Ritual

91 11 2
                                    




Os dias foram passando naquele mesmo ritmo melancólico dançado pelo vento e pelas folhas amareladas no seu jardim. Assim como eles, as horas flutuavam preguiçosas, suspensas no ar, tremeluziam sob os raios do sol outoniço, acumularam-se como um tapete cor de sapê seco sob o capim verde.

Suspirou para a imagem que se projetava no espelho de sua mente... Desde que havia deixado o hospital três semanas atrás, todas as suas manhãs começavam assim, bem frias, cedo demais.

Sempre o mesmo ritual.

Tomava seus remédios, tirava o gosto amargo que deixavam na boca, rosto lavado, abrasões e lesões embalsamadas, descia as escadas devagar ao som distante dos pássaros lá fora, seguia para a área externa com o sol ainda nascente, então se sentava naquele banco de madeira envelhecido sob a copa da grande figueira, as mãos acalentando a sua aliança enquanto seus pés descalços amaciavam a grama orvalhada.

E lá ficava esperando a hora do café da manhã, até que Camila fosse chamá-la.

Sentia a presença dela todas as vezes, algumas bem próxima, outras como se a observasse do seu lugar seguro. Mesmo quando a mulher não dizia uma palavra ou tentasse chegar de mansinho, sem emitir um ruído para não assustá-la, Ariana pressentia sua presença como um ímã antessente o outro.

Como se o fato de não poder vê-la já não a assustasse o suficiente... Ainda tinham os lapsos frequentes de memória, as mudanças repentinas de humor, as minúsculas suturas na pele em volta dos seus olhos que ainda incomodavam...

No final, tivera mesmo muita sorte. Tinha pessoas que cuidavam dela, sem paparicos demasiados e Ari se sentia agradecida por isso, por tentarem manter o mínimo senso de normalidade nessa vida já tão marcada pela incerteza do futuro.

Recebera a visita de alguns nomes importantes, de parentes de Camila, mas a que mais lhe tocou foi Sinu. Embora não conseguisse lembrar muito sobre ela, e Ariana tentou, tentou demais lembrar, só a presença dela, a forma de como falava, acalmou-a de uma forma tão profunda, tão maternal, tão mulher...

Miley e Stella sempre passavam um tempo com ela, tratavam-na com carinho e humor costumeiro, embora Ariana notasse certa trepidação nas duas mulheres quando falavam sobre os dias que antecederam ou sucederam ao acidente. Elas nunca mencionavam o tal dia em si.

Ariana ainda tinha algumas lacunas para preencher, mas o mais importante estava lá, o companheirismo, a amizade, expresso todos os dias nos pequenos gestos. Camila havia lhe contado o quanto ambas foram presentes, como a confortaram nos dias mais difíceis, os de sua estadia prolongada na UTI.

Já Dua era presença quase que constante em sua casa e Ariana passou a preferir a companhia da inglesa a de qualquer outra pessoa. Era mais fácil estar com ela do que com Camila ou Miley, porque mesmo que tentassem, nem sempre elas conseguiam disfarçar a melancolia em suas vozes.

O menino, Enzo, sempre puxava conversa quando a via pela casa. Ele brincava com seus cabelos, beijava-lhe a bochecha com cuidado, falava-lhe do dia com os colegas de escola, dos games irados que estavam para ser lançados, das aulas de bateria, e do quanto estava gostando de clicar tudo que via com a câmera incrível que Ari havia lhe dado no seu aniversário. Contava-lhe tudo com a inocência eufórica característica das crianças da sua idade e, embora Ariana não recordasse muito, sempre sorria e continuava o papo com o garoto. Sentia como se o amasse de muito tempo, só estava hesitante de como expressar mais esse sentimento já que não tinha uma referencia segura do seu passado recente com ele.

Ah, e Camila...

Sentia-se estranha e saudosa perto da mulher que agora se declarava sua esposa. Se não fosse pela aliança em seu dedo e pelos relatos das amigas, Ari não teria acreditado que havia realmente casado com Camila. Era muito... Surreal. Amava Camila demais, sentia isso no mais íntimo do seu ser.

PerchanceWhere stories live. Discover now