enquanto ajudava a neurologista na troca dos aparelhos, curativos e então das batas da esposa. Assim que viu Ariana despida, a pobre moça arregalou os olhos e hiperventilou do nada, segundos depois estava tão vermelha que parecia à beira de um ataque cardíaco. "Err... É do consultório da doutora Tereza Dias. Ela pediu pra avisar que os exames finais da sua esposa estão prontos e que o retorno está marcado para a próxima segunda-feira". "Ah, que ótimo! Obrigada...", respirou mais aliviada com a notícia, "Mas, hum... tem alguma novidade que possa me adiantar sobre os resultados?" "Sabe que eu não posso te passar essa informação, senhora Camila" Riu um pouco no tom exageradamente formal da enfermeira, "Eu sei, eu sei. Você tá certa", uma pausa, então falou num tom provocativo, "A gente se vê na segunda, então. Ah, e a Ariana tá te mandando um beijo, viu?" "Hum, é... sério? Eu– obrigada! Senhora Camila e, hum... Até segunda. Tenha um ótimo dia!"

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