Capítulo VIII

4.5K 391 21
                                    

        Estou de frente para a porta do quarto de Dayse. Posso ouvir algo lá dentro, mas não consigo dizer o que ela possa estar fazendo. Fecho minha mão direita e bato na porta três vezes. Espero alguns segundos demorados e, então, a porta se abre. Dayse é baixinha e me olha com um certo tédio nos olhos. Definitivamente não há como dizer que essa garotinha não é filha do Senhor Deh'Vil.
        — Pois, não? — ela pergunta, arqueando sua sobrancelha rala e clara.
        — Vim te colocar para dormir — digo, dando de ombros.
        — Não é como se eu fosse aleijada — ela cruza os braços. — Sei muito bem deitar em uma cama, fechar os olhos e dormir. Não preciso de ajuda para isso! — ela resmunga.
        Definitivamente meu emprego é patético. Não irei dizer que Dayse está errada, pois está certa. Mais certa do que eu gostaria de admitir. As babás precisam fazer tudo para as crianças, desde mandar escovar os dentes até colocar para dormir. Esse é o trabalho de uma babá e toda criança gosta disso. Mas, por algum motivo, Dayse era uma criança diferente. Quero dizer, Dayse nem parece uma criança de fato, mas sim uma adulta que sabe cuidar do próprio nariz. Mas ainda assim, estou sendo paga para fazer o meu trabalho.
        — Irei te colocar para dormir, Dayse — digo, cruzando os braços assim como ela.
        Ela revira os olhos de forma tão intensa que chego a pensar que ela pôde ver o seu interior.
        Sem dizer nada, ela simplesmente vira as costas e adentra o quarto, adentrando outro cômodo aleatório que imagino ser o seu banheiro. Fecho a porta atrás de mim. Passo meus olhos sobre seu quarto e mapeio todo local. É definitivamente o quarto que eu nunca pude ter quando criança, já que meu quarto era dividido com mais uma garota. Garota essa que esperava ansiosamente que alguém fosse adotá-la. Como era o nome dela mesmo? Não me lembro. Não me recordo. A verdade é que há poucas lembranças minhas daquele orfanato e o pouco que me resta são borros de freiras me abraçando e flashes de crianças brincando de pular corda. Mas me recordo muito bem que o sonho da garota com a qual dividia o quarto, era ter um quarto todo cor-de-rosa, assim como o quarto de Dayse.
        Ando até sua penteadeira, que estava cheia de caixinhas e perfumes, passando as mãos sobre ela. Posso ver várias luvas logo no canto. As luvas variam de preto, amarelo, branco e vermelho. Não evito estalar os lábios e crispar os olhos. Trabalhei com várias crianças em toda a minha vida, cada uma com gostos de roupas diferentes. Algumas se vestiam de fadas, outras amavam tranças no cabelo e algumas até se fantasiavam. Mas usar luvas em uma só mão era completamente novo para mim.
        Tiro meus olhos da penteadeira e foco sobre a cama de Dayse que parecia muito confortável. Estava arrumada e bem forrada. Dayse ainda não saiu do banheiro. Ando em direção a sua cama e decido deixá-la pronta para que Dayse pudesse dormir. Coloco o cobertor lilás nos pés da cama e ajeito seus travesseiros para que fiquem mais macios e confortáveis. Uma afofada aqui, outra lá… Uma puxadinha de lençol acolá e, então, para a minha surpresa, algo simplesmente cai do meio dos travesseiros para o chão. É algo inteiramente rosa e dourado. Crispo os olhos, pegando o objeto. Não era um livro, tampouco um caderno de escola, mas sim um diário. Isso não me impressiona, já que crianças da idade de Dayse gostam de guardar seus segredinhos somente para eles. Nunca havia sentido curiosidade em ler coisas pessoais de crianças com as quais trabalhei, mas Dayse não era qualquer criança. Ela é uma garotinha misteriosa. Não é como as crianças travessas que amam bagunçar e brincar. Não é como as crianças que amam dar e vender sorrisos aqui e acolá. Dayse era muito diferente. Ela era uma garotinha séria e tinha uma linguagem muito formal para a sua idade. Ela parece ser um mar de mistérios assim como seu pai. Ela não se veste como uma criança comum. Não fala como uma criança e não age como uma criança, o que me deixa frustrada e com sede de ler seu diário. Mas, ainda assim, diário é uma coisa muito pessoal. E se eu tivesse um diário não gostaria que ninguém o lesse. Por conta disto, opto por simplesmente guardar o diário de volta de onde caiu, sem ler uma página sequer. Porém, já era tarde demais para isso.
        — Por que está com o meu diário nas mãos? — Dayse pergunta.
        Ela está parada na porta do banheiro e veste um pijama listrado que varia de branco e azul bebê. Ela me fuzila com os olhos.
        — Eu estava arrumando sua cama e ele caiu do meio dos seus travesseiros — explico, coçando minha nuca distraidamente. — Estava colocando ele de volta — completo. — Eu não o li, se é isso que quer saber — deixo claro.
        — Me devolva o diário, sua bisbilhoteira! — ela pula na cama como um gato raivoso e pega o diário das minhas mãos de forma brusca e rude. Mais rude do que pensaria que ela fosse pegar.
Ela se deita na cama após colocar o diário no seu devido lugar e se cobre com o cobertor. Noto que ela está usando a luva. Dessa vez, uma luva azul bebê. Arqueio uma sobrancelha, achando estranho. Luvas o dia todo já é estranho.
        Mas usar luvas até mesmo para dormir?
        — Por que usa luvas? — decido perguntar, me sentando ao seu lado na cama.
         — Além de bisbilhoteira é curiosa! — Dayse novamente revira os olhos. — Babá, acredito que você já fez o seu trabalho. Agora pode se retirar — ela bufa.
        — Não quer que eu te conte uma história para dormir? — pergunto.
        — Histórias para dormir são coisas para crianças retardadas. Eu só quero dormir. Seria possível?
        Em todos esses anos da minha vida, nunca havia visto uma criança que não gostasse de ouvir histórias antes de dormir. Dayse era a primeira.
        Apago o abajur sem protestar. Ela vira suas costas para mim e me ignora. Agora é a minha vez de revirar os olhos.
        — Boa noite para você também — digo, saindo do quarto e fechando a porta atrás de mim logo em seguida.
        Dayse nada diz.
        A casa está vazia. Terrivelmente vazia. Não há um ser vivo pelos corredores, hall ou sala de jantar. Apenas eu. Tudo está silencioso demais e sinto como se eu estivesse sozinha numa mansão abandonada. Os meus passos ecoam pelo corredor imenso e isso me assusta. Os ecos dos meus passos parecem outros passos que me seguem, como se alguém estivesse atrás de mim.
       Adentro meu quarto rapidamente e jogo as sapatilhas para o canto. Pulo sobre minha cama e não evito suspirar. Meu estômago protesta roncando, anunciando estar com fome. Desde a discussão que ocorreu na sala de jantar e o incidente do bife acebolado no rosto do Senhor Deh'Vil, eu não pude continuar com o meu jantar. Pois, a regra é clara: assim que o Senhor Deh'Vil termina sua refeição, ninguém mais continua. — Assim me disse o empregado, quando tentei continuar com meu jantar.
        — Que patético! — digo, rolando pela enorme cama. — Ele adora ser o centro das atenções.
        Para o meu primeiro dia de trabalho dentro dessa mansão, tive a certeza de três coisas. Primeiro: o segundo dia será muito pior que o primeiro. Segundo: o Senhor Deh'Vil é um chefe insuportável. E terceiro: irei dormir com fome todos os dias. Os meus dias são baseados pelo humor do Senhor Deh'Vil. E isso soa ainda mais patético, pois não me parece que o perfumista tenha um dia em que acorda de bom humor. 

Diabo - Saga Deh'Vil I [DEGUSTAÇÃO]Onde histórias criam vida. Descubra agora