Blefe

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Respirou fundo antes de engolir contra a bile que subiu em sua garganta. Tentava manter a expressão neutra, mas a verdade é que sua compostura era reduzida a fiapos quando essa mulher estava por perto. A frieza afiada no olhar dela, a mordida no tom grave e maledicente da voz, aquela mão que segurava a de Ariana sempre tão intimamente... Camila não saberia dizer exatamente o porquê, mas sentiu um leve suor frio se espalhar por seu corpo quando Dua lhe questionou sobre a mensagem que havia enviado na tarde anterior. Mas agora isso pouco importava.

Havia algo que lhe incomodava muito mais que a estranha insinuação da inglesa. Era esse silêncio prolongado de Ariana diante do que a sócia acabara de fazer e que não podia ser mais preocupante, especialmente depois de tudo o que aconteceu na madrugada passada, do que ainda acontecia há poucos momentos nessa manhã... Embora sentisse que estava no seu limite, sabia que mesmo a menor demonstração de insatisfação com o que presenciara ali poderia significar muitos passos atrás nessa tortuosa caminhada para reconquistar a confiança da sua companheira. Além do que, de onde Camila pôde ver a cena dessa vez, Ariana provavelmente tinha sido tão surpreendida quanto ela pelo ardil de Dua. Ou assim ela queria acreditar. Mas o que mais poderia fazer naquele momento a não ser jogar conforme as regras da inglesa? O que lhe custaria se não apostasse no subterfúgio? Nada que já não tivesse perdido uma vez, mas era tudo o que não estava disposta a arriscar novamente. Então, quando finalmente aqueles olhos machucados voltaram-se na sua direção, Camila teve sua resposta. Ela só não sabia se seria assim tão boa jogadora para provocar o destino, mas com a graça de um anjo caído foi se aproximando, uma cadência no passo descalço que fazia as barras da calça de moletom clara que usava se arrastar pelo chão da cozinha como um sibilo venenoso. A regata branca colada em seu torso evidenciava a tensão nos músculos e o bronze na pele, embora o cabelo preso num rabo de cavalo bagunçado lhe desse um ar mais leve e juvenil. É, talvez não fosse assim tão astuto e elegante demônio quanto Dua, mas quando suas mãos foram para os lados do rosto de Ariana, seus lábios descendo até os dela para provar daquela exótica mistura de licor, cacau e frutas na língua que se demorava no beijo, seus ouvidos captaram dois ruídos distintos e reveladores. Um suspiro trêmulo da inglesa e o gemido baixo que a Ari deixou escapar entre seus lábios. Se não compreendeu tão bem o significado daquele primeiro, mas o tomou como um pequeno triunfo para si, o segundo, ah, esse som ela sabia interpretar como ninguém. Esse som traduzia o doce sabor da reconquista em sua boca... Quando enfim interrompeu o contato entre seus lábios, Camila subiu vagarosa para sua altura e se colocou de pé ao lado da cadeira em que Ariana estava sentada, então escorregou sua mão esquerda para a nuca dela para que seus dedos pudessem massageá-la atrás das orelhas. Ari se derretia e ronronava como uma felina doméstica quando era afagada ali. Camila baixou o olhar por um instante e sorriu satisfeita ao ver aquela expressão adoravelmente desnorteada no rosto da esposa. Seu sorriso cresceu mais faceiro ao confirmar que Dua já não segurava a mão de Ariana, a mesma mão que agora era uma garra de dedos que apertavam a barra da camisa sobre a coxa nua, enquanto a maçã mordida foi esquecida entre os dedos bambos em cima da mesa. "Só a sua sócia mesmo pra te fazer demorar tanto pra voltar pro quarto, não é, amor?", indagou a companheira com leveza praticada na voz, embora seus olhos castanhos não deixassem os negros da mulher que agora a encarava com uma expressão inescrutável. Nessa, a boca de Dua pendeu ligeiramente aberta, como se esperasse que as palavras certas a socorressem, mas logo se fechou com um grunhido baixo assim que Ariana sentiu um não tão sutil raspar de unhas na pele detrás do seu pescoço. Dua não deixou de notar o embaraço de Ariana com a situação, o que fez o canto da sua boca curvar minimamente enquanto seus dedos começaram a tamborilar maquinações no mármore frio da mesa. "Ah, e bom dia pra você também, Dua. Não te esperava tão cedo", cumprimentou a inglesa segundos depois, abrindo um sorriso bem humorado demais pra ser genuíno quando acrescentou, "Você pode, hm...", fez um gesto pro lado com o polegar da mão livre, "... esperar só um minutinho lá na sala?" Dua segurou seu olhar por mais uns enervantes dez segundos, sem dizer uma palavra ou mover um músculo, até que por fim olhou de relance para o relógio retrô que ficava na parede ao fundo. Os ponteiros marcavam exatas oito horas. Inspirou levemente ao se levantar da cadeira, movendo-se devagar como quem nada anseia da vida. Então na altura dos seus saltos, o olhar da inglesa se tornou mais intenso sob os cílios pesados, o vermelho fechado em seus lábios cheios se espalhando em um sorriso lascivo. Camila piscou, tentando mascarar a confusão que a súbita mudança na linguagem corporal da outra mulher lhe causou. Quando então Dua deu um passo curto à frente e inclinou ligeiramente a cabeça para lhe dar aquele olhar de soslaio característico dela, mensurando-a de cima a baixo como faria a uma peça de carne, ou talvez a uma obra de arte, Camila se pegou engolindo em seco. Em silêncio a inglesa fitou-lhe os olhos castanhos uma última vez, em silêncio virou para deixar a cozinha na passada demorada e gatesca.

PerchanceWhere stories live. Discover now